À GUERRA
Num
colóquio levado a efeito em 27 de Outubro de 2016 sob o título "O (As)salto da Memória" discutiu-se que durante os 13 anos da guerra do
Ultramar (1961-1974) terá havido mais de 200 mil refratários, mais de 8 mil
desertores... e faltosos, segundo estudo conduzido pelos historiadores Miguel
Cardina e Susana Martins.
Mas não é sobre esse tema que me proponho “falar”, mas
doutro que refiro no título - as
“cunhas” para não ir à Guerra do Ultramar.
Não foram desertores mas foram ”habilidosos”.
Quantos?! Nunca se saberá.
Depois
da minha reforma em 2003 passei muito do meu tempo livre em jornais da região
de Alcobaça, com quem colaborei e colaboro.
Os
assinantes desses semanários (ou quinzenários) visitam normalmente as redações
para pagarem as suas assinaturas. São usualmente pessoas de “uma certa idade” –
maiores de sessenta – pois a gente nova não assina jornais regionais.
Quando
vejo entrar gente com “cabelos brancos” meto normalmente conversa para saber se
foram mobilizados para a guerra do Ultramar.
Para
minha surpresa a maioria desses “maiores de 60” não foi. Refiro-lhes então que
eu “não tive essa sorte” e fui para a Guiné em comissão de serviço durante o
período de 1964-66. Normalmente este início de conversa dá para saber porque é
que os meus interlocutores não foram ao Ultramar. E a maioria das respostas
“aponta” como razão “uma boa cunha” para ter ficado livre da vida militar ou,
tendo ido à tropa, não ter que ir para a guerra.
A
“cunha” na região de Alcobaça passava “pela porta” de um Ten.Coronel já
reformado, que tinha “deixado” muitos conhecimentos “na tropa” ativa. Os
“beneficiados” não deixavam de agradecer-lhe com uma prenda dentro das suas
possibilidades e… a sua vida civil continuava.
Quando
chegou a minha vez fui um “azarado”. Vale a pena contar alguns pormenores…
Fui
o nº. 21 de 31 mancebos da freguesia de Alcobaça que fizeram parte do
recenseamento de 1960. Em 8 de Agosto do mesmo ano fui apurado para todo o
serviço militar. Pedi «espera» um ano na expectativa de terminar o 3º. Ciclo
dos Liceus e ingressar no Curso de Oficiais Milicianos. Era então funcionário
do Ministério da Justiça e apesar do esforço que fiz na altura – trabalhador
estudante - não consegui concluir o 7º. Ano dos Liceus.
Fui
incorporado em 1 de Agosto de 1962 na E.P.C. - Escola Prática de Cavalaria, de
Santarém. Era ao tempo uma das Escolas mais duras e exigentes do Exército, e
tinha um Comandante que fazia tremer toda a população do Quartel. Chamava-se
Homero de Oliveira Matos. Era Coronel de Cavalaria e tinha sido anteriormente
Director da PIDE. Dizia-se, ao tempo, que gostava mais dos cavalos do que dos
recrutas...
Fiquei com a minha ideia sobre a assunto mas como não é possível
auscultar uma das partes seria eventualmente tendencioso emitir a minha
opinião... Mas posso afirmar que perdi 12 quilos em 2 meses de que “escapei” da
E.P.C. de Santarém.
E
aqui e agora é tempo de confessar que fui de “Cavalaria” para os “Serviços de
Saúde” devido a uma “cunha”. Falei com um “conhecido” da IGA (Intendência Geral
de Abastecimentos) dos meus tempos de funcionário dos Tribunais que tinha um
amigo na “tropa” que me safou – julgava eu – de uma rápida mobilização para o
Ultramar.
Em 3 de Outubro de 1962 apresentei-me no
1º.Grupo de Companhias de Saúde, em Lisboa, frente à Basílica da Estrela. Já
era de noite quando teve lugar a 1ª. formatura para jantar. Nas instalações do
Hospital Militar à Estrela um 2º. Sargento mandou-nos alinhar... mais ou
menos pela direita! Ainda hoje me lembro do choque... Para quem vinha da Escola
Prática de Cavalaria, onde as formaturas eram feitas a régua e esquadro...
alinhar mais ou menos pela direita... era do... caraças!!!
O
tempo não parou e... passei quase dois anos no Hospital Militar, onde estive
numa dupla qualidade: como doente - contraí uma hepatite, que me valeu 70 dias
de internamento em Medicina 3 – e, mais tarde, como enfermeiro. Esta minha
passagem como doente pelo HMP, que me fez perder o 2º ciclo da recruta e me
obrigou a estar quase 6 meses em casa a restabelecer-me (à custa dos meus Pais)
da hepatite militarmente contraída fez-me pensar que mesmo sem cunha voltaria
para a vida civil!
Mas
não foi isso que aconteceu. Fui considerado apto e regressei à vida militar. De
volta ao H.M.P. não esqueci para o que ia e levei a sério o Curso de Sargentos Enfermeiros. Não se brinca com a saúde dos outros.
Fui o 1º. classificado do meu Curso – mais o
José Manuel de Barros Borges – o que, mais tarde, me valeu o «prémio« de ser
mobilizado já com 2 anos de tropa, avançando para substituir um camarada do
curso seguinte, de nome Vítor Serra, que vim a saber tempos depois ser ciclista
do Benfica.
Benfica... ciclismo... corridas... Benfica...
foi uma «mistura» muita forte para uma rapaz de Alcobaça... desconhecido!
Tinha sido na recruta um grande atleta – era conhecido como o «sprinter» - mas nunca me inscrevera em nenhum clube! Azar o meu! Hoje, mais a frio, até entendo que um ciclista profissional não iria fazer nada para as «estradas» de terra batida da Guiné...
No que me diz respeito... quando me preparava
para fazer a mala para vir para Alcobaça fui parar a Évora e... pouco tempo
depois à Guiné.
Estava escrito e... se não tem acontecido...
não teria motivo para escrever este texto!
O
Vítor Serra é que ficou a perder!... Não ficou a conhecer a Guiné nem, muitos
anos mais tarde, a “mais valia” que me calhou de ter até ao fim da vida os meus
camarigos das Tabancas Grande e do Centro.
O
(as)salto da memória não é comigo !
JERO