quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

P1373: DO ANTÓNIO LÚCIO VIEIRA

Enviado pelo nosso camarada Manuel Frazão Vieira:

“A minha singela homenagem ao nosso companheiro António Lúcio Vieira, de Torres Novas, que tão cedo nos deixou.

Foi poeta, dramaturgo, argumentista, investigador e jornalista.

Dos muitos poemas que escreveu, permitam-me apresentar o Lúcio como um poeta maior. Um poeta sem "os privilégios dos arautos ou arengadas penaches".

De tantos que me ofereceu e li, destaco:

 

ANDA, VAMOS AO PASSADO

 

Anda, dá-me a tua mão. Vamos recordar.

Soltemos o olhar sobre os campos da nossa infância

quando o meu avô domava a terra e eu, alheio, o seguia

e sabia que me esperavas ao chegar do Peral.

Anda, olha, ali é o cabeço das mil aventuras. O mágico Lavradio

onde sonhávamos heróis e olhávamos o futuro inda tão longe.

Tu apenas tão ausente e eu sem saber que existe um futuro.

 

Que esse mistério do futuro não se vislumbra assim tão longe.

Como catedral, constrói-se pedra a pedra, ânsia a ânsia.

Só os dias, neste percorrer quotidiano sem regresso,

se adivinham com certeza e exatidão.

 

Vamos, anda. Olha ali a escola, a minha matriz, no cume do outeiro;

o pejo da bata, sacola e calção e aquele apelo feiticeiro

do deus das palavras que me abriam mundos e me levavam

já então me levavam ao mundo de outros mundos.

Além, um pouco abaixo, janelas viradas à Arrangela, era a tua escola.

As meninas de batinha branca e lacinho cor-de-rosa no cabelo.

Lembro-me, calçavas soquetes de garridas cores e rias

rias de nós quando passavas e os nossos olhos

rendidos, seguiam os teus passos.

 

Anda, dá-me a tua mão.

Não te percas agora nesta romagem ao rio já navegado.

Em silêncio. É melhor olharmos em silêncio e escutar a música do tempo.

Sabes, ainda voga em mim um tenaz desassossego

um anseio de galgar o espanto desses dias

e nem tu sabias que aqueles meus silêncios me vinham do apelo

trazidos pelos ventos da serra, vindo das Sílfides

aquelas deusas que nos chamam longe e nos querem perto.

E eu fui.

 

Não deixes a minha mão. Só agora lhe sinto o benigno calor

da sã fraternidade dos teus gestos e tanto, tanto dos teus passos.

Íamos ao rio: ainda te lembras. Na Ascensão lanchávamos na relva.

E havia aquelas grutas de mistério onde o rio nasce

e eu tão senhor de mim, leviano, me afoitava.

 

Agora ris. Não, espera, não deixes já a minha mão.

Depois de tanto palmilhar as sete partidas agora estou aqui.

E é quase um bálsamo sentir esse morno calor da tua mão na minha.

 

Vim para te ver. Mudaste. São apenas os meus olhos que o dizem.

No resto, no silêncio, ainda és sempre tu

quando me esperavas ao voltar das aulas na carreira da tarde.

Acho que andarilhei uma eternidade. Deixá-lo.

Neste quase silêncio das nossas palavras recordo amores passados

lavo-me das paixões, dos ódios e das mil utopias não cumpridas.

Cumpro agora a promessa que te fiz nesse tão longe:

 

Um dia, menina-irmã, voltarei, para viajarmos

de mãos dadas ao passado destas acanhadas ruas

onde, como irmãos, crescemos sem dar conta

e aos recantos das memórias onde os nossos dias nos amaduraram.

 

Agora já posso olhar-te e dar-te a mão.

Como um rio os passos nunca voltam ao princípio.

Não desesperes, minha irmã de infâncias e de sonhos:

Algures há uma foz onde o nosso mar nos aguarda roído de saudades.

 

(in António Lúcio Vieira, "25 POEMAS DE DORES E AMORES")”