terça-feira, 31 de outubro de 2017

P962: JERO - LEMBRANÇAS DE ÁFRICA

  O MOREIRA

JERO
Era (e é) transmontano, «duro», infatigável, leal e amigo do seu amigo, como é apanágio das gentes daquelas regiões altas e pedregosas do nosso Portugal. E altamente “desenrascado”.
São inúmeras as histórias dos seus «desenrascanços» na vida militar, mas vamos só contar uma muito especial que revela o seu invulgar sentido de humor.
Por causa da minha mania das escritas deitei-me uma noite particularmente tarde.
Quando cheguei ao meu “quarto particular”, que partilhava com outros militares, já toda a gente dormia. No “quarto” ao lado, onde estavam hospedados mais uns 3 ou 4 furriéis, pareceu-me ouvir uns “cochichos” mas não liguei. Estava cheio de sono.
Mal levantei o mosquiteiro sai-me uma galinha do inte­rior, situação de todo inesperada que me fez desequilibrar e gritar acagaçado.
Depois, com a ajuda de uma lanterna percebi que, até onde a minha vista alcançava, os lençóis estavam todos borrados. Incrivelmente borrados e mal cheirosos!
Entretanto já tinha uma quantidade de “amigos da onça” (e da galinha) perto de mim que “gozavam a cena ” e que, entre gargalhadas, “lamen­tavam a sorte do Oliveira”.
De facto, em tantos meses de mato, nunca tinha aconte­cido a ninguém uma daquelas...
O Moreira
Eis se não quando aparece o Moreira com dois lençóis lavados.
Ajudou-me a tirar os ”borrados” – a galinha já tinha sido corrida a pontapés – e fez-me a cama de lavado. Que gajo porreiro!
Deitei-me e poucos minutos depois tinha comichão por todo o lado e cada vez que me virava parecia-me que estava a ser comido vivo...
Mais uma vez com o auxílio da pilha lá investiguei o interior do mos­quiteiro e pareceu-me ver milhares de minúsculos “pontos ne­gros”!
Os “pontos negros” deslocavam-se e afinal eram piolhos!

Mais uma vez me apareceu o Moreira para me dar uma “mão”. Ajudou-me a desmontar o “cenário” para... sacudir os intrusos!

E mais uma vez me esfreguei todo com álcool e tentei dormir. O que foi... mentira.

Meses depois, já a bordo do “Uíge”, quando regressáva­mos a Lisboa é que soube que a galinha ”tinha aterrado” dentro do meu mosquiteiro graças a uma mão malandra. A do Moreira, está claro. Nessa altura chamei-lhe tudo menos “bom rapaz”…

Muitos anos depois do regresso da Guiné o Moreira continua desenrascado e com uma “lata” que só visto.

Numa determinada fase da vida montou um negócio no ramo alimentar, que o obrigava a ir para a estrada muito cedo. E a fazer muitas viagens.

Um dia dirigia-se a Espanha com a carrinha carregada de presun­tos. O livro das guias de remessa seguia, como de costume, no porta-luvas.

Já perto da fronteira foi mandado parar por uma brigada de trânsito. A continência da ordem e o pedido habitual.
– Os seus documentos, por favor.

O Moreira nem lhes deu tempo para dizer mais nada.

– Oh Senhor Guarda, hoje você e o seu colega deviam jogar no totoloto ou comprar lotaria. Mas que pontaria com que vocês estão! Hoje vocês ganhavam o “Euromilhões”. Não vão acreditar mas levo a carrinha carregada de pre­suntos, tenho aqui o livro das guias de remessa e com a pressa saí de casa sem as preencher.

– Deviam jogar no totobola, na lotaria... eu sei lá. Vocês estão cá com uma pontaria!
E... repetia-se, repetindo os argumentos da sorte e do jogo até à exaustão.

Num dos intervalos do “arrazoado” do Moreira um dos guardas pediu-lhe para se calar.
– Preencha lá as guias e siga…

Poucos dias depois estavam os três a almoçar algures na zona de Vila Franca de Xira. A atitude pedagógica dos guardas granjeou dois novos amigos para o Moreira. E se não ganharam o “Euromilhões” ganharam um amigo especial.

O Moreira além de “um desenrascado” é também um ser humano de excepção. E um amigo que não esqueço.

JERO              


terça-feira, 24 de outubro de 2017

P960: UM DESABAFO DO KAMBUTA

El-Rei D.Dinis deve estar às voltas no túmulo,
revoltado com o que está a suceder…

UMA FICÇÃO MINHA, A CONDIZER COM A TRISTE REALIDADE, A DESTRUIÇÃO DAS MATAS NACIONAIS

Seguíamos os dois dentro do carro, eu e a Hortense, Estávamos então a entrar nas tristes matas nacionais, totalmente queimadas, cuja visão nos provocou fortes exclamações de pesar ao vermos tanta destruição.

Ao chegarmos junto da Ribeira de São Pedro deparámos com um casal já muito velhinho deitado no chão. Pensámos que tinham sido vítimas do fogo, por isso parámos o carro e eu tentei ver o que se passava.

Com os conhecimentos de enfer-magem adquiridos no decorrer da minha comissão em África, procurei de imediato socorrê-los. Abeirei-me dos dois corpos, repa-rando que estavam inanimados; logo tentei reanimá-los da melhor maneira possível. O velhinho casal lentamente começou a voltar ao normal, iniciando uma série de desabafos entrecortados com uns gemidos - «Ai, a minha linda mata toda queimada!» - exclamavam.

Calmamente fui-lhes fazendo perguntas, ao ponto de identificar o velho casal, posto o que chamei a Hortense perto de mim e segredei-lhe dizendo quem eram.

Com a nossa ajuda o casal lá acabou por se levantar, parecendo então que nos tinham reconhecido. O velhinho inesperadamente excla-mou, «Ai os meus primos, o Manel Kambuta dos Dembos e a esposa!».

Abraçámos-no os quatro mas não houve conversa para matar saudades. Eu só lhe fiz a pergunta - “Primo D.Dinis, depois de tantos séculos da vossa partida para o túmulo para um descanso merecido, depois de tanto terem trabalhado para bem da nossa Pátria, do nosso lindo Portugal, de terem mandado semear e plantar as lindas matas nacionais, afinal o que vos levou a voltar agora?”

O meu primo D. Dinis e a esposa, a minha prima Isabel de Aragão, responderam que estavam nos seus túmulos dormindo um sono profundo, quando tiveram um triste sonho que os fez acordar. E explicaram que uns criminosos sem coração, sem qualquer amor à pátria, tinham ateado o fogo e destruído as nossas lindas matas nacionais. O sonho era tão real que acordaram, e de tanto espernearem, rebentaram com o túmulo e saíram correndo como loucos só parando naquele local. E caíram no chão desmaiados ao verem tanta falsa liberdade, tanta má educação, tanta maldade, tanta falta de civismo, tanta falta de amor pelo País, tanta destruição.

E, digo eu, quem tem respon-sabilidades para resolver situações como a protecção das matas não tem feito muito por isso. E os incendiários ficam em liberdade, prontos para prosseguirem a sua nefasta acção.

No tempo da velha senhora, por muitos criticado, no entanto as matas mantinham-se sempre limpas, havia guardas florestais e casas da guarda. Quando tudo isso terminou, as matas nacionais ficaram abandonadas e à mercê destes criminosos.

O meu primo D. Dinis deu-me um forte abraço dizendo - “Primo Manuel Kambuta, és de uma geração de jovens que tudo fizeram na guerra do ultramar por amor ao nosso País, e que hoje se sentem revoltados com estas situações assim como eu me sinto. Peço-te que não te canses de escrever desabafando todas as verdades, que quem diz a verdade não merece castigo. Esta gentalha que anda a destruir o nosso País passará um dia a ser cinza e pó, não vai levar nada consigo, para quê tanta maldade, tantas destruições, roubos, fogos, mortes?”

O meu primo D. Dinis deu-me um último abraço de despedida - “Vou-me embora muito triste e desgostoso com tudo o que estou a ver, prefiro morrer outra vez e voltar para o meu túmulo; e prometo nunca mais voltar a um espaço que mandei semear e plantar com tanto amor e carinho”.

Esta minha ficção foi escrita com todo o respeito e dedicada ao nosso Rei D.Dinis, com muita mágoa pela destruição das matas que ele mandou semear e plantar para bem do seu e nosso amado País.

Manuel Kambuta dos Dembos


quinta-feira, 19 de outubro de 2017

P958: NA RESSACA DE UMA TRAGÉDIA

HOMENAGEM

ÀS FLORES QUEIMADAS DO PINHAL DE LEIRIA,
AO REI D. DINIS E AO SEU PAI D. AFONSO III


D. DENIS


     Ay flores, ay flores do uerde pyno,
se sabedes nouas do meu amigo!
              Ay Deus, e hu é?

     Ay flores, ay flores do uerde ramo,
se sabedes nouas do meu amado!
             Ay Deus, e hu é?

     Se sabedes nouas do meu amigo,
aquel que mêtiu do que pos cômigo!
            Ay Deus, e hu é?

     Se sabedes nouas do meu amado,
aquel que mêtiu do que mh á jurado?
           Ay deus, e hu é?

     Vos me perguntades polo uoss` amigo,
e eu ben uos digo que é san`e uivo;
           Ay Deus, e hu é?

      Vos me perguntades polo uoss` amado,
e eu bê uos digo que é uiu`e sano,
           Ay Deus, e hu é?

      E eu bê uos digo que é san` e uyuo,
e seera uosc` ant` o prazo saydo;
           Ay Deus, e hu é?

      E eu bê uos digo que é uyu` e sano,
e seera uosc` ant` o prazo passado!
           Ay Deus, e hu é?


NOTA - Esta "Cantiga de amigo" foi escrita pelo nosso Rei Poeta D. Dinis, em meados do Séc. XII, há mais de 650 anos, num português arcaico próprio da época.

O poema que acabastes de ler fala-nos de uma namorada ansiosa que pede notícias do amigo ausente às cristas floridas dos pinheiros do verde pyno do pinhal de Leiria. Estas cristas dos pinheiros respondem que o amigo da donzela apaixonada chegará antes do prazo.

O nosso Rei D. Dinis, vivendo no Castelo de Leiria, passou muito do seu tempo por terras de Monte Real (sede territorial da Tabanca do Centro) e arredores, embalado pelos seus encantos amorosos. Hoje, se voltasse, já não encontraria mais cristas floridas nos vetustos pinheiros do pinhal que plantou.


Morreu o verde pinho do Rei Poeta e Lavrador. Arderam as naus do amanhã. Há sempre "alguém" que não gosta da Natureza, que não gosta da Poesia, que não gosta do Amor! 

Manuel Frazão Vieira
ex- Alferes Milº (ex-CMT Pel Caç Nat 55)


sábado, 14 de outubro de 2017

P956: INSISTÊNCIAS...

A VISITA AÉREA ÀS COMPANHIAS…
QUE NÃO ACONTECEU…

Joaquim Mexia Alves
Quando estava na Ponte de Udunduma com o Pel Caç Nat 52, fui chamado a Bambadinca para reforçar a CCAÇ 12, numa qualquer operação de que não me lembro, mas na qual nada deve ter acontecido, pois senão até a minha fraca memória se lembraria.

A verdade é que ao fim da manhã (a operação começaria ao fim da tarde), quando já estava em Bambadinca a fim de combinar a coisa com o meu grande amigo Capitão Bordalo, comandante da CCAÇ 12, e os seus Alferes, aterra um DO 27 na pista do quartel.

É sabido, pelo menos no meu tempo assim era, que os Comandantes de Batalhão (passo a crítica jocosa), se pelavam por uma voltinha de avião ou helicóptero, com a desculpa da visita às Companhias mais afastadas.

É curioso que as colunas de abastecimento, pelos vistos, não serviam tal propósito, vá-se lá saber porquê, o que pelo menos no caso do meu batalhão era uma realidade.

Mas, voltando aos factos, logo o Comandante do Batalhão se deslocou à pista para tomar assento no avião e dar a sua volta aérea.

Foi então que o piloto, grande amigo meu de Monte Real, Jaime Brandão, perguntou por mim, convidando-me para ir com ele até Nova Lamego, pois iria acontecer uma noite da fados e era muito importante a presença da minha voz.

Acrescentou ele que não havia problema, pois no outro dia voltava a Bissau e no caminho deixava-me em Bambadinca (Era fácil, declaravam uma porta aberta e assim tinham de aterrar…).

A cara do Comandante era indescritível e eu disse ao Jaime que era impossível porque tinha aquela operação.

Voltámos para a messe e passadas uma hora ou duas ouve-se um helicóptero aterrar e aí o Comandante disse:
- Agora é que é!!!

Claro que fui também até à pista.

Do helicóptero sai o Pedro Melo Ribeiro, outro amigo, este de Lisboa, que não era piloto mas vinha a acompanhar, e me diz:
- É pá, vimos-te buscar porque esta noite há fados em Nova Lamego e o pessoal disse logo que tu eras imprescindível!!!

A vossa imaginação está agora com certeza a ver a cara do Tenente-Coronel, com o espanto e sei lá mais o quê bem retratado na fisionomia.

Claro que dei a mesma resposta e retirei-me para a messe, sob os olhares gozões de uns e o olhar reprovador de outro, que não sabia bem o que fazer e até talvez meditando na importância da minha pessoa.

Por volta das 3 ou 4 horas da tarde, depois de uns uísques bebidos para animar as tropas, aterra outro DO 27, e o Comandante entre o incrédulo e ansioso, lá se dirigiu para a pista, comigo e já um número de camaradas a acompanhar.

Era novamente o Jaime Brandão, que com um sorriso dispara:
- Então vens ou não?

Escusado será dizer que a resposta foi a mesma e que o Comandante neste momento já não tinha cara, mas uma máscara de incredulidade, espanto, irritação, etc. etc.

Nos dias que se seguiram o gozo foi enorme, umas vezes mais descarado, outras mais disfarçado.

À noite lá fomos para a operação que, como digo acima, não teve nada de especial a reportar.

E assim foi a visita aérea que... não aconteceu!!!!

Durante uns tempos foi lenitivo para as agruras e desconforto da guerra e só por isso já foi muito bom!!!

         Joaquim Mexia Alves