segunda-feira, 28 de outubro de 2019

P1176: UM CENÁRIO NOVO


Neste texto - há muito publicado no blogue “Luís Graça e Camaradas da Guiné” e agora recuperado para a Tabanca do Centro - descrevo a minha chegada a Bissau no navio da marinha mercante Ambrizete, em rendição individual, bem como as primeiras impressões da cidade, dos seus lugares mais afamados e da sua fauna humana.


A CHEGADA À GUINÉ E AS
REALIDADES DE UM NOVO MUNDO…

Helder Valério Sousa
A minha partida para a Guiné ocorreu cerca das 22 horas do dia 3 de Novembro de 1970, quando o velho Ambrizete rumou à foz do Tejo com destino a Bissau, navegando com uma inclinação de 7º para estibordo motivada por uma qualquer má distribuição da carga (constituída, para além de géneros alimentícios, por material de guerra diverso e sobressalentes para manutenção).

A viagem correu bem, com mar sem causar problemas (vaga larga, como nos explicaram), gozando aqui e ali da companhia dos peixes voadores que faziam questão de acompanhar e, aparentemente, rivalizar com o navio.

A aproximação à costa da Guiné deu-se pela madrugada do dia 9 de Novembro, com todas as sensações que têm sido descritas por outros camaradas, como a visualização da linha do que parecia ser uma mata cerrada, o bafo quente e húmido de lá emanado, os sons e os silêncios, tudo isto ainda mais ampliado pelo facto de estar a nascer o sol em contra-luz em relação à nossa posição.

Durante a madrugada tínhamos ultrapassado o Carvalho Araújo,  que seguia carregado de militares mas que nos disseram ter tido um conjunto de problemas (fogo a bordo?) que o fazia navegar muito lentamente. Deste modo, todos aqueles que seguiam no Ambrizete (6 militares, todos Furriéis de Transmissões, 3 TPF (transmissões por fios) e 3 TSF (eu, o Nélson Batalha e o Manuel Martinho)) desembarcámos a meio da manhã desse dia 9, enquanto que o desembarque do pessoal do Carvalho Araújo só ocorreu no dia seguinte, dia 10 de Novembro, dia de S. Martinho, o que nos fez ficar com velhice acrescida em relação a todos os que viajaram naquele barco, nomeadamente os nossos camaradas de curso e especialidade, Furriéis Milicianos Eduardo Pinto, Luís Dutra Figueiredo, António Calmeiro e José Manuel Fanha, sendo que, como era sabido, "a velhice era um posto"!

O episódio do desembarque teve algo que me marcou e que me deixou de pé atrás, como se costuma dizer...


Devido à tal situação do posicionamento relativo dos dois barcos que estavam a chegar ao cais de Bissau, o Ambrizete ficou um tanto ancorado ao largo para dar a primazia ao Carvalho Araújo, razão pela qual a passagem dos passageiros do barco para terra foi feita por intermédio de pequenas embarcações do tipo que lá se usavam para fazer as cambanças, mas que no nosso imaginário eram pirogas dirigidas por nativos, sendo aí o primeiro contacto (desconfiado) com os naturais.

Quando o barquito manobrava na aproximação à rampa, estando nós naturalmente a um nível mais baixo do que aqueles que se encontravam no cais, um dos militares presentes procurou saber se "algum de vós é o Furriel Hélder Sousa?". Após a confirmação de que era eu mesmo, o militar em causa, que eu vinha substituir, e que já andava desesperado pela demora da minha chegada (não esquecer que oficialmente parti a 23 de Outubro, embora só o tenha feito realmente em 3 de Novembro e, sendo das Transmissões, ele sabia que eu já tinha embarcado) começa aos saltos e aos gritos de “É ele!, é ele!, é ele!", o que fez aumentar a minha preocupação sobre onde me vinha meter para suscitar tanta alegria pela partida...

Hoje já não me lembro do seu nome, ele que fez tanta questão em me acompanhar em todas as voltas que foi necessário dar para me apresentar no Quartel, de me levar a uns amigos de Vila Franca que me tinham guardado um lugar para ficar, de me levar a almoçar à messe de sargentos, etc. A imagem que tenho é a de um macaquinho aos saltos (era o que me parecia, já que o via de baixo para cima e ele estava acocorado), feliz da vida por ter encontrado o seu pira e safar-se dali o mais depressa possível, provavelmente na viagem de regresso do Carvalho Araújo.

Depois das apresentações fiquei a saber que os Comandantes da Companhia de Transmissões e do STM (Serviço de Telecomunicações Militares) eram respectivamente os Capitães Cordeiro e Oliveira Pinto (excelentes pessoas), que eram cunhados e contemporâneos da minha (nossa) passagem pelo B.T., no Quartel da Graça, quando fazíamos a especialidade, o 2º Ciclo do C.S.M., e eles eram Tenentes a fazer o tirocínio para capitães, período de alguma agitação pois ocorreu no último trimestre de 1969, quando tiveram lugar as chamadas Eleições de 69.

Igualmente o 1º Sargento que supervisionava o STM em Bissau e que nos iria instruir - preparando-nos para as tarefas que teríamos que desempenhar quando fossemos destacados para os postos no interior - era meu velho conhecido, já que tinha sido ele a orientar o meu estágio da especialidade em Tancos, na EPE (meu e do Manuel Martinho que também foi para a Guiné, bem como do Miguel Rodrigues que foi para Angola, salvo erro, e do Fernando Marques que ficou cá em Portugal, na CHERET).

O camarada que fui substituir deixou-me depois aos cuidados dos meus conterrâneos vilafranquenses, Furriéis Milicianos José Augusto Gonçalves e Vitor Ferreira, o primeiro deles meu colega da Escola Industrial e o outro das tertúlias do Café A Brasileira, mais parceiro que adversário das partidas de bilhar. Ambos estavam integrados nas Transmissões (nessa ocasião ainda estava em criação o futuro Agrupamento de Transmissões) e arranjaram um espaço para me acomodar no quarto que compartilhavam nas instalações para sargentos em Santa Luzia, juntamente com outro Furriel, de apelido Pechincha. Este último tinha estado colocado numa Companhia de Caçadores Nativos e estava agora destacado numa repartição qualquer do Q.G..

Levaram-me a jantar à Meta (já li algumas referências nos Blogues mas não me parece que lhe tenham dado o relevo que de facto tinha naqueles finais de 1970). Era um lugar muito frequentado, com uma zona de Bar, zona de restauração e uma enorme pista de slot-cars (minicarros eléctricos), muito maior que as que conhecia cá na Metrópole e que era palco de acesas e renhidas disputas de competição dos vários miniaceleras que por lá iam gastando o seu tempo e dinheiro.

Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse, SolmarSolar dos 10Ronda, o inevitável Café do Bento (5ª Rep.), a casa Espada (das ostras) na rua paralela à marginal, o Pelicano.

Aqui no Pelicano, quando para me integrar saboreava a minha Coca Cola com uísque (era um privilegiado, já tinha tido a oportunidade de beber aquela coisa quando em 1968 estivera em França, Bélgica e Inglaterra), tive contacto directo com mais algumas das realidades do mundo onde estava a entrar...

O primeiro foi a sensação estranha de estar ali na esplanada a ouvir embrulhar lá longe, do outro lado do grande e largo Geba. Diziam que era em Tite, ou Fulacunda ou qualquer outro nome que para mim naquela ocasião não assumia personalidade. Mais tarde já não era assim, os nomes passaram a ter depois uma identidade própria; acho mesmo que havia até uma espécie de hierarquia, no que respeita à forma como eram identificados pelas dificuldades de vida que lhes eram inerentes. 

Estar ali a ouvir os rebentamentos abafados pela distância e a ver alguns clarões deu logo um arrepiozinho na espinha, com aquele misto de temor e de ansiedade que nessas ocasiões nos assaltam, mas também com um pensamento de solidariedade e angústia pela impotência de quem só pode assistir e não intervir.

O segundo contacto foi mais do género de constatar a degradação moral que a permanência em situações daquelas podia produzir em espíritos mais fracos. Já se falava do que acontecia no Vietnam com os soldados americanos consumindo droga para resolver os seus problemas mas ali no Pelicano não foi esse o caso. Tratou-se apenas do facto de que em determinado momento um desgraçado qualquer acercou-se da mesa onde estávamos e procurou vender-nos uma fotos "de gajas nuas". 

É claro que recusámos mas fui depois esclarecido de que não se tratava de "gajas" mas sim de "uma gaja", a própria mulher dele, a quem ele (diziam que era um fulano já bastante apanhado do clima) enviava fotos que tirava a si mesmo sem roupa e pedindo que ela lhe enviasse fotos do mesmo jeito, que ele depois reproduzia e tentava vender.

Fiquei bastante impressionado com aquela demonstração prática da alienação a que o clima de guerra e o consequente improviso da vivência podiam produzir em seres humanos e jurei a mim mesmo que haveria de sair da Guiné são de cabeça e mais determinado em contribuir para as mudanças inevitáveis que haveriam de ocorrer na nossa sociedade.
Hélder Valério Sousa
Ex-Furriel Mil Transmissões TSF

Foto 2  - © lifecooler.com. Todos direitos reservados
Fotos 3, 4 e 5 -  © Agostinho Gaspar. Todos direitos reservados

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

P1173: VELHAS HISTÓRIAS DO JUVENAL AMADO / 2

Mais uma história do nosso camarigo Juvenal Amado...

A PEQUENA E ADORÁVEL MARIAMA

Abriu os olhos de espanto e de medo ao ver a minha Berliet, que entrava pela aldeia levantando nuvens de pó. Virou costas e correu no sentido contrário, abrigando-se nas pernas da mãe que, com alguma curiosidade, nos observava junto da sua cabana destruída.

Mariama era uma bajuda de palmo e meio. Tinha um tom de pele café com leite escuro, os olhos grandes e castanhos. O cabelo todo entrançado com amuletos nas pontas. Vestia uma blusa sem mangas e um pano fula enrolado à cintura. Um ronco, num dos tornozelos dos seus pés descalços, completava a vestimenta.

Parei a viatura, saltei dela com a minha arma e disse-lhe adeus, ao que ela respondeu escondendo-se, ainda mais, na roupa da mãe.


Bangacia após o ataque - 1
Íamos começar a reconstrução de Bangacia, que tinha sido destruída pelos guerrilheiros algum tempo atrás. Sempre achei que aquilo tinha sido um ataque por encomenda.

Assim, quando reconstruímos, fizemos algumas benfeitorias, entre as quais, casas mais espaçosas e telhados de zinco, em vez dos de capim (que tinham que ser mudados de vez em quando), posto médico e escola.

As alterações eram nitidamente do agrado da população. Fizeram-se vários grupos de construção. Sapadores, alguns elementos do Pel.Rec. que tinham conhecimentos de pedreiro e carpinteiro. Também vieram camaradas das Companhias Operacionais, onde pontuava o Saltinho como grupo mais numeroso.

Cada chefe de família tinha que produzir blocos de barro para utilizar na construção da nova casa, para a sua família. Assim, amassavam o barro de cor cinzenta com palha misturada, enchiam um molde e os blocos daí resultantes iam sucessivamente ficando ao sol, até se tornarem duros.

Eu e os outros condutores de Berliet acarretávamos os blocos para o local escolhido pelos seus donos. Escusado será dizer que era preciso pôr ordem nos carregamentos, pois todos queriam ser os primeiros. Assim sempre que não tinha coluna para qualquer lado, lá estava eu logo de manhã a transportar os tijolos de barro, hora para uns, hora para outros.


Bangacia após o ataque - 2
A Mariama espreitava sempre de longe. Eu acenava-lhe e, à hora do lanche, que fazíamos às 10 horas da manhã, oferecia-lhe com um gesto um pouco de pão. Acabava alguém por vir buscar para ela, mas ela nunca vinha.

Como tinha sempre doce da ração de combate, passei a levar-lhe. Mas pouco e pouco as outras crianças, que andavam sempre à nossa volta, foram-na trazendo mais para perto.

Passado algum tempo, mal eu chegava, vinha a correr dar-me mão. Levava-me ao pé da mãe, mulher de talvez vinte e poucos anos, com dois filhos e a nossa heroína.

A idade dela era difícil de descobrir, tendo em conta os filhos e a vida dura das mulheres da Guiné que rapidamente perdiam a sua juventude. O pai era mais velho e tinha outras mulheres, como era costume. A riqueza de um Homem Grande media-se pelo número de mulheres e cabeças de gado.

O nome por que eu era conhecido, fazia-lhes confusão uma vez que Amado era muito parecido com Amadu ou Mamadu. Quando eu o mencionava, os Homens Grandes faziam uma expressão de gozo, metiam a mão à frente da cara – “Heeeeeiiiiiiiiiiiiii nosso cabo é manga de calabanta!” (1). Pensavam que eu estava a gozar com eles.

Mas a Mariana, mal eu chegava, ouvia logo a vozita dela a chamar, “Almadu…. Almadu”, ainda complicou mais o nome. Vinha à procura das guloseimas que no fundo se resumiam a pão, latas de cavala e sardinha. Todo o dia andava comigo para cima e para baixo, em cima da viatura mandando nos outros garotos. Era a mais pequenita de todos.

Junto a um monte de tijolos utilizados
na reconstrução de Bangacia
A reconstrução seguia em bom ritmo. Faziam-se as paredes exteriores dividia-se por dentro em quatro salas iguais, punha-se o vigamento e por último o telhado.

Sempre que se atingia uma fase, assistia-se a estranhas negociações. Os Homens Grandes ofereciam galinhas para serem os primeiros a terem as casas prontas, mas à medida que viam a mesma a ficar concluída, começavam a esquecer-se das promessas.

Os Islamitas são bons negociadores. Então os camaradas diziam que não lhes acabavam a casa e mais, furavam-lhe os tectos todos. Com gestos simulavam um chuveiro, onde eles passariam a tomar banho. Com grande alarido as negociações começavam em cinco galinhas, mas por fim o Homem Grande só dava uma. E levava tempo a negociar.

Nós riamos pois para nós, naquele caso, era tudo uma brincadeira. Entretanto passei a ser recebido na casa da Mariama. Ela pedia-me tudo o que lhe diziam para pedir: “Almadu parte (2) peso”, “Almadu parte lata”, etc, etc... Na medida do possível lá lhe comprei uns chinelos coloridos, que ela nem para dormir os tirava.

A mãe torrava-me mancarra (3) numa panela de ferro e foi ali que provei a bianda (4) com molho da polpa que envolve a amêndoa da palmeira.

Um dia a mãe disse-me, mais por gestos que por fala, se eu queria “levar a Mariama no Lisboa”.  Eu ri-me, fiquei embaraçado e disse-lhe que não era possível.

A idade, para além das dores nas pernas e nas costas, traz também por vezes alguma sabedoria e hoje, quando penso neste episódio, vejo com clareza a mensagem daquela mãe.

Trazer a pequenita comigo era livrá-la da mutilação (5), da miséria, do analfabetismo e de uma esperança de vida que não ultrapassa os quarenta anos. A Mariama terá, se chegou à pré-adolescência, passado por essa prova cruel do Fanado, terá sido vendida por dois sacos de mancarra e um de cola, para ser a 2ª ou 3ª mulher de um homem bem mais velho.

A mãe não terá tido consciência do alcance total do seu pedido. Mas estava no seu instinto de mulher tentar um futuro diferente para a filha.

A reconstrução de Bangacia ficou pronta. Foi um prazer ver aquelas casas alinhadas, com arruamentos largos, os telhados brilhando ao sol.

Passei a ir menos vezes à povoação, embora lá fosse sempre que ia às Duas Fontes. Levava latas de conservas e pão, que trocava com os garotos por laranjas e mangas. Guardava sempre o melhor para a pequenina Mariama.

Um dia também me apareceu no quartel...

No momento que escrevo estas linhas, peço para que o destino lhe tenha reservado um futuro diferente dos milhões de Mariamas que na Guiné sofrem com a pobreza e possivelmente não acreditam que possa haver cura para os seus males.

Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro 1972/74

Notas do autor:

(1) Malandro.
(2) Dá-me um escudo
(3) Amendoim.
(4) Arroz.
(5) “Fanado”: trata-se de uma prática horrível, onde se mutilam as meninas nos órgãos genitais. Por todo o Mundo Islâmico é praticado. Há no entanto algumas vozes de mulheres africanas, que fazem uma campanha muito corajosa contra esta prática, que as limita como mulheres inteiras, no pleno direito e uso, de todas as suas capacidades.


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

P1169: UMA HISTÓRIA SURREAL...

ALCUNHAS DO TEMPO DA VIDA MILITAR 
QUE NÃO ESQUECEM / 5

O “ALCOBAÇA”

JERO

Memória de uma longa conversa com o meu conterrâneo José Peça, um “rapaz” do meu tempo!

Foi no dia 5 de Junho de 1963. Passava pouco do meio-dia. À distância do tempo recorda esse dia… ao minuto. Era Soldado Condutor (condutor auto rodas) da CCS do Batalhão 400 (BART 400). Pediram nessa altura “voluntários” para ir ajudar uma coluna do "392", de Baca, que estava a ser atacada quando vinha a meio caminho em direção a Bessa Monteiro.

O José Peça ficou no quartel sentindo-se na obrigação de me explicar que “na tropa aprendeu cedo que não se devia ser voluntário” para nada. Saiu uma coluna comandada pelo Capitão Moura Borges para "ir dar uma mão" à tropa do "392", ajuda que tinha sido pedida por rádio.
Por volta das 3 da tarde soube o que tinha acontecido.

A cerca de 12 kms. de Bessa Monteiro, num local em que a “picada” estreitava devido a uma “garganta” da montanha a segunda viatura da coluna da CCS rebentou uma mina anticarro, não tendo conseguido chegar ao local da emboscada da "392". Tinham-se registado diversos mortos e feridos.

Lembra-se de os mortos terem chegado “feitos em bocados”. Havia a lamentar 3 mortos da CCS, entre os quais o Capitão Borges. E também havia mortos em Baca da CART 392. Constava que eram 4.

O “Alcobaça” - como era conhecido e tratado na sua companhia - ajudou no que lhe foi possível e, ainda assarapantado pela confusão do momento, lembra-se de passado algum tempo ter sido chamado pelo Comandante de Batalhão, Tenente-Coronel Alberto Ferreira de Freitas Costa.

“Alcobaça”, vai jantar e depois levas os mortos a Ambrizete”.
Nesta parte da narrativa o Zé Peça esclarece-me de algumas dúvidas.
Destino Ambrizete porquê?
Ambrizete ficava a 200 kms. mas tinha cemitério e uma Igreja onde se podiam fazer os funerais. Teria que fazer o percurso onde tinha ocorrido o rebentamento da mina e passar por Baca para transportar para o mesmo destino os outros mortos.

Entre diversos pormenores macabros em relação aos mortos da CCS o Zé Peça lembra-se ainda do que comeu na altura: “bacalhau com batatas”! Porque se lembra deste pormenor ?
Porque que era um "prato" de que muito gostava e não tinha conseguido "tocar na comida".
Algum tempo depois apresentou-se com a sua “GMC” junto ao Comando e carregaram-lhe, em maca, os 3 mortos.

O Tenente-Coronel entregou-lhe os galões do Capitão Borges e disse-lhe em voz baixa que os voltasse a colocar no corpo do Oficial quando tivesse chegado ao seu destino.

- “E quem vai comigo, meu Comandante?”

- “Ninguém. Vais sozinho pois já chegam os mortos que tivemos. Se houver outra mina só teremos mais uma baixa e não duas.”

O José Peça, que sabia que o Comandante de Batalhão tinha estima por si, sentiu um aperto "mitral" mas nada disse e subiu para a viatura. Pôs o motor a trabalhar e arrancou, seguido por duas viaturas com 2 secções. Lembra-se que uma das secções era comandada pelo Furriel Tavares. 

Eram umas seis da tarde. Ainda havia luz de dia mas pouco depois começou a escurecer. 
O “Alcobaça” não acendeu os faróis mas ligou os “olhos de gato” da “JMC”. Em marcha lenta, pois nalguns troços da “picada” os homens do Furriel Tavares seguiam apeados, chegaram ao local onde tinha rebentado a mina.

Foi muito difícil ultrapassar o "buracão", dificuldades que pouco depois aumentaram quando encontraram duas árvores abatidas na "zona de morte" da emboscada que a malta do "392" tinha sofrido.

Os “abatises” tiverem que ser serrados e removidos para a berma para a pequena coluna continuar o seu caminho. Foram horas de angústia que se prolongaram pela noite dentro.

Chegaram a Baca por volta das 4 da manhã. Aí o Zé Peça lembra-se de ter comido alguma coisa. Uma espécie de pequeno almoço. Tinham sido precisas cerca de 10 horas para percorrer 22 quilómetros!

Foram carregados os mortos da “392”- eram 3 e não 4 -  e a coluna “funerária” seguiu a caminho de Ambrizete.

Só, na sua cabine, nem uma vez o Zé Peça olhou para trás, para a sua ”carga”. Sentia um cheiro a morte e um zumbido de moscas… Foram horas e mais horas até Ambrizete. Só, com os seus pensamentos, o Zé Peça olhava para a “picada” atento a qualquer coisa… As sombras da noite foram clareando e quando o amanhecer chegou o seu ânimo melhorou um pouco…

Eram 5 da tarde quando chegou a Ambrizete. Tinham passado cerca de 23 horas desde que tinha saído de Bessa Monteiro! Os corpos começaram a ser descarregados e o “Alcobaça” apressou-se a pôr os galões no cadáver que lhe pareceu ser o do Capitão Borges. Os corpos estavam inchados, cobertos de pó, de moscas e… irreconhecíveis. O Zé Peça teve dúvidas mas… não conseguia olhar mais tempo os mortos.

Perguntei-lhe se os corpos estavam identificados, se tinham as chapas metálicas de identificação que todos os militares traziam ao peito. Em consciência não se lembra… nem sabe responder.

O "Alcobaça"
Tinha que sair dali bem depressa e foi para a “Pensão do Moço”. Conhecia o dono e lembra-se que foi para a cama bem cedo. Caiu na cama mas não conseguiu dormir nada de jeito. Teve pesadelos e viu, vezes sem conta, os “seus” mortos numa noite longa… que parecia não ter fim.

 
No dia seguinte atestaram-lhe a sua GMC com géneros. Carregou sacos de arroz, feijão, grão, batatas, conservas e barris de vinho. O Zé Peça lembra-se que sentia algum “conforto” com a carga que ia transportar. Carregava a tonelagem máxima e se “encontrasse” uma mina anticarro talvez não saltasse muito!

Não houve problemas no regresso a Bessa Monteiro. Quando chegou ao aquartelamento pensava que ia encontrar a malta toda em lágrimas. Foi recebido com gritos de satisfação – “Olha o “Alcobaça”!
 
Num grupo tocava-se acordeão e dançava-se… Parecia que nada de anormal se tinha passado dois dias antes… O “Alcobaça” percebeu que a guerra é mesmo assim. Ai dos que partem! Quem fica… come, bebe, brinca... convencido que a acontecer alguma coisa de mau acontecerá aos outros.

Fez o relatório verbal ao seu Comandante  e não ocultou as dúvidas que teve quando colocou os galões do Capitão… num corpo que poderia não ser o “certo”. O seu Tenente-Coronel não o recriminou e explicou-lhe as razões da tal ordem cruel: «Segues sozinho porque já me chegam os mortos que tivemos.» O Zé Peça compreendeu e seguiu para a sua vida no quartel.

O nosso camarada termina a sua história com a voz rouca.
Peço-lhe algumas fotografias do seu tempo de Angola que, com a ajuda da sua mulher, encontra passado algum tempo.
Passar uma noite a conduzir… A morte marcou-lhe a vida!

JERO