DE COMO PASSEI A SER LADRÃO DE
CORTES DE FAZENDA…
Luanda, Março de 1975.
Depois de uma noite “complicada”, porque envolveu muitos
copos e muitas horas, no regresso a casa, entro, sem querer, numa rua sem saída
que terminava num passeio muito alto.
O carro embate com o para-choques no passeio, eu vou com
as ventas ao para-brisas que fica estilhaçado, e a minha cara transforma-se
rapidamente num filme de terror com cortes por todo o lado e sangrando
abundantemente.
Os copos anestesiam um pouco a coisa e saio do meu carro
pelo meu pé, dirigindo-me à rua principal.
Aqui falha-me a memória se foi alguém que caridosamente
me depositou no Hospital de Luanda, ou algum táxi que consegui apanhar, mas
dado o adiantado da hora, acredito mais na primeira hipótese.
Dou então comigo no hospital a ser cozido na cara a
sangue frio, sem grande desinfecção e lavagem das feridas, de tal modo que
passados muitos, muitos anos, ainda andava a tirar pedaços ínfimos de vidros,
sobretudo nas sobrancelhas, à medida que eram rejeitados pelo corpo. Enfim,
coisas que acontecem!!!
Dispensado pelos médicos, (ou lá quem é que me coseu),
parti sozinho à procura da saída do hospital, em tronco nu, visto que a T-shirt
que vestia tinha sido cortada no hospital.
Junto à saída do hospital, ou já cá fora (não me lembro
bem), tinha à minha espera um ou dois agentes da PSP bem como um Alferes do
Exército (com soldados numa Berliet), que me identificaram, tendo-me informado
que estava detido por ter assaltado uma loja de cortes de fazenda.
Lá chegámos ao local onde estava o meu carro, diga-se de
passagem bastante destruído, e qual não é o meu espanto quando verifico que por
cima do capot no exterior, bem como nos bancos no interior do carro, estavam
diversos cortes de fazenda!!!
O espanto foi total e tive de me render à evidência,
permitindo que os militares me levassem para a esquadra da PSP. Aí chegado, convenci os agentes de que precisava de
telefonar para resolver de vez aquele assunto, que nada tinha a ver comigo.
Claro que a melhor opção era telefonar para a Base Aérea
de Luanda, onde tinha amigos, e até podia ser que o Major Pil Av Luís
Quintanilha, (meu particular amigo e companheiro nesses tempos), tivesse
chegado de Lisboa e me pudesse ajudar.
Assim não aconteceu e, não sei como, dei comigo a falar
com o Major Bessa (*), Piloto Aviador já falecido, que era meu conhecido e
amigo desde os tempos da Base de Monte Real, em que eu convivia, (embora mais
novo), com os Pilotos da Força Aérea.
Foi-me buscar à esquadra da PSP e com promessas de
retorno rápido, etc., e pela “autoridade conferida” aos militares nesse tempo,
lá fomos no seu carro, tendo-o eu convencido a voltarmos ao local do acidente.
Aí chegados, (era uma zona de moradias), batemos à porta
da casa mais perto do acidente e perguntámos se, por acaso, tinham visto alguma
coisa. Não foi preciso ir mais longe, porque o dono da casa
informou logo que estando acordado àquela hora da madrugada em que se deu o
acidente, tinha antes ouvido barulho na rua e espreitado para perceber o que se
passava.
Contou ele que viu dois ou três vultos, carregando os tais
cortes de fazenda, e que os mesmos largaram tudo e fugiram quando o meu carro
entrou pela rua sem saída. Mais informou, que tendo-me visto ir embora, e como os
cortes de fazenda estavam no chão da rua, para não se estragarem os colocou no
capot e nos bancos do carro!!!
Trabalho de investigação concluído, foi regressar à
esquadra e dizer àquele pessoal que fizessem o trabalho como devia ser!
Ainda hoje estou para perceber porque é que o dono da
casa se preocupou tanto com os cortes de fazenda e não comigo??? Mistérios da
natureza!!!
A história é verdadeira, mas pode, obviamente, ter
algumas lacunas ou imprecisões, dado o tempo já passado, (41 anos), e sobretudo
o tempo que naquela altura se vivia com uma guerra civil diária em Luanda,
entre os três movimentos políticos angolanos.
E assim passei a ser, durante algum tempo, ladrão de
cortes de fazenda!!!
Joaquim Mexia Alves
10 de Janeiro de 2016
(*) Manuel Bessa Rodrigues Azevedo
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2014/11/guine-6374-p13845-in-memoriam-201.html
(Com a devida vénia à Tabanca Grande, claro!)
(Com a devida vénia à Tabanca Grande, claro!)
8 comentários:
Boa tarde Joaquim
Que história do "caraças". Não ponho a mínima dúvida em tudo o que contas pois em África tudo pode acontecer.Teve um final feliz, embora com muitos cortes na tua face.Juntando os "cortes de fazenda"...são "cortes mais que muitos" !!!
Mas estás cá e de saúde e isso é que interessa.
Grande abraço,
JERO
Quem diria que foste Tu o culpado de dares ideias ao rebanho de senhoritos actuais täo destros a meter a mäo na... "Fazenda" !
(Näo é só em África que tudo pode acontecer Amigo Jero...Näo é só em África!)
Um grande abraco desde os 42 graus negativos.
José Belo
Boa noite Camarigos
Depois de ler o comentário do José Melo, que me merece particular estima e consideração, dou a mão à palmatória...Não é só em África ! Confesso que fui influenciado por recentes conversas com amigos que estão a trabalhar em Angola e Moçambique. E que me contam histórias do"arco da velha". Que afinal também acontecem "mais coloridas" em outros espaços do Mundo.E arredores !
Abraço-vos.
JERO
Onde está "José Melo" é melhor ler José Belo !!!
JERO
Cada vez que conto esta história fico com a sensação de reviver um sonho/pesadelo, tão inverosímil a mesma parece ser!!!
A história é mais longa, ou com mais pormenores, mas tornava-a muito extensa.
Abraços a todos
Meus caros amigos
Só hoje, 17/1, li a história e acho que ela é mais um exemplo de como podem acontecer as coisas mais inverosímeis a qualquer um.
Bem, "qualquer um" não é bem assim, o 'nosso' Joaquim já nos deu conta de outras 'aventuras' e felizmente saiu-se bem.
Este caso particular tem o mérito de nos mostrar, mais uma vez, como a solidariedade pode funcionar.
Ainda bem que os vidrinhos foram saindo.
Hélder Sousa
Depois de ler a história do nosso amigo Joaquim Mexia, ainda me atrevo a dizer: ainda bem que o acontecimento já se passou em tempos remotos e em Angola. Se fosse hoje e por estas bandas com copos, lá teria de soprar o balão e por certo que a solidariedade, era outra!.. Está gira a descrição e teve um final feliz, mas o melhor era ter ficado com uma peça de fazenda e ter feito como o Bocage, enrolava-se nela e não ficaria em "tronco nu"!.. Quanto ao roubo não teria muita importância, vendo o que por lá e também por cá, vai acontecendo!..
Um abraço.
Mª Arminda
Para uma rua sem saída, tinha muito movimento!
Um Abraço.
Paulo Moreno
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