sexta-feira, 29 de novembro de 2019

P1187: RECORDANDO "O MEU TENENTE DA GUINÉ"

TRAGÉDIA DO PELOTÃO DE MORTEIROS 980

Poucos dias depois da tragédia que envolveu pessoal do Pelotão de Morteiros nº 980, em 5 de Janeiro de 1965, apareceram cinco corpos a boiar no rio Cacheu, perto de Binta.


Foram recuperados pela nossa tropa e, como Furriel Enfermeiro, tive que me ocupar dos seus restos, nomeadamente no que diz respeito à recolha de objetos pessoais que servissem para a sua identificação.

Objetos pessoais nos bolsos das calças (uma navalha, um espelho de mão) e outras pequenas coisas que já não consigo recordar.

O que nunca mais vou esquecer é que a maioria dos corpos tinha apenas as pernas e um pedaço do tronco com algumas costelas à vista. Uns dias no rio e a presença de crocodilos explicava o estado em que nos tinham aparecido aqueles camaradas. 

Os corpos foram para Farim dado pertencerem ao Pelotão de Morteiros nº 980, com exceção de um, que ajudei a enterrar a Sul do nosso aquartelamento, tendo ficado a sua identificação numa garrafa dentro do improvisado caixão com que foi sepultado.

Pela consulta do livro «Mortos em Campanha», Tomo II – Guiné-Livro 1 da Resenha Histórico Militar das Campanhas de África (1961-1974), vim a saber agora – depois de tantos anos passados -  a sua identificação:

1 - António Domingos Félix Alberto, soldado nº. 2540/63. Está sepultado no Cemitério do Ramalhal. 

2 - António Ferreira Baptista, soldado nº. 2481/63. Está sepultado no Cemitério de Aldeia Gavinha(Alenquer) .

3 - António José Patronilho Ferreira, soldado nº. 2143/63. Natural da de Torrão, Alcácer do Sal. Corpo não recuperado.

 4 - António Maria Ferreira, soldado nº. 3029/63.Natural de Santa Maria-Viseu. Corpo não recuperado.

5 - Arlindo dos Santos Cardoso, 1º. Cabo nº. 1295/63. Está sepultado no Cemitério de Vila Verde, Oliveira do Bairro.

 6 - João Jota da Costa, soldado nº. 3021/63. Está sepultado no Cemitério a Sul de Binta – Margem esquerda do Rio Cacheu.

 7 - João Machado, Soldado nº. 2143/63, natural de Freixomil, Guimarães. Corpo não recuperado. 8 - Joaquim Gonçalves Monteiro, Soldado nº. 2594/63. Está sepultado no Cemitério de Vila Verde, Oliveira do Bairro.

Comandava então o pelotão de Morteiros nº. 980 o Tenente Pedro Cruz, que foi um dos sobreviventes. Meses mais tarde veio a ser o Comandante da Companhia 675, substituindo o nosso Capitão Tomé Pinto. Nunca esqueci a história que me contou do desastre em que esteve envolvido no Rio Cacheu, de que vieram a resultar 8 mortos.



Reencontrei "o meu Tenente da Guiné", já como General na reserva, em 22 de Novembro de 2007. Teve algum simbolismo o nosso reencontro pois aconteceu na ponte da Ribeira da Laje, em Oeiras. Uma ponte entre duas épocas...

À distância reconheci o mesmo sorriso e a postura escorreita e desembaraçada do meu Tenente da «675»... Percorremos rapidamente a ponte entre duas épocas... Quantos caminhos (e degraus) percorreu (e subiu) o jovem oficial com quem tantas vezes conversei ao final do dia na sala da «nossa» secretaria da Companhia!

Quem viveu uma vida normal – sem a passagem pela guerra aos vinte e poucos anos – não pode perceber o que significa um abraço tantos anos depois. Eu tive esse abraço e esse momento. Atrevo-me a usar o plural. Tivemos esse abraço e esse momento!

Recordando a manhã de 5 de Janeiro de 1965 e o General Pedro da Cruz.

JERO

terça-feira, 26 de novembro de 2019

P1186: 49 ANOS SE PASSARAM...


REGRESSO A CASA
Às primeiras horas do dia 21 de Novembro de 1970 estava eu, aliás estávamos todos, perfeitamente acordados a bordo do “CARVALHO ARAÚJO”, mais ou menos ao largo de Cascais, a prepararmo-nos para o assalto às casas de banho dos camarotes para, finalmente, tomarmos um banho após nove dias de mar alto, sem água doce para lavar um prato quanto mais para tomar banho, desde Bissau até Cascais. Imagine-se a necessidade de nos apresentarmos de manhã em Lisboa, de cara lavada perante as nossas famílias e os nossos amigos, e as voltas que tivemos que dar para que isso fosse finalmente possível. Um banho, como se fosse a melhor coisa do mundo, e naquela noite foi mesmo a melhor coisa, só suplantada com a chegada de manhã ao pé dos nossos familiares. 
Carvalho Araújo, N/M da Empresa Insulana de Navegação.  Tinha lotação para 354 passageiros. Foi abatido em 1973.
Imagem extraída de navios portugueses, com a devida vénia.

O “CARVALHO ARAÚJO”, apesar de já estar no seu fim de vida naquela altura - esta foi uma das suas últimas viagens - foi um grande navio, o melhor de todos, que nos trouxe de África depois de 25 meses de comissão naquele pedaço de terra e água, mas mais água do que terra, encravado entre o Senegal e a Guiné Conakri.

Falar desse tempo não vem agora aqui ao caso. Há tantos livros publicados que infelizmente pouca gente lê e por isso se sabe tão pouco daquele período de treze enormes anos que a juventude foi obrigada a cumprir lá longe, em África, e muitos nas piores condições, diria até em condições inimagináveis, para além daquela dezena de milhares cujos restos mortais por lá ficaram para sempre e dos muitos milhares de estropiados que focaram marcados no corpo e no espirito para sempre. 


Era a guerra, o maior flagelo da humanidade, que muitos por cá faziam por desconhecer, mas, convenhamos, ao fim de tantos anos a ignorância é cada vez maior, infelizmente. Quem não se esquece daqueles dois longos anos são aquelas centenas de milhares de jovens que para lá foram obrigados, bem como as suas famílias. O resto é o costume. Por vezes palavras bonitas, mas muitas vezes nem isso.

Tínhamos embarcado no dia 13 e logo alguns tripulantes nos avisavam que dado o mar picado do Golfo da Guiné, quando chegássemos ao mar da Madeira seria bem pior. Mas nós estávamos por tudo. Só queríamos que aqueles dias passassem depressa. No entanto quando chegámos ao mar da Madeira, tivemos um mar chão contra todas as previsões. Nem tudo podia ser mau…

Aqueles nove dias foram dias para esquecer. Não havia água disponível, o porão era talvez o sítio menos mau na medida em que o navio tinha andado muitos anos a transportar gado bovino dos Açores para o Continente e tinham-lhe adaptado um sistema de ar forçado nos porões para o gado não enjoar. Também foi bom para nós que nos contentávamos com pouco. Tinham-nos dado um prato à subida das escadas, para que tivéssemos direito à refeição que era comida onde era possível. Depois só tínhamos que lavar o dito prato, com água do mar, para a próxima refeição.

A comida era do pior que se pode imaginar. Mas após ter feito o primeiro reconhecimento ao único sitio onde se vendia alguma coisa, tinha constatado que só havia cerveja e Coca-Cola com fartura e também bolachas baunilha. Mais nada. Portanto, tudo o que foi aparecendo era comido, por vezes até com os olhos fechados, mas não havia alternativa. 

Houve, porém, uma excepção. No dia 19 o navio aportou ao Funchal, ao pôr-do-sol - um espectáculo inolvidável -, para meter água e nafta (que na Guiné não havia) e nesse dia, ao jantar, apresentaram-nos um peixe assado no forno com muito bom aspecto. Porém, fartos de comer mal, marcando também a nossa insatisfação pela comida que até aí nos tinha sido apresentada, nesse dia resolvemos ir jantar fora ao Funchal, com o resto do dinheiro que nos tinha sobrado da comissão.

Foi uma noite de festa porque já cheirava a Portugal e o degredo estava a acabar. Lembro-me perfeitamente do “CARVALHO ARAÚJO” atracado ao Cais do Funchal ao lado dum paquete de luxo, o CHUSAN, penso que inglês, parecia uma casca de noz ao lado do outro que parecia uma “cidade iluminada”. Mas não nos enganámos e à hora combinada lá estávamos de novo a bordo a caminho de casa.

A chegada a Lisboa foi de facto alegre, mas ao mesmo tempo arrepiante quando nos pudemos aproximar dos nossos familiares que não víamos há mais de dois anos. São momentos indescritíveis onde as palavras nos faltam.

Carlos Pinheiro
(Foto da época)
Depois foi embarcar numa camioneta para os Adidos, na Calçada da Ajuda e o espólio foi feito rapidamente.

Passado algum tempo já estava em casa da minha tia Cândida na Avenida 24 de Julho, mesmo em frente à Estação do Cais do Sodré, a voltar a admirar o Tejo de que também tinha muitas saudades.

A minha mãe estava a acabar o almoço - um cozido à portuguesa como deve ser, e o apetite era bastante, só suplantado pelas saudades que se iam matando aos poucos.

Primeiro a sopa do cozido como mandam as regras, depois o cozido propriamente dito. E lá vinha o respectivo arroz a acompanhar. Mas aí, quanto ao arroz, farto de tanta “vianda” da Guiné, disse que dispensava bem o arroz. Mas a minha mãe, com as palavras que só as mães saber dirigir aos filhos, lá me convenceu a provar o arroz e, de facto, estava tão bom que fiquei de novo freguês de arroz que eu pensava nunca mais comer dada a mistela que muitas vezes éramos obrigados a comer em Bissau.

Ainda fiquei uns dois dias em Lisboa a matar saudades e só depois é que viajei até à minha terra, Alcanena, para rever os amigos e outros familiares.

Nesse longínquo dia 21 de Novembro de 1970, o Almirante Américo Tomás foi a Alcanena, mais concretamente a Minde, inaugurar o Museu Roque Gameiro, acompanhado das mais altas entidades do país, da região e do concelho e, claro, de sua esposa, a D. Gertrudes.

Mas nesse dia também aconteceu a invasão de Conakry pelas Forças Armadas Portuguesas comandadas pelo Comandante Alpoim Calvão, a fim de libertar alguns militares portugueses presos naquele país. Foi uma operação secreta e de surpresa que não terá obtido o êxito planeado, mas mesmo assim conseguiram um dos objectivos - libertação dos militares portugueses que ali estavam presos.

Foi de facto um dia muito grande o dia 21 de Novembro de 1970.

Carlos Pinheiro

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

P1182: REVISTA "KARAS" DE NOVEMBRO

Já estamos habituados a ver os três "Barões do K3" juntos nos nossos convívios (ou então não vem nenhum...). O José Manuel Quintas, Vitor Junqueira e José Pimentel de Carvalho resolveram desta vez reforçar o grupo com um assessor, o Pedro Quintas, que vemos aqui em conversa com o JERO.
Embora aqui apareça isolado, o Carlos Pinheiro vinha acompanhado de mais dois elementos do grupo de Torres Novas, o Alexandre Fanha e o Manuel Ramos. Faltou no grupo o Lúcio Vieira, que continua com problemas de saúde, e a quem desejamos rápidas melhoras.
Aqui os dois outros torrejanos que acompanharam o Carlos Pinheiro desde Torres Novas, o Manuel Ramos e o Alexandre Fanha.
A Giselda parece um pouco surpreendida. Não sabemos se será pela presença do Rui Marques Gouveia e da Teresa Vindeirinho, que já não apareciam há uns tempos...
Como habitualmente o Vitor Caseiro faz questão de cumprimentar todos os presentes. Aqui, foi a vez do JERO...
O grupo de Aveiro tem andado desfalcado do José Luís Malaquias nos últimos encontros. Parece haver uma promessa de este estar presente em Novembro... Vemos aqui o Carlos Prata, Carlos Augusto Pinheiro e Manuel Reis, a que se juntou o Carlos Manata.
O António Sousa parece estar recuperado das maleitas que impediram a sua presença durante vários convívios. Aqui, junto do António Nobre e do JERO.
Um friso de senhoras que são presença habitual: Isabel Gaspar, Hortense Mateus, Amélia Gonçalves e Giselda Pessoa.
Caras conhecidas neste grupo: António Nobre, António Frade, Almiro Gonçalves e José Jesus Ricardo.
O António Alves e o José Luís Rodrigues, presença habitual, junto ao grupo de Aveiro.
Mesmo não participando na refeição o Kambuta quis estar presente para confraternizar com o pessoal e colaborar na reportagem fotográfica. Aqui na companhia do amigo Agostinho Gaspar.
Um grupo de pessoal sorridente (a vida corre-lhes bem, pelos vistos...) - Almiro Gonçalves Giselda, JERO, Miguel Pessoa e Carlos Manata.
Já no local do almoço, o pessoal distribui-se pelas mesas, preferencialmente mantendo a integridade do grupo.
O Joaquim Sousa e o Joaquim Rolo, inscritos pelo Carlos Santos, junto de dois aveirenses, o Carlos Augusto Pinheiro e o Manuel Reis.
Do outro lado da mesa o Carlos Santos e o restante pessoal por ele inscrito, o Frederico Biel e o Mário Lourenço.
O Carlos Pinheiro e o Alexandre Fanha têm aqui a companhia do António Sousa, podendo ao fundo ver-se ainda o António Nobre e o seu acompanhante Augusto Soares.
O terceiro torrejano, Manuel Ramos, estava do outro lado da mesa, com o António João Duarte, também inscrito pelo Carlos Pinheiro. Ao fundo podemos ver ainda o José Jesus Ricardo e Esposa.
O Luís Branquinho Crespo tem aqui a companhia do Almiro Gonçalves e Amélia Gonçalves, vendo-se ainda ao fundo o Rui Marques Gouveia.
A família Gaspar é presença obrigatória, claro, ou não tivesse o Agostinho atingido as 79 presenças em 79 encontros efectuados - Um pleno! Aqui com o Miguel e a Isabel, habituais acompanhantes.
A D. Preciosa não deixa os créditos em mãos alheias e está sempre presente. Aproveitando a presença do Kambuta, o editor da revista lá vai aparecendo em alguma foto... vemo-lo junto da Giselda.
O António Alves encabeça a mesa junto de dois casais - o Luís Dias e Manuela Dias mais o António Frade e Helena Frade.
O Kambuta lá ia aguentando a fomeca, vendo passar o cozido debaixo do seu nariz... Esperamos que o aroma do petisco não lhe faça mal...
O JERO e o régulo da Tabanca Joaquim Mexia Alves fazem parte da mobília e apenas estão ausentes por motivos excepcionais.
O Carlos Manata e o Vitor Caseiro têm sido presença garantida nos nossos encontros. E desta vez o Vitor teve mesmo que dar uma ajuda nas contas, dada a ausência do Carlos Oliveira.
Fizemos uma montagem fotográfica para poder ter os três "Barões do K3" juntos na mesma imagem... Já que eles são inseparáveis...
Então o que é isso, Kambuta? A beber Cola?! Então e as ordens do médico?!
Enfim, o encontro estava no fim e era hora de se acertar as contas. Foram 42 presenças, um pouco melhor que o encontro anterior. A ver se conseguimos aumentar a fasquia no próximo convívio!



sexta-feira, 1 de novembro de 2019

P1178: RECORDAÇÕES DOS TEMPOS DE BISSAU


 DIA DE TODOS OS SANTOS
1968 - BISSAU

Carlos Pinheiro
Era dia de Todos os Santos. Era dia 1 de Novembro de 1968. Estava no meu terceiro dia de Guiné. Tinha chegado no UÍGE em 28 de Outubro. Estava “adido” nos Adidos, em Brá, porque tinha ido em rendição individual e o meu Batalhão, o 1911, regressaria no mesmo barco onde eu tinha ido. Coisas da tropa. Só que, mesmo depois da comissão terminada e o barco ao largo à espera, mesmo assim, o 1911 estava numa operação especial no Sul. E o UÍGE lá esperou mais de uma semana.
Por tudo isto, estava “adido” nos Adidos, um quartel de passagem onde as condições, ou a falta delas, eram inimagináveis. Uma cama? O que era isso para os “periquitos” (1)? Comida? Tenham calma. Podem lá ir fora e andar “desenfiados” que ninguém dá pela vossa falta. Devem ainda trazer algum “patacão”(2) da Metrópole no bolso. Desenrasquem-se, era a ordem - e assim íamos fazendo, conforme podíamos.
Tudo ali estava de passagem, à espera de um destino. Para os que chegavam, era a espera da guia de marcha para o destino. Para os outros, os que já tinham terminado a comissão, era a espera do regresso desejado. Portanto, como não havia tanta coisa, camas era o que mais faltava. Não havia mesmo. A malta desenrascava-se a dormir em cima daquelas caixas da tropa que na Metrópole serviam para guardarmos, debaixo da cama, as nossas coisas e especialmente o farnel de casa e as botas de sair, as botas engraxadas. Ali, não. Ali serviam mesmo de cama.
A primeira noite foi horrível. Os mosquitos, aos milhares, dada a falta de higiene e de qualquer tipo de limpeza mais que evidente, e ainda por cima com as “bolanhas”(3)) ali à volta, sabiam escolher o sangue novo acabado de chegar. No outro dia ainda não havia feridas, mas tínhamos o corpo todo picado. Parecia que tínhamos rubéola. Havia portanto que arranjar um sítio para dormir e eu, à boa maneira portuguesa, acabei por ter sorte.
Ainda no cais, no dia anterior quando desembarquei, encontrei um conterrâneo, já “velhote” naquelas coisas da guerra. Era condutor na Companhia de Transportes. Tinha sido ele, e os seus camaradas que nos tinham transportado, na véspera, naquelas velhas GMC da 2.ª Grande Guerra, para os nossos destinos. Foi ele que no dia seguinte me procurou para me dizer que, provisoriamente, me arranjava uma cama, com mosquiteiro, na sua Companhia, no Quartel-General, em Santa Luzia. Foi uma pequena felicidade, já que a maior parte dos companheiros de viagem só muito mais tarde é que teve a tal cama com mosquiteiro. Sim, esta coisa do mosquiteiro era um pormenor mais que importante, porque assim os mosquitos não nos chegavam ao pelo.
Talvez por isso, talvez porque não conhecia ainda mais ninguém naquelas paragens, mas também com sentimento de agradecimento, convidei o meu amigo para um petisco nesse dia de Todos os Santos.
Foi ele que escolheu o sítio. Aliás, eu ainda não conhecia nada. E assim, lá fomos até Safim, nos arredores de Bissau, onde se comiam umas ostras que eu ainda não sabia apreciar, mas também se comia um bocado de leitão e se bebiam umas “bazookas” da Metrópole ou até mesmo de Angola, a Cuca ou a Nocal, ou de Moçambique, a 2M, salvo erro.
A páginas tantas, como soe dizer-se, a meio do repasto, começa a passar por cima de nós uma série de helicópteros, movimentos esses a que eu não estava habituado e certamente por isso perguntei a que se devia tal bailado. E o meu amigo não se fez rogado:
- Havia “ronco”(4). Mas o que era “ronco”?
E ele lá me explicou. Havia “porrada” de certeza.
Mas nós lá fomos cumprindo a obrigação que nos tinha levado aquele sítio. A temperatura era elevada, a humidade era ainda maior. Havia portanto que refrescar o corpo com as bebidas frescas sem que notássemos que a mente ficava cada vez mais nublada.
Depois, lá voltámos ao quartel, a Santa Luzia, à procura do local do descanso. Mas qual descanso? Quando lá chegámos, de certo modo “alegres”, mandaram-nos calar porque a caserna estava cheia de feridos.
Feridos? Mas como? Foi como um balde água fria. O “calor” passou-nos de imediato. Caímos de imediato em nós. O que é que se tinha passado? Tinha sido só mais um caso. Dramático como muitos outros. Um “periquito”, talvez duma Companhia que tinha ido comigo no barco, ao subir para uma GMC na zona de Bula, a caminho do seu destino, deixou cair a sua bazuca armada e aconteceu um mar de dor e de sangue.
Nunca cheguei a saber quantos morreram, mas alguns acabaram ali a comissão que estavam a iniciar. Muitos feridos estilhaçados em tudo que foi sitio. Nos braços, nas pernas, tronco, na cabeça, onde calhou. Daí aquele bailado dos helicópteros.
No meio dos feridos, alguns eram condutores da Companhia de Transportes. Por isso, o Hospital, o HM 241, o Hospital Militar de Bissau onde se fizeram autênticos milagres durante toda a guerra, pediu aquela Unidade para recrutar pessoal para ir dar sangue. Voluntários apareceram de imediato, como era habitual.
O Unimog arrancou carregado, mas antes de chegar ao Hospital, despistou-se junto ao Bairro da Ajuda, já muito perto do Hospital. Mais feridos. Mais dor. Mais sangue. Mais sofrimento. Daí a razão de tantos feridos na caserna aquela hora. Eram os que estavam menos-mal. O Hospital estava cheio e teve que dar alta aos que inspiravam menos cuidados. Era a guerra na verdadeira acepção da palavra.
Foi assim o meu primeiro dia de Todos os Santos que passei na Guiné. Há dias que não se esquecem e aquele foi um deles.
Carlos Pinheiro
(1)  Militar recém-chegado à Guiné.
(2)  Dinheiro.
(3)  Terrenos pantanosos.
(4)  “Festa”, pancada, algo de anormal.