sábado, 28 de dezembro de 2019

P1196: JÁ NÃO É PARA A NOSSA IDADE....

OS OPERACIONAIS E OS OUTROS…
DIVISÕES ARTIFICIAIS

José Belo
Em alguns comentários recentes em blogue, meus e de outros, muito se escreveu sobre francamente... nada!  O que nas nossas idades é patético. Os "piropos" foram desnecessariamente variados, esquecendo-se que o que se procura comentar são as ideias apresentadas e não quem as apresenta. Misturar maneiras de ser, de estar na vida, de educação recebida na juventude, e não menos, das condições sociais onde nascemos, nada disto terá a ver com os assuntos comentados.

É óbvio que este  conjunto de factores formará as nossas maneiras diferentes de olhar o mundo. Mas justificará a maneira intempestiva como alguns a expressam? Todos podem não concordar em tudo e... ainda bem! Não nos torna uns melhores que outros pelo facto de discordarmos, mesmo que profundamente.

Mas os nossos patéticos "piropos" têm a importância que têm, e  não é isso que aqui me traz. Entre as linhas de alguns comentários começou a insinuar-se a ideia de divisão entre militares operacionais e os outros.

Ora, o que todos (!) temos em comum é termos participado, cada um de seu modo e à sua maneira, na experiência incrível que foi a guerra da Guiné. Marcou os nossos verdes anos. Marcou-nos para toda a vida. O que por lá se sacrificou em sangue, lágrimas, suor, juventude, e, não menos, saúde, tem sido quase impossível de descrever nos nossos livros. Mas em verdade é isso que nos une.

Uma tão importante e vasta Organização como são as Forças Armadas não criou as inúmeras Especialidades militares existentes por simples capricho. Todas elas são necessárias para a "máquina" funcionar dentro dos parâmetros desejados.

O mais heróico combatente das tropas especiais não "funciona" sem as... "Côbinhas Quentes"... produzidas pelo humilde cozinheiro do Quartel. Assim como o cozinheiro não viria a sobreviver na mata sem a guarda atenta do combatente. (Clarinho, clarinho, para militar entender. ) Se alguns de nós tiveram o azar de passar toda a sua Comissão nas matas da Guiné, e outros coube a sorte de servir em especialidades colocadas em localidades mais resguardadas... Na maioria dos casos estas situações nada tinham a ver com eles próprios.

As colocações eram decididas a outros níveis mais centrais. As eternas cunhas e corrupção? É claro que também por lá andavam, como em todos os Exércitos do mundo. Mas, e a não cairmos no "micro-analisar" as situações, será difícil acusarmo-nos uns aos outros. Ao reparar-se na diversidade dos contribuintes para os blogues de ex-combatentes, de tudo existe quanto a Especialidades militares.

É isso que os tem enriquecido, mantido, e feito crescer muito na maioria dos casos. Depois de uma já longa vida de experiências feita, devemos estar atentos e não nos deixarmos cair em divisões que, por artificiais, são desnecessárias.


Um abraço

José Belo

domingo, 22 de dezembro de 2019

P1194: UMA NOITE DIFERENTE...


UM CONTO DE NATAL

A noite estava fria, muito fria! Mais frio estava, no entanto, o seu coração que parecia já nada poder sentir!

Não se dava já ao trabalho de pensar no que tinha corrido mal e porque se tinha deixado empurrar para a rua deixando tudo e todos, família, amigos, enfim, uma vida que tinha tido tantas promessas e afinal em nada tinha tido sucesso.

Nem uma réstia de confiança ou de esperança faziam parte da sua vida agora e o abandono era total, pois não acreditava que ninguém sequer olhasse para ele ou se preocupasse com ele.

Ia caminhando sem alento, sem vontade, (como seria bom morrer!), e hoje ainda mais porque até o vão de escada onde costumava pernoitar tinha sido ocupado por outro mais novo e mais forte com quem ele tinha percebido nem valer a pena discutir.

Ouviu umas vozes. Pareciam-lhe cânticos e percebeu que estava à porta de uma igreja onde acontecia uma qualquer celebração. Lembrou-se então de que era noite de Natal, mas isso não lhe interessou para nada, pois nada tinha importância na vida que agora vivia, ou melhor, que não vivia!

Pensou tão só que podia entrar e sempre estaria algum tempo resguardado do frio. Quando acabasse a celebração decidiria então onde ir, onde dormir.

Assim fez e entrou!
A igreja estava cheia e as pessoas cantavam e rezavam com alegria, com entrega, achava ele.
Coitados, pensou, ainda acreditam em “contos de fadas”!

Teve a impressão de que olhavam para ele, mas como já não lhe interessava o que os outros pensavam dele, sentou-se num banco da igreja, num lugar que estava vago.

Olhou com desdém para o homem que estava a seu lado, mas foi surpreendido por um sorriso e um aceno de cabeça. Muito estranho, pensou ele.

A Missa, claro, era a Missa do Galo lembrou-se ele, que se ia desenrolando sem ele prestar qualquer atenção, a não ser quando o padre estava a pregar dizendo que o Menino Jesus tinha nascido numas palhinhas, numa manjedoura, (e ele logo pensou que era bem bom ter hoje uma manjedoura e umas palhinhas para dormir), que era amor, trazia o amor e que todos se deviam amar uns aos outros … e por aí fora, o habitual.

Riu-se por dentro pensando: Pois claro, olha como eles me amam!!!!

A certa altura todos se ajoelharam e ele, para não dar nas vistas, baixou a cabeça e deixou-se ficar em silêncio.

Sentiu-se bem naquela posição e uma estranha calma, uma quase imperceptível bondade, tomaram conta dele, de tal modo que adormeceu profundamente.

Sentiu que lhe tocavam no ombro, abriu os olhos e viu o seu vizinho de lugar de braços abertos para o abraçar dizendo: A paz de Cristo!

O homem era doido, pensou ele, pois sujo como estava quem é que o havia de o querer abraçar, mas lá se levantou e com alguma vergonha, (coisa estranha nele), lá se deixou envolver no abraço.

A Missa acabou e ele deixou-se ficar para o fim, para gozar um pouco mais do conforto daquele lugar em comparação com o frio da noite.
Quando saiu, sentou-se num canto da escadaria pensando para onde ir, onde dormir naquela noite.

Reparou então que em frente dele, de pé, estava o seu vizinho da Missa que lhe perguntou:
Quer boleia para algum lado?
Riu-se e disse-lhe com um tom um pouco irritado: Acha que tenho algum lugar para onde ir?
Então o homem retorquiu: Hoje é noite de Natal. Eu vivo sozinho, já não tenho ninguém. Tenho uma refeição que preparei à minha espera em casa, mas gostava de a partilhar consigo.
Mau, pensou ele, o que é que este quer???
Mas, curiosamente, o homem inspirava-lhe confiança e mal também não lhe havia de fazer, até porque pior do que ele estava já não podia acontecer.
Levantou-se e com cara de poucos amigos retorquiu: Está bem. Se tanto insiste.

O homem morava ali perto e num instante já estavam no aconchego da casa, mas ele sentia-se mal, sujo como estava, não estava nada à vontade.
O outro percebeu e perguntou-lhe: Quer tomar um banho quente? Somos da mesma estatura e eu arranjo-lhe umas roupas para vestir. Vai sentir-se melhor e depois ceamos.
Tudo aquilo era muito estranho, mas, como dizia o ditado, “a cavalo dado não se olha o dente”.

O seu novo amigo, que entretanto lhe tinha dito chamar-se André, (ao que ele, muito contrafeito, tinha respondido com o seu nome, Pedro), entregou-lhe umas roupas lavadas, uma toalha e mostrando-lhe a casa de banho, informou que ia preparar a mesa e a ceia, para comerem quando ele estivesse pronto. 

Saiu da casa de banho com uma nova disposição. Aquele banho e aquelas roupas faziam-no sentir bem melhor.

Sentou-se à mesa onde já estava o seu “novo amigo” André e ele perguntou-lhe com um sorriso se podia fazer uma oração antes de comerem.
Claro que respondeu afirmativamente, esperando que a oração não fosse muito longa porque cheirava tudo muito bem e ele trazia fome de muitos dias.

O André benzeu-se, (ele fez o mesmo por vergonha), e disse: Obrigado Jesus por Te teres feito homem como nós para nos ensinares o amor. Obrigado porque me conheces e sabes bem como me é difícil passar a noite de Natal sozinho e assim quiseste trazer o Pedro para me fazer companhia nesta noite. Abençoa-nos, protege-nos e guarda-nos no Teu amor.

Uma lágrima teimosa caiu-lhe pela cara e quando começaram a comer ele iria jurar que ouvia por toda a casa um cântico melodioso: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade».

Marinha Grande,
22 DEZ 2019
Joaquim Mexia Alves


sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

P1193: UMA NOITE PREENCHIDA


NATAL 1969 EM BISSAU

Nesta época natalícia há recordações da Guerra que nos vêm mais à memória e o melhor, antes que seja tarde, é passá-las para o papel.


Era véspera de Natal de 1969 e, se bem que a guerra por vezes abrandasse, nunca parava. Era talvez a noite do ano em que mais cautelas havia, em que quem estava de serviço estava mesmo operacional, bem desperto, com os olhos e os ouvidos bem abertos não fosse o diabo tecê-las. E havia sítios e posições que nunca podiam ser descuradas.

Por exemplo, na minha guerra, no STM (1) do QG de Bissau, que comunicava com o mato, com todos os COPs, todos os Agrupamentos, todos os Batalhões, todas as Companhias e até muita outras subunidades, através das quatro redes de rádio (grafia) existentes, que comunicava com a Metrópole, em grafia e em fonia e às vezes até por teleimpressor, com o Batalhão de Telegrafistas na Graça, onde era a Direcção Nacional do STM. 

Aquele encaminhava depois as mensagens para os destinos, comunicando com a Marinha e com a Força Aérea através de teleimpressor (2) (quando funcionava, ou, na sua falta, pelos estafetas de serviço que levavam as mensagens em mão, mediante protocolo, ao Oficial de Dia à Unidade destinatária). A nossa guerra nunca podia parar. E as antenas colocadas ali bem perto, na Antula, eram o suporte e a garantia de que as mensagens chegavam aos seus destinos.

Também tínhamos já nessa altura o fac-simile, equipamento arcaico e nada funcional mas, que mesmo assim, foi o precursor do fax que apareceu muitos anos depois, e que só servia para fazer explorações esporádicas com o BT (3) em Lisboa. Chegámos a ter, só para vista, na altura da visita do Director da Arma de Transmissões à Guiné, um teleimpressor pretensamente “ligado” ao Batalhão de Mansoa. Mas isso são contas de outro rosário.

Com o nosso macaquito, companheiro
de todas as noites
Essa noite de Natal, depois de um jantar mais que atribulado, chegou a meter uma marcha até à messe de oficiais e ao "palácio das confusões" (messe de sargentos) onde os senhores estavam numa grande janta e o pessoal de serviço sem direito a nada. A CCS/QG (4), vá-se lá saber porquê, tinha-se esquecido de nós...

Depois deste pequeno incidente se ter resolvido, e sem que a nossa guerra tivesse alguma vez parado, nessa noite que devia ser de paz, recebemos uma mensagem zulu, (relâmpago), duma unidade do mato de que já não me recordo, e que tinha estado a ser flagelada, a pedir somente, vejam bem, um FRAPIL (5), porque no ataque tinham ficado sem gerador e dentro em pouco ficariam sem comunicações uma vez que as baterias de emergência não aguentariam muito.

Já era tarde, talvez mais de meia-noite, quando isto aconteceu. Eu era o Chefe de Turno do Centro de Mensagens, como fui tantas vezes. Foi só chamar-se o motorista, que estava encostado no Unimog (ainda me lembro, era o Mamadu Djaló, que mais tarde foi motorista de táxi na cidade) e pormo-nos a caminho do Batalhão do Serviço de Material, ali à Bolola, e entregar a mensagem ao Oficial de Dia para providenciar no sentido de o material solicitado chegar ao seu destino logo de manhã cedo.

E assim aconteceu. Bem cedinho, lá foi um Allouette III cumprir esta missão importante. Pouco depois tivemos o reporte de que o FRAPIL estava instalado e tinha começado a cumprir a sua missão recolocando o rádio no ar.

Situações idênticas à que acabo de relatar, e outras muitíssimo mais graves, eram frequentes, sempre em resultado duma Guerra em que os dois lados estavam empenhados. Mas esta, pelo simbolismo do dia, pela solidão da noite, pela saudade de outros Natais, nunca foi esquecida.

Nessa noite, como era habitual, os rádios nunca pararam, mas este caso foi de facto o mais relevante que aqui recordo com nostalgia.

Resta relembrar, quando havia noites calmas, e isso também acontecia por vezes, mesmo assim os rádios nunca paravam, porque de vez em quando, o Posto Director fazia os chamados QTRs (6), só para confirmar que os Postos estavam permanentemente em escuta. E a CHERET (7) estava sempre de ouvido bem aberto.

Carlos Pinheiro

1º Cabo Op. Msgs.

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(1) STM - Serviço de Telecomunicações Militares
(2) Teleimpressor – Equipamento de transmissão de mensagens escritas com teclado e rolo de papel acoplado, com gravador de fita, que foi o precursor do Telex que entretanto caiu em desuso.
(3) BT - Batalhão de Telegrafistas
(4) CCS/QG - Companhia de Comando e Serviços do Quartel General
(5) FRAPIL - Carregador ligeiro de baterias
(6) QTR - Chamada geral do Posto Director para confirmar que toda a Rede estava à escuta e assim se acertava a hora do momento
(7) CHERET - Chefia do Serviço de Reconhecimento das Transmissões

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

P1192: O ESPÍRITO TRADICIONAL DO NATAL


Com autorização da mediotejo.net , uma publicação digital regional, publicamos um texto ali editado recentemente (4DEZ2019), com o título “Restos do Natal da nossa tradição”, por António Matias Coelho, defensor do velho espírito de Natal. Com a devida vénia ao autor e à mediotejo.net.
RESTOS DO NATAL
 DA NOSSA TRADIÇÃO
António Matias Coelho
António Matias Coelho é ribatejano. De Salvaterra, onde nasceu e cresceu. Da Chamusca onde foi professor de História durante mais de 30 anos. Da Golegã, onde vive há quase outros tantos. E de Constância, a que vem dedicando, há não menos tempo, a sua atenção e o seu trabalho, nas áreas da história, da cultura, do património, do turismo, da memória de Camões, da comunicação, da divulgação, da promoção. É o criador do epíteto Constância, Vila Poema, lançado em 1990 e que o tempo consagrou. Escreve no mediotejo.net na primeira quarta-feira de cada mês.

Sendo das festas do ano uma das maiores de todas, pela importância que tem e pela que lhe damos nós, o Natal é mais privado do que festejo de rua. É a festa da família, vivida dentro de casa, afinal o que tem na essência é que um menino nasceu, tem mãe e pai junto de si, por muito pobre que seja é esta a maior riqueza.
O Natal que temos hoje, trazido pela televisão, pela cegueira consumista, pelo desperdício das prendas, pelas imitações estrangeiras, pais natais, árvores do norte, é um produto recente do mundo em que a gente vive, mais virado para a imagem do que para a substância, muita coisa, pouco afeto.
Felizmente ainda há, numas quantas casas da nossa terra, lembranças de outro Natal, que vem da nossa raiz, tão vistoso não será, mas é bem mais verdadeiro. São os fritos que a avó faz, velhoses, coscorões, o pratinho de arroz-doce, o bacalhau da consoada, um jeito que nos ficou do bacalhau a pataco que era comida de pobre, onde é que isso já vai…
Presépio 2019 - Foto de António Matias Coelho
E o presépio, que ainda se arma num canto da nossa casa, com musgo vindo do mato, um lago com um patinho, caminhos, uma ponte, um pastor, um rebanho de ovelhas, imagens de um mundo rural onde nascemos e que trazemos na essência, e a cabana, a vaca e o burrinho, a Virgem e S. José, e o Menino, o centro das atenções, o símbolo da vida que começa, o Natal é isso mesmo, nascer, abrir os olhos para o mundo.
Tem Reis Magos o presépio, três, um de cada raça, a lembrar que a cor não interessa, o que importa é a dádiva que o gesto deles traduz. Vem daí a tradição, definitivamente perdida, de em noite de Natal, terminada a consoada, irem as crianças dormir na ânsia do dia seguinte, já que durante essa noite vinha o menino jesus, escrito assim, com minúsculas, pois para aquelas crianças, que nós fomos noutro tempo, esse era nome de prenda, quantas vezes sendo o menino jesus a única do ano inteiro.
Desse Natal da nossa tradição faz parte a missa do galo, rezada à meia-noite, a que toda a gente ia, nem que alguma ficasse à porta por não ser muito de igreja, com o seu fato melhor e um ar de festa no estar. 
Madeiro de Natal
Foto: Gazeta do Interior
Da tradição também é o madeiro que em algumas aldeias se acende ainda no largo maior da terra, quase sempre ao pé da igreja. São uns cepos de tamanho descomunal que para ali se trouxeram para aquecer os corpos e alumiar a noite, a da consoada não, a seguinte, que é a noite do madeiro, e as outras por aí fora, é tanta a lenha para arder que fica acesa a fogueira, se não cair muita chuva, até chegar o ano bom.
E em roda do fogo, onde se assam coiratos, chouriços, coisas assim, se junta a gente da aldeia, por tradição mais os homens, cavaqueando, esfregando as mãos enregeladas, aquecendo o sentimento que os liga uns aos outros, sempre o lume teve o condão de aproximar as pessoas.
Sendo essa, como se sabe, a mensagem do Natal, bem merecia o madeiro continuar por muito tempo a ser aceso nos lugares da nossa terra, lembrando que estar com os outros é um bem que não se deve extinguir (*).
(*) Este texto, ao qual se introduziram agora ligeiras alterações, integrou originalmente o Caderno da Ascensão A Fé e a Festa, publicado pela Câmara Municipal da Chamusca em 1998, p. 53-55. 

sábado, 14 de dezembro de 2019

P1191: UMA EXPLICAÇÃO PARA OS MAIS CURIOSOS...


UMA QUESTÃO DE “POSTERS

Helder Valério Sousa
Existem alguns artigos no Blogue “Luís Graça e Camaradas da Guiné” onde apareço ao lado dum “poster” com Ernesto “Che” Guevara. Nunca disse que o “poster” era meu, nem que estava no meu quarto.

Sobre esse facto vários amigos, partindo do princípio que tal situação seria como eles tinham “decidido”, foram tecendo diferentes considerações, algumas lá publicadas nesses artigos como comentários aos mesmos, ou também de modo particular.

Uns interrogavam como era possível haver numa parede dum quarto de militares em Bissau uma imagem de uma pessoa que, afinal, inspirava os adversários, outros intrigavam-se como me teria sido permitida tal situação, outros ainda aproveitavam a circunstância para tecerem críticas ou louvores (conforme os seus próprios entendimentos) à realidade daquela existência e/ou ao personagem em si mesmo.

Ora bem, esse “poster” não era meu nem estava no meu quarto. Estava sim num outro quarto na mesma vivenda que habitava, anexa ao Centro de Escuta onde desempenhava funções.

Confesso que nunca colocaria aquele “poster”. Não porque a figura do “Che” me fosse odiosa, não senhor, tinha até alguma admiração pela coerência que esse médico argentino colocava na sua acção, dando corpo na prática à teoria que apregoava e propunha, mas eu entendia que as “revoluções” não se exportavam, em cada local deveriam ser os seus povos a fazer a revolução, se assim o entendessem, e se lhes fosse possível, com os meios que conseguissem concitar.

Sei que aquela foto, a do “Che”, é da autoria de um tal Alberto Korda (*), um ícone da “Art Pop” e é, talvez a mais publicada e mais idolatrada pelos seus admiradores. Mas, na realidade, não sei quem a comprou, onde, quando e quem a colocou.

No meu quarto, a partir de certa altura, havia, isso sim, um “poster”, também muito conhecido, com um músico famoso naqueles tempos, o Frank Zappa, que aparecia sentado numa sanita, aparentando defecar. Foi colocado no nosso quarto (meu e do meu camarada Nelson) após termos feito “melhoramentos”, incluindo pintar as paredes de castanho, com tinta de óleo.

Isto aconteceu porque o Comandante (das Transmissões) tinha o hábito de aos sábados “passar revista às tropas e às instalações e alojamentos”, coisa que muito incomodava os senhores Sargentos que, em surdina, refilavam porque achavam que já eram crescidinhos e não precisavam de um “paizinho” que lhes fosse dizer que tinham de lavar e desinfectar o quarto, fazer melhor as camas, etc. Mas não se atreviam a “fazer coisas”.

Deste modo, eu o Nelson, se bem congeminámos a situação, melhor o fizemos. Pedimos autorização para limpar e pintar o quarto, o que nos foi concedido, e lá foi feito como disse, Na janela, em jeito de quebra-luz, foi colocado um pano amarelo-dourado (que se completava lindamente com o castanho da parede) e com as cobertas verde-seco das camas. A lâmpada do tecto era de fraca potência.

Aquando da habitual vistoria ocorrida logo após esses “melhoramentos” o Comandante “Raminhos” quando abre a porta do nosso quarto depara-se com uma penumbra e um ainda intenso cheiro a tinta e pouco ou nada consegue ver. Aproxima-se do “post” do Zappa, pisca os olhinhos, e com o seu sotaque de “xopinha de maxa”, vai repetindo “ixto extá uma borrada, ixto extá uma borrada” e saiu. E nunca mais houve vistorias aos quartos dos Sargentos!

Por tal, não posso precisar se o tal “post” do “Che” já foi colocado depois desta “falta de vigilância” ou não. Caso sim, está explicado. Caso não…. Não sei dizer.

Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF

(*) Alberto Díaz Gutiérrez, mais conhecido por Alberto Korda ou simplesmente Korda (14 de Setembro de 1928 – 25 de Maio de 2001), foi um fotógrafo cubano tornado famoso por esta imagem do revolucionário marxista argentino Che Guevara obtida em Havana em 5 de Março de 1960.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

P1189: RECORDAÇÕES DO JERO

ALCUNHAS DO TEMPO DA VIDA MILITAR 
QUE NÃO ESQUECEM / 6

”JUCA”, O MINHOTO PURO

JERO
O Correia era por todos conhecido na Companhia por “Juca”. De estatura meã, a pender para o pequeno, o JUCA não tinha quaisquer complexos por ser baixo. Os homens não se medem aos palmos e, curiosamente, o JUCA tinha uma voz que se ouvia longe e que não o deixava passar despercebido. Onde estava o “JUCA” podia não se ver à primeira vista mas que se ouvia “acima” dos outros era rigorosamente verdade. Dizia com frequência que era “minhoto puro” (natural de Ponte de Lima) e “afinava” a sério quando a sua “casta” era posta em causa.

Era um jovem alegre, bem disposto que ,como militar, não deixava os seus créditos por mão alheias. Furriel de “Armas Pesadas” carregava com galhardia a sua bazuca que, felizmente, não teve que utilizar muitas vezes. Pertencia ao 1º. Pelotão, comandado pelo Alferes Costa. Até se deslocar para Guidage com o seu pelotão pode-se dizer que o Juca foi sempre um militar aprumado e um jovem bem disposto e sem problemas em Binta.

Guardo na memória uma “sacanice” que lhe fiz. Não me orgulho muito da “brincadeira” que não se faz a ninguém... quanto mais a um amigo. A atenuante – a existir – só poderá ter a ver com a idade do autor e com a falta de divertimentos que havia (ou não havia) na vila de Binta...

JUCA... e JERO
O JUCA tinha um medo terrível de injeções. Era um autêntico caguinchas! Quando foram dadas as primeiras vacinas para “a doença do sono” baldou-se. Nós tínhamos registos na Enfermaria e sabíamos que ele estava em falta. Constava – e era verdade por que também a levei – que a vacina por via intramuscular era dolorosa. Essa “má nova” foi passando na Companhia e os cagarolas foram-se baldando ,apesar das recomendações do Serviço de Saúde local...

Chegaram novas vacinas e surpreendentemente o novo medicamento não fazia doer nada... Lá conseguimos ver na Enfermaria os “caguinchas” em falta e finalmente o meu amigo Juca compareceu para o “castigo”. Ainda cheio de dúvidas lá o consegui convencer a deitar-se numa “marquesa”, ao lado de outra marquesa ocupada por outro  militar de que já não recordo o nome. E disse-lhe: – JUCA vou vacinar primeiro este militar e depois ele vai dizer-te se lhe doeu alguma coisa. Ok?

Vacina dada e o militar confirmou. – Não dói nada.

O JUCA ,que estava nitidamente assustado, pareceu ganhar algumas cores. Animei-o - "Descontrai-te e deita as calças abaixo". Finalmente, o JUCA pôs-se a jeito. Preparei a vacina que... era do stock anterior (a tal que doía como o caraças) e lá vai disto. Dei-lhe a injecção e o JUCA... levantou-se da maca que nem um tiro. Julgo que até vomitou. Saiu da Enfermaria com as calças na mão e com agulha ainda espetada no rabo.

Parece que o estou a ver. Foi uma cena autenticamente à Cantiflas... Corri atrás dele, consegui acalmá-lo e tirar-lhe a agulha que lhe enfeitava a nádega. Coitado do JUCA... ainda me agradeceu. Fiquei cheio de remorsos com a minha brincadeira. Só anos depois lhe contei a verdade e, está claro, nessa altura chamou-me tudo menos... bom rapaz. E com razão.

Mas voltando à guerra…O pelotão a que pertencia o JUCA foi escalado para uma “temporada” em Guidage, um posto na fronteira com o Senegal situado a cerca de 20 quilómetros de Binta. Até então nada de complicado tinha acontecido em Guidage, que “cheirava” mais a um espaço para férias do que para guerras. 

Mas um dia – há sempre um dia - aconteceu um facto anedótico que acabou tragicamente. No interior da cerca do arame farpado que fazia fronteira com o Senegal havia uma espécie de “tasca”, que não era “militar” mas que dava para beber um copo. Um “terrorista”, ou simpatizante da guerrilha que combatia a tropa portuguesa, veio beber um copo à tal “tasca” e foi denunciado como “inimigo”. Foi feito prisioneiro mas o destacamento de Guidage não dispunha de prisão.

Foi preparado um pequeno espaço para tal efeito num pequeno anexo exterior a uma morança que não tinha janelas mas apenas uma porta… sem fechadura ! Foi improvisado um “posto de sentinela” no exterior do arame farpado e organizados turnos. Num turno noturno de quatro horas “avançou” então um soldado africano. Aquele militar deverá ter sentido algum tempo depois “os pés frios”, encostou a sua espingarda ao arame farpado da vedação e dirigiu-se à morança onde vivia com a mulher. 

O prisioneiro apercebeu-se que a sentinela se ausentara do seu posto e arriscou sair do seu cubículo. Nas calmas passou por entre as fiadas de arame farpado e pôs-se ao fresco. Nem se preocupou com a espingarda abandonada, com que poderia ter abatido uma ou mais sentinelas.

Horas depois “rebentou a bronca”. O prisioneiro tinha fugido e o soldado (pouco) responsável pela fuga não conseguiu explicar o que acontecera… inexplicavelmente. Foi severamente espancado, agredido de toda a maneira e feitio pelos militares do 1º.pelotão. Começou-se por murros na cara, pontapés por todo o lado e quando acabou “o castigo” o infeliz não dava sinais de vida porque simplesmente estava morto. Ninguém que lhe tinha batido como castigo pensara que lhe podia acontecer o pior. Mas aconteceu.

Dias volvidos um oficial do Batalhão sediado em Farim veio até Guidage para instaurar um processo de averiguações. Chegado ao seu destino o averiguante bebeu uns copos com o comandante do destacamento e o nosso Alferes, supondo pisar terreno firme, narrou em “off” os pormenores dos acontecimentos turbulentos do dia da fuga do prisioneiro e do espancamento que se seguiu na pessoa do soldado africano responsável pela fuga. Cavou o buraco onde ia ser enterrado…

Encurtando razões: O processo chegou ao Tribunal militar, que decidiu castigar os três graduados presentes na altura do espancamento ao nosso militar africano. Foi aplicada uma pena de 24 meses de prisão ao Alferes, 12 meses de prisão a um 1º Cabo e 18 meses de prisão ao JUCA, que era Furriel Miliciano naquele tempo.

Viemos  anos mais tarde a saber pelo JUCA que esta prisão não foi efetiva: passeavam durante o dia por Bissau para “passar o tempo” e à noite dormiam na prisão.

O JUCA
(Foto recente)
Mas os problemas para o JUCA não acabaram quando regressou à Metrópole um ano e meio depois dos seus camaradas da Companhia. Antes do serviço militar ele era  funcionário público numa  Repartição de Finanças e à chegada foi informado de que tinha sido expulso da função pública.

Foram tempos difíceis, mas veio a arranjar outro emprego, a constituir família e a fixar-se na cidade de Aveiro. Cresceu um pouco – para os lados – e continua a falar alto.

Tem feito toda a sua vida na região de Aveiro mas vê-se nele, sem dificuldade, que é “um minhoto puro”. Um bom homem que passou na vida por algumas “guerras” difíceis. E não se esquece da injeção contra o doença do sono que o “amigo” Enfermeiro lhe espetou! Não gosta de falar de guerra e tem faltado a alguns convívios da “675”.

 Mas... tal como nós concorda que na guerra todos os mortos... são demais!
JERO

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

P1188: ADEQUADO À NOSSA GERAÇÃO...

Temos o prazer de reproduzir um poema escrito pelo nosso camarigo Juvenal Amado e recentemente publicado no blogue “Luís Graça & Camaradas da Guiné”. Decisão que nos agradou tomar dada a sensibilidade e emoção que emana do poema, a que acresce o facto de este belo texto já estar escondido nas “páginas seguintes” do blogue da Tabanca Grande. Teremos assim a possibilidade de partilhar com mais uns tantos camaradas um poema de grande sensibilidade que dirá muito a grande parte dos nossos camarigos, que passam ou já passaram por momentos idênticos.

Com a devida vénia ao Juvenal Amado e à Tabanca Grande, que publicou este poema.

Os editores

Juvenal Amado
“Caros camaradas,
É costume falarmos das agruras do nosso passado de militares mas hoje cabe-me falar das alegrias do presente, bem como de algumas dores nas costas.
Há um ano nasceu o meu neto Henrique, e como esse acontecimento veio transformar a minha vida de piloto experimental de sofás, bem como umas reconfortantes sestas, numa agitação de parques infantis, sopas e fruta esmagada, fraldas mijadas e, pior que isso, choradeiras e agora já com umas nódoas negras.
Não é nada que milhares de camaradas não tenham passado e perguntarão alguns para quê tanta tragédia. Mas para que servem os momentos felizes se não falarmos deles e dos seus actores, agora que estão aí as castanhas e a água-pé mais logo o vinho novo?
Assim sendo cá vai um poema que as cataratas me deixaram escrever.

Um abraço para todos
Juvenal Amado

PORQUE TARDASTE?


Porque tardaste tanto?
- Não conhecerás se não os meus olhos cansados

As minhas mãos que tremulam
O meu andar pesado e lento
As minhas barbas brancas
O meu cabelo raro.

-Porque tardaste tanto?
Miro-te
Não sabes ainda que o tempo será sempre pouco
Vou guardar o teu sono
Pois os dias em que te contemplo serão curtos
Não te assustes com o vento e trovoada
Que eu rezo a Santa Bárbara.
- Vou ajudar nos teus os primeiros passos
Vou magoar-me com o teu choro
Quero-te mostrar a beleza do mar
Ensinar-te o quanto é suave o odor das árvores
Por recompensa beberei o teu riso
Cada gargalhada tua será um hino.
- Só chegaste no meu entardecer
Fizeste-me renascer
Trouxeste-me amanheceres límpidos
- Porque demoraste tanto a chegar?
Só tenho amor para dar e estórias para te contar.

                                             Juvenal Amado