sábado, 30 de maio de 2020

P1231: UMA RELÍQUIA COM 47 ANOS...

Do nosso camarigo Joaquim Pinto Carvalho recebemos um mail em que dava a conhecer correspondência trocada
há cerca de 47 anos com a então sua namorada, mais tarde esposa, em que referia o contacto tido com
o famoso Marcelino da Mata e as histórias por ele contadas nessa ocasião, nomeadamente 
um resgate de um piloto da FAP perdido no meio das matas de Guileje. 
Aqui fica a história, que publicamos na data em que este nosso camarigo comemora mais um aniversário. 
Que os festejos sejam adequados às normas de contenção que a actual situação exige...
A Tabanca do Centro         

Joaquim Pinto Carvalho
Caro Miguel

Tomo  a liberdade de te  enviar um excerto duma carta que escrevi, há cerca de 47 anos, quando me encontrava na Guiné (Bedanda). Essa carta e o que nela descrevo ficou no esquecimento, por todo este tempo. Encontrei-a porque ando a recolher tudo o que escrevi durante o período em que estive na guerra para eventual publicação.

O relato dos “factos”, por quanto retive, foi-me feito directamente pelo próprio Marcelino da Mata.

Penso que, tomado como verdadeiro o depoimento, não defraudará a verdade histórica, mas poderás, ou não, confirmar. Também não é “essa” verdade o mais importante para mim, mas a leitura que nesse momento fiz do episódio. Para mim é um documento que, agora ao ler, me traz alguma emoção, mais que nostalgia, e que me é grato partilhar contigo. (...)

O excerto faz parte de uma carta que escrevi à então minha namorada, com quem vim a casar (doutra forma ter-se-ia provavelmente perdido este relato) e, por essa razão, envio-te uma reprodução da carta original. 

No entanto, para facilitar a leitura, abaixo transcrevo, na íntegra, esse meu relato, sem pretensões jornalísticos nem de exercício literária, mas que é genuíno, acredita! Se corresponde à factualidade e aos sentimentos pessoais que, em tais circunstâncias, procurei então perscrutar em quem não conhecia, logo me dirás!

O MARCELINO DA MATA

(Carta enviada pelo Joaquim Pinto Carvalho em 28 de Março de 1973)













Mas, deixando em paz os vingadores…"


Original da carta enviada em Março de 1973
Não sei se te surpreendi, nem sei se outros “camaradas”, ao tempo, fizeram igual… Há memórias que não podem ser esquecidas!

Fica um forte abraço, esperando que no meio desta “guerra” pandémica  tudo vos esteja a correr bem.

Joaquim Pinto Carvalho

Uma pequena (...) nota de rodapé, acrescentada pelo editor:

O texto apresentado está conforme a carta enviada pelo Joaquim Pinto Carvalho em 28 de Março de 1973, que quisemos manter. Mas será conveniente prestar alguns esclarecimentos sobre o que aqui é descrito. 

Na verdade não houve forças nossas no terreno a tentar recuperar o piloto no dia em que ele foi abatido. A primeira identificação do local em que ele se encontrava só ocorreu cerca das cinco da tarde, não havendo tempo disponível para efectuar o resgate (A noite iria cair muito rapidamente).

No dia seguinte foram posicionados dois grupos na orla da mata referenciada - um com 25 pára-quedistas chefiados pelo Cap. Norberto Bernardes e um segundo grupo com 25 pára-quedistas chefiados pelo Cap. Cordeiro, que acompanhavam o grupo de Operações Especiais do Marcelino da Mata (14 elementos).

Foi aliás o primeiro grupo que localizou os destroços do avião e recuperou o pára-quedas e o capacete do piloto. Foi depois mandado parar e estabelecer a segurança, avançando então os grupos do Cap. Cordeiro e do Marcelino da Mata para resgatar o piloto, entretanto localizado.

Quanto ao possível estado alucinado do piloto, não exageremos... embora já começasse a ter os platinados a falhar... E os insultos que ele mandou ao pessoal parecem totalmente justificáveis, quando os primeiros elementos da equipa de resgate com que se depara são africanos equipados com fardas cubanas e armados com Kalashnikovs...

O editor (que por sinal era o piloto em questão...)

quarta-feira, 27 de maio de 2020

P1230: UM VISITANTE INESPERADO

Vivendo num local isolado na Lapónia sueca, no extremo norte do país e com o vizinho mais próximo a quase 300 quilómetros (...), é natural que os contactos mais habituais que o nosso camarada José Belo tem sejam com os seus animais (cães e renas), mas também com a variada fauna que vive em seu redor.
Esta é a história de um animal que de repente se tornou presença habitual no dia-a-dia deste nosso amigo.

UMA RAPOSA DE ESTIMAÇÃO

José Belo
Há já alguns anos, não muitos, apareceu-me inesperadamente frente à casa uma das bonitas raposas brancas que por aqui abundam.

Estranhei a "coragem" do animal ao atravessar, aparentemente sem receio, um local onde tenho um canil com 10 cães de trenó mais dois corpulentos cães de guarda. A barulheira que estes fazem quando sentem qualquer animal nas proximidades é sempre incrível. Aparentemente a raposa tinha consciência que estes, de, dentro dos canis, nada podiam fazer… além do barulho...

Comecei por colocar pedaços de comida frente à porta da casa durante alguns dias. Sou surpreendido pelo animal, que passou a vir visitar-me diariamente. E... à hora certa! Estas visitas tornaram-se rapidamente em duas vezes por dia, uma pela manhã, outra precisamente no fim do dia.

Punha a comida numa das tigelas reservadas para os cães, até que, por curiosidade, aproximei-me lentamente do animal com uma salsicha na mão. Parou de comer, olhou-me bem nos olhos, mas não fugiu. Aproximou-se, lenta mas confiadamente e, com extremo cuidado para me não tocar na mão com os dentes, foi comendo a salsicha que continuei a segurar.

Com a longa experiência que tenho dos meus cães sei que qualquer deles arrancaria bruscamente (!) a salsicha da minha mão, sem se preocupar com os meus dedos. E eles conhecem-me de há muito…

O cuidado e lentidão da raposa a comer "à mão" ainda hoje me faz pensar.

As semanas foram passando e estes encontros tornaram-se numa rotina.

Num dia do curto Verão local e devido à agradável temperatura tínhamos a porta das traseiras da casa aberta. Enquanto estava a dar de comer aos cães no canil, oiço um grito (bem irritado) por parte da minha mulher que estava dentro de casa. A minha mulher acabara de encontrar, sentada calmamente num sofá do corredor que leva à cozinha, a minha amiga raposa…

Depois de acalorada discussão (e as suecas para além de serem bonitas sabem bem discutir!) lá veio o tão normal ultimato do tipo: “Ou a raposa dentro de casa ou eu... fora de casa!"

Na altura, e já casado há umas boas décadas, confesso que ainda pensei duas vezes! Mas como entre casais o vencedor é sempre o mesmo, a minha raposa lá passou a receber as suas refeições a uma "neutral" distância de 100 metros da casa.

Veio o Inverno e na Primavera seguinte a raposa não voltou. Bastante a procurei  na densa floresta envolvente.

Gostaria ainda hoje de acreditar que não morreu. Mas...
José Belo


quarta-feira, 20 de maio de 2020

P1229: COMPLEMENTANDO O POST ANTERIOR


A GUERRA QUE NUNCA EXISTIU?…

Juvenal Amado
Talvez como consequência do abandono de Medina de Boé e do grande espaço de progressão que ficou livre até à zona de Galomaro, daí resultou em 6 mortes na CCS do 2912 na  emboscada nas Duas Fontes em Outubro de 1971.

3491 Dulombi  Fevereiro de 1972

Logo no período de transição teve um encontro de frente durante uma patrulha com IN, do qual só por milagre não resultaram baixas, mas cantis e casacos furados por balas foram vários tal a violência de parte a parte.

3489 Cancolim

Depois seguiu-se Cancolim já depois de duas flagelações, a 2 de Março de 1972. Cancolim foi fortemente atacada com morteiros 82 mm tendo daí resultado a morte dos seguinte camaradas:

José António Paulo – natural de Mirandela.                                                   
João Amado – natural de Vieira de Leiria.
Domingos de E. dos Santos Moreno - natural de Macedo de Cavaleiros.
(Assisti de perto a estas mortes uma vez que estava no destacamento)

No final de 1972 tinha 60 operacionais.

Não ficou por aí e assim, morreram em combate, alguns já em 1973:

António Martins Vaz- natural de Grijó da Parada / Bragança
Álvaro Geraldes D. Ferrão – natural de Silvares / Fundão
Domingos M.R. Peixoto- natural de Alto da Vila, Duas Igrejas / Paredes
Califo Baldé -   natural de  Anhambé
Samba Seide  - natural de Anhambé

Juntamos a este número duas deserções (Um capitão e um Alferes) e a captura do soldado António Manuel Rodrigues, que veio a fugir do cativeiro para o Saltinho, já nós estávamos para embarcar para a Metrópole.   

3490  Saltinho

Alferes Miliciano Armandino Silva Ribeiro - Magueija / Lamego
Furriel Miliciano Francisco de Oliveira Santos – Ovar
1.º Cabo Sérgio da Costa Pinto Rebelo - Vila Chã de São Roque / Oliveira de Azeméis
1.º Cabo António Ferreira [da Cunha] - Cedofeita / Porto
Soldado Bernardino Ramos de Oliveira - Pedroso / V. N. Gaia
Soldado António Marques Pereira - Fátima / Ourém
Soldado António de Moura Moreira - S. Cosme / Gondomar
Soldado Zózimo de Azevedo - Alpendurada / Marco de Canaveses
Soldado António Oliveira Azevedo - Moreira / Maia (**)                                 
Milícia Demba Jau - Cossé / Bafatá
Milícia Adulai Bari - Pate Gibel / Bafatá
Trabalhador Serifo Baldé - Saltinho / Bafatá

Juntamos a estes o soldado António Baptista, feito prisioneiro, bem com os diversos feridos com mais ou menor gravidade.

CCS

Manuel Ribeiro Teixeira soldado PelRec - natural Cimo da Vila/ Varziela Felgueiras, morre numa mina na estrada para o Saltinho, mesmo à minha frente.
Milicia Mamassaliu Baldé - natural de Cossé
Mama Samba Embaló - natural de Cossé
Milicia Ilda Bari - natural de Cossé
Alberto Araújo Mota alferes Transm. - Natural de Curral, Pico de Regalados / Vila Verde

Este último, evacuado com hepatite, morre 2 dias depois em Bissau. Antes tinha sido evacuado o rádio-montador Carlos Filipe e aos 20 meses de comissão é igualmente evacuado com a mesma maleita o alferes da ferrugem Amadeu.

Para fechar o ano de 1972, foi  a CCS violentamente  atacada ao arame no dia 1 de Dezembro.

O Unimog do Falé
Em 1973, mina na estrada do Dulombi destrói Unimog e fere gravemente o meu camarada Falé, que é evacuado e já não volta (História já aqui publicada – Post 1223, 15 de Abril de 2020).

De referir minas na estrada do Dulombi e ataques em Bangacia, Campata, Cansamba  - tudo na região das Duas Fontes (entre 6 e 9 km de Galomaro).

Posteriormente a CCS bem como Cancolim foram reforçados com pelotões de Dulombi em retracção, que também reforçam operacionalmente Nova Lamego. Fomos também ajudados com grupos de intervenção independentes, bem como pára-quedistas.

Quando escrevi em 2008 sobre a minha ida a Buruntuma (agora republicado neste Blogue – Post 1228 de 13 de Maio) limitei-me a expressar a inquietação que tal viagem me tinha causado, bem como toda a situação que se passava e representava no evoluir da guerra, naqueles anos entre a minha chegada e a minha quase esperada e desejada partida.

O nosso terceiro Natal na Guiné...
Ora, tendo o meu batalhão chegado à Guiné na véspera de Natal de 1971, a sua partida só se viria a efectivar em 28 de Março de 1974. Escrevo isto, para situar o período em que se situam as minhas narrativas e assim, dar a perspectiva da alteração e da intensidade da guerra a que estivemos sujeitos. A violência bem como o equipamento utilizado contra nós foram assim sendo alterados de região para região.

Enquanto o alcance da nossa artilharia era ultrapassado largamente pelo alcance da artilharia do PAIGC, também nos vimos privados da normal utilização de meios aéreos pese a grande coragem dos pilotos, que se forçaram a voar após serem confrontados com uma arma da qual ignoravam tudo, ou quase tudo.

E passo  a citar o General António Martins de Matos no seu livro “Voando Sobre Um Ninho de Strelas”:

A guerra estava a entrar numa nova fase, nada de emboscadas e confrontos directos mas sim de duelos de artilharia; e seria de esperar o aparecimento de uma aviação rebelde/mercenária.

Duelos de artilharia? Interroga-se o autor. A grande maioria desses obuses que estavam no Sul eram autênticos monos da II Guerra com alcance não superior a 14000 metros. Na maioria dos quartéis da Guiné só tinham direito a morteiros 81 mm (4.000 metros) e ainda 11 morteiros 105 mm espalhados por diversos sítios de alcance igual.

O PAIGC usava o 120 (5.700 metros), depois havia os foguetes 122 mm (20.000 metros) e a breve trecho emprestados por Sekou Touré, peças de 130 mm (27.000 metros); e enquanto a artilharia utilizada pela guerrilha só podia ser posta em causa pela intervenção da nossa Força Aérea, estas últimas peças fariam fogo directamente do Senegal e da Guiné Conakri e sete dos nossos aquartelamentos ficariam assim debaixo de fogo,

Em Janeiro de 1974 o PAIGC decidiu acabar com Copá, Buruntuma e Canquelifá.  Com foguetes 122 mm podiam bombardear enquanto lanchavam, porque o único risco era o aparecimento da FAP. Mas Copá ficava a 200 km de Bissau - limite do raio de acção dos Fiat G-91, que tinham que optar por levar combustível ou bombas. Mesmo assim tinham que fazer contas - ou aterravam em Nova Lamego ou chegavam a Bissau com quase ou mesmo com motor apagado.

No final do mês  Copá tinha 30 combatentes.  

Entretanto mais um Fiat G-91 é abatido sobre Copá (sobre o problema dos Strelas ler o capitulo 23 sobre a total ignorância sobre essa nova arma com que se defrontaram os pilotos, quando afinal já havia alguma informação há meses guardada a sete chaves por alguém que, não tendo resposta prática para o problema, resolveu escondê-lo).

Sobre as lesões que os pilotos adquiriram ao ejectar-se dos seus aviões atingidos, talvez seja bom lançar o repto aos nossos camaradas, que tiveram que o fazer pondo em risco da própria vida, ou pelo o menos de ficarem numa cadeira de rodas para sempre, mas que mesmo assim voltaram a entrar nas aeronaves  para cumprir missões naquelas condições.

Tudo isto para relembrar que aquela guerra era intensificada consoante interesse do PAIGC, uma vez que lhe chegavam abastecimentos cada vez de maior qualidade e quantidade, enquanto nós há muito enfermávamos de uma penúria franciscana.

Está claro que opiniões são como o umbigo, porque todos temos um, mas de nada vale reescrever a história, negar hoje o que o era a realidade da altura  e pior que isso, chamar parvos ou choramingas aos outros, como alguém deu a entender há dias - porque no tempo dele passeava por lá sem problemas.

O que parece é que o PAIGC  tinha conhecimentos estratégicos, que eram encarados sobranceiramente pelos nosso militares; e quando o JD pôs em causa a perigosidade da coluna para Buruntuma, não pensou nos centenas de militares que fizeram protecção à coluna em todo o percurso, para além das Chaimites, Whaits e tropa na coluna. O PAIGC  ia-se mesmo meter na boca do lobo e já era certo, que o alvo não seria Buruntuma mas sim Canquelifá.

P.S. - Publico os nomes dos nossos mortos porque lembrá-los é honrá-los e é uma obrigação registar os nomes de quem na flor da idade nos deixou.
Um abraço
Juvenal Amado



quarta-feira, 13 de maio de 2020

P1228: VIAGEM AO FIM DO MUNDO...


A CAMINHO DE BURUNTUMA

Juvenal Amado
Após a morte de Amílcar Cabral a guerra tornou-se tecnicamente e estrategicamente mais definida. O ataque constante aos destacamentos, com o objectivo de ocupar posições, tornou-se mais que evidente. O tempo da guerrilha que emboscava, flagelava e retirava, embora não fosse menos perigosa, fazia já parte de um passado recente. Muito bem armada e enquadrada militarmente, a tropa do PAIGC estava a levar-nos para um beco sem saída e a nossa derrota, já não era uma miragem.

Na cantina tinham sido afixados cartazes com imagens de aviões MIG 17. O tempo de total domínio do ar pela nossa Força Aérea tinha terminado há já algum tempo. Os guerrilheiros, equipados com mísseis, tinham abatido já alguns dos nossos meios aéreos.

Assim os cartazes seriam para que nós identificássemos os aparelhos de fabrico soviético, caso fossemos atacados. Por outras palavras, serviam para que fugíssemos mais depressa, pois meios de defesa contra este tipo de ataque, não me consta que o Exército Português os tivesse, para disponibilizar aos combatentes.

As ordens para cavar uma vala em cruz no meio da parada, que por sua vez foi cheia com garrafas de gasóleo com torcidas, veio confirmar que ataques em grande escala, por parte do IN, eram já uma certeza - só não sabíamos quando.

Incendiávamos as garrafas do lado que vinha o ataque, para que a nossa Força Aérea pudesse fazer bombardeamentos nocturnos. À noite víamos os clarões e os rebentamentos sentiam-se no peito e no chão. A intenção que eles tinham de desalojar as NT das posições era tal, que os ataques eram repetidos noites a fio.

Notícias de forte movimento de viaturas e até blindados na fronteira entre a Guiné e a Guiné-Conakri, vinham agravar o já o nosso fraco ânimo.

Mais para Leste, Copá estava já cercado há dias. Grupos de Combate saíram para o mato para assim tentar aliviar a pressão. Esses valentes ficaram isolados e dispersos, complicando tudo ainda mais, pois bombardeamentos massivos, que eventualmente fossem decretados por Bissau, poderiam atingir os nossos soldados no mato.

Os Operadores chegavam já a falar na rádio sem cifra, tal era a aflição daqueles nossos combatentes. Em resposta aos pedidos de ajuda destes nossos camaradas, os Altos Comandos dos seus gabinetes respondiam: - Tenham confiança nos vossos comandantes.

“Venham para cá vocês, filhos da p...”, era a resposta dos nossos camaradas em desespero.

Ainda desta vez os nossos camaradas, conseguiram aguentar as suas posições. Veio então um período de acalmia felizmente.

Já passava da meia-noite quando o Furriel Claudino se aproximou do posto de sentinela e perguntou por mim. Eu estava a dormir, pois ia entrar de serviço às duas horas da manhã. Com ele vinha um Sapador que me ia substituir. Os condutores que fossem em coluna na manhã seguinte tinham que sair de serviço imediatamente.

Não gostei de o ver àquela hora, pois não augurava nada de bom. Disse-me: - “Vai dormir que às seis da manhã tens que ter o teu carro preparado. Levanta ração de combate para três dias”.

Perguntei-lhe o que se passava, mas ele disse-me que não sabia.

Às cinco e meia levantei-me, vim cá fora e bebi longamente água do cantil que tinha deixado a refrescar na rua. Vesti o camuflado, calcei as botas de couro, agarrei na arma, nas cartucheiras, no poncho e, dirigi-me ao depósito de géneros, onde levantei as caixas de ração. Era três, uma por cada dia, que ia ficar fora. Continuava sem saber para onde ia, mas na verdade também não interessava muito saber.
A coluna arrancou direito a Bambadinca, comigo iam com as suas Berliet, o Caetano e o Borges.

Chegados lá, ficámos à disposição do Comando de Bambadinca. Se a coisa não tinha cheirado bem até ali, cheirava cada vez pior.

Já era noite quando recebi ordem para carregar a viatura O resto da noite foi passada junto da mesma, com ordens expressas para que ninguém saísse do seu posto. Ia transportar minas e granadas várias para Buruntuma.

Esse destacamento - em que o arame farpado fazia fronteira com a outra Guiné - era um alvo preferencial, por isso íamos tentar reforçar as suas defesas.

Arrancámos de madrugada, ainda noite. A segurança era feita com tropas do Batalhão de Bambadinca e blindados de Bafatá. O Grupo do Marcelino também ia na coluna. Era pois uma Operação de reabastecimento de alto risco. Íamos rodar em zonas altamente perigosas, em que o IN dominava.

A coluna tinha sido rodeada de todo o secretismo, mas com o andar das horas os guerrilheiros poderiam já ter sido avisados. Eram Berliet de vários destacamentos, não me lembro quantas. Lembro-me sim da ordem que proibia que levássemos qualquer passageiro junto de nós, condutores. As viaturas tinham a carga tapada.

Ultrapassámos Nova Lamego direito a Piche. Nós não víamos, mas deveriam estar muitas centenas de camaradas nossos a fazer segurança durante todo o percurso. A partir de Piche o grau de perigo aumentava consideravelmente.

O caminho passou a ser feito mais lentamente. As Chaimites viravam as armas para a mata, mantendo as escotilhas fechadas.

Os outros condutores devem sentir-se como eu, num extremo isolamento. Se houvesse algum ataque à coluna, só nos restava fugir do pé da viatura e da sua perigosa carga.

Estava um sol escaldante não se podia fumar. Por fim Buruntuma estava à vista. Parámos e ficámos bastante afastados uns dos outros. Só entrava um carro de cada vez para descarregar, saindo logo de seguida. Tínhamos de ser rápidos, se não queríamos passar a noite na picada. Aproveitei para comer, pois só tinha até essa altura bebido o leite da ração e água.

Acabou por correr tudo bem.

Os camaradas daquele destacamento estavam numa situação que ninguém no seu perfeito juízo invejava, qualquer deles trocaria comigo sem olhar para trás. Nessa noite ficámos a dormir em Nova Lamego, no dia seguinte fomos para Bafatá, onde encontrámos a coluna da CCS que nos levaria até Galomaro.

Os meus receios em relação a esta viagem, felizmente acabaram por não se concretizar. O PAIGC não atacou Buruntuma, mas descarregou a sua fúria em Canquelifá passados poucos dias...

Aos camaradas, que estiveram directamente envolvidos nestes acontecimentos, peço desculpa por alguma incorrecção, motivada pelos anos e por alguns deles não terem sido por mim vividos pessoalmente.
Juvenal Amado