segunda-feira, 28 de julho de 2014

P524: HOMENAGEM A UMA PESSOA DE BEM





Nem todos temos história nas nossas vidas e menos ainda histórias que mereçam ser contadas pelos outros, não devemos por isso desperdiçar as oportunidades de lembrarmos aqueles que o merecem.


São verdadeiros actos de camaradagem, que por vezes nos ligam sem que saibamos explicá-los, pelo menos eu não sei, já que não envolveram qualquer perigo. Porém, aquilo que eu aqui considero ser uma história poderá não o ser para outros, mas essa é uma opção pessoal que deve ser feita no respeito de todos.

A narrativa a seguir trata um assunto passado na primeira pessoa e pretende apenas dar a conhecer, de forma simples e singela, a pessoa de bem que foi - e estou convicto, continua a ser - o aqui visado.

Decorria o ano de 1971 quando fui colocado no Porto para tirar a especialidade de telegrafista de engenharia.

Iniciámos a especialidade sem que houvesse qualquer oficial no comando do pelotão, tínhamos apenas um 1º cabo que nos orientava. Isto aconteceu durante uma ou duas semanas, não posso precisar o tempo certo.

Dizem que só os diamantes são eternos e esse tempo acabou dando lugar ao finalmente chegado Aspirante para comandar o nosso pelotão, a partir daí tudo iria depender deste Aspirante a Oficial.

Após a sua apresentação, ficámos a conhecer o seu nome, Francisco Silva, mas desconhecíamos tudo mais a seu respeito. Pela sua postura e trato delicado, confesso que receámos ter que aturar um qualquer “beto”, na caserna; falámos entre nós da sorte que nos havia calhado, mas não foi necessário muito tempo para podermos começar a ver o perfil e fazer um juízo correcto deste nosso comandante.

Em determinado dia, numa aula de exercício de morse, todos falávamos sem que a atenção fosse muita. É então que o nosso superior nos pede, isso mesmo, de forma ordeira e civilizada, como se de um irmão mais velho se tratasse, para não fazermos barulho. 

Mas como, se todos os 60 ouvidos fossem surdos, nada tivemos em atenção, ouviu-se então uma voz mais forte dizer “há muitas maneiras de os fazer calar (cuidado, estava à porta um fim-de-semana, era sagrado, fez-se um silêncio sepulcral e a frase continuou), uma delas é pedir para não fazerem barulho”.

Claro está que aquela forma de nos chamar à razão foi um primeiro passo para vermos a categoria e a classe deste senhor.

De uma outra vez, na formatura que era norma a seguir ao almoço, houve um senhor, perdoem o exagero do termo, um tenente (o Eduardo Campos e o Hélder Sousa saberão certamente de quem falo), que era o comandante da companhia e se lembrou, do alto do palanque onde se reuniam todos, ou quase todos, os oficiais durante aquela formatura que juntava três ou quatro companhias, de dizer alto e em bom som pata toda a parada o ouvir, ”Ó Silva, junte-se aos seus” ao que o Aspirante Francisco Silva de pronto respondeu sem se afastar do local onde se encontrava, mas colocando-se em sentido “Mas, meu tenente, eu estou junto aos meus, aos meus homens”, e tudo continuou sem mais conversas ou diálogo.

Posteriormente soubemos que a unidade iria ser alvo de uma visita do comandante da arma de transmissões de engenharia, um major, ido de Lisboa. Como sempre acontece nestas situações, na véspera fomos chamados à razão por um outro oficial, não estou certo se o comandante da unidade ou o segundo comandante, onde nos foi dito quem era esse oficial, por sinal ex-camarada e cunhado do nosso aspirante e comandante do pelotão, e onde nos foi igualmente dito que este nosso Aspirante só o era por haver deixado a Academia Militar, mesmo tendo sido campeão nacional de esgrima pela mesma, tendo-a trocado pelo estudo na Alemanha, onde se formou em engenharia electrónica. Ficámos ainda a saber ser ele descendente de várias gerações de oficiais generais a que não deu seguimento com grande pesar da família.

Depois de todos estes acontecimentos, os mais significativos para este escrito, nos meses seguintes não mais nos lembrámos do superior, antes e só do amigo a quem atendíamos a todos os seus pedidos com agrado.

Acabada a minha especialidade e feito o estágio, fui mobilizado para a Guiné e não mais voltei a cruzar-me com ele.

Um dia, muitos anos passados, ia eu almoçar com a minha mulher, que trabalhava perto de mim, passámos a alguma distância de um grupo de indivíduos no meio dos quais o reconheci e comentei: “Aquele individuo ali esteve comigo na tropa”, ao que a minha mulher respondeu de pronto: “É o engenheiro Francisco Silva, trabalha na PT”.

Posteriormente quis a sorte e o destino que nos cruzássemos algumas vezes. Passávamos e cumprimentávamo-nos, mas sem que qualquer um de nós parasse ou tomasse a iniciativa de esclarecermos o nosso conhecimento. Até ao dia em que a propósito do meu trabalho e do lançamento de um seu livro sobre o espectro radieléctrico no espaço e na sociedade, editado pela Caminho, nos voltámos a encontrar. Aí sim, quando lhe pedi para me autografar o livro perguntei-lhe: “Lembra-se de mim?”. De pronto respondeu sobre o tempo que passámos juntos no Porto. A partir desse dia, sempre que nos cruzávamos o cumprimento era diferente, especial. 

  
Não sei quanto tempo mais tinha passado ou quantas mais especialidades teria dado, mas lembrar-se de um recruta de um qualquer quartel durante um percurso militar, mostra uma capacidade invulgar.

A vida nem sempre corresponde ao que merecemos, a infelicidade roubou-lhe um filho de tenra idade e obrigou-o a um reconhecimento tardio na sua vida profissional, talvez por opções políticas, mas acabou por afirmar-se e ter o destaque internacional, certamente merecido, sendo hoje uma figura reconhecida na sua área dentro da Comunidade Europeia.

Desde 2001, após a minha aposentação, deixámos de nos encontrar, mas certamente não nos esquecemos um do outro e eu devia-lhe esta homenagem. Não é, ou pelo menos não era, fácil encontrar no meio militar, nem mesmo na vida civil, figuras humanas que, com vinte e poucos anos tivessem tão grande dimensão e tenham sabido manter as suas orientações, de forma simples e humanas, sem necessidade do recurso à força e/ou a pavoneios ao longo das suas vidas.

Belarmino Sardinha

(*)  Para além deste livro, outras obras suas foram publicadas pela Editorial Caminho:
     "Quadratura do Círculo", "Reviravolta" e "Narrativa Nova".
Legenda das fotos:
1 - Da esquerda para a direita: O Caldeira, o Rocha e o Belarmino
2 - O Rocha e o Belarmino numa sala de instrução de Morse
3 - O Belarmino, pronto para um reforço
4 - Capa e dedicatória do livro

domingo, 20 de julho de 2014

P522: DO JOSÉ BELO



OUTRAS BANDEIRAS…
OUTROS COSTUMES…
OUTRAS GENTES…

Tenho por vezes meditado sobre os sentimentos com que milhares de portugueses, nascidos, educados, muitos combatendo nas colónias sob a bandeira tradicional de séculos, azul e branca, se terão sentido quando, bruscamente, com a implantação da República, a Bandeira Nacional mudou totalmente de cores e símbolos, acabando as cores tradicionais por serem substituídas pelas cores partidárias (!) de um dos agrupamentos políticos republicanos.

Apesar de a bandeira verde-rubra ter ainda bem poucas décadas em 1974, como teriam reagido os portugueses se algum dos muitos "iluminados" de então têm decidido mudar as cores da Bandeira Nacional Republicana? E se, para mais, viesse a adoptar para a nova bandeira as cores de um dos quaisquer Partidos de então?

Hoje colocam-se bandeiras da União Europeia em lugares de honra esquecendo que infelizmente a tal Europa "Unida" e a sua bandeira, o que neste momento representam não será muito digno de orgulhos.

A igualdade e solidariedade entre os povos que esta bandeira deveria representar são  substituídas pelos termos "Nós", os ricos, os que trabalham, os sérios, os capazes... e "Eles", os outros, os das praias ao Sol...

Nesta dialéctica de falácias feita, antes lugares de honra para a "pobre" bandeira verde-rubro, que nos representa como o Povo que somos, com os nossos grandes defeitos, mas também, e não menos, com as nossas grandes qualidades humanas... Qualidades que infelizmente talvez só sejam compreendidas, em toda a sua profundidade, pelos que vivem sob outras bandeiras há muitas décadas.

Como curiosidade, e quanto à Escandinávia e as suas bandeiras, recordo que, quando aqui cheguei há cerca de 40 anos, estranhei que, frente a cada vivenda, quinta, casa de férias da mais pequena à mais luxuosa, havia um pau de bandeira. Não um pau de bandeira "à janela", mas um típico pau de bandeira "militar" enterrado no solo.

Não só nos feriados e festas nacionais, mas também em dias de aniversário, casamentos, baptizados ou outras festas familiares, a bandeira lá está, bem alta e orgulhosa.
E, quando de morte na família colocada a meia haste.

Ao passar-se de carro numa qualquer estrada, ou de barco frente a estes milhares (!) de ilhas, é impressionante o aspecto festivo das vilas e aldeias com as suas bandeiras nacionais ao vento.
Do extremo sul ao extremo norte de todos os países Escandinavos, incluindo a Finlândia.

Ninguém é obrigado a ter a bandeira. Tendo-a, existem regulamentos rígidos sobre o uso da mesma e multas avultadas para aqueles que os não cumpram.

Por exemplo, a bandeira não pode estar velha, esfarrapada, ou com perda de cor.
As dimensões das bandeiras são estabelecidas, assim como os paus das bandeiras em relação aos tamanhos das casas que os usam, para em nada serem ridículos ou exagerados, e portanto menos próprios.
Isto, em toda a sua simplicidade, tem muito a ver com um sincero e generalizado orgulho da Pátria, valores, cultura e símbolos.

 Nos nossos Regimentos a Bandeira Nacional é guardada em armário envidraçado em sala de honra. Tradições escandinavas colocam-na em lugar dominante na caserna dos soldados mais antigos, sendo assim a última coisa que estes militares olham ao recolher e a primeira a ser vista à alvorada.

Outras bandeiras... outros costumes... outras gentes...

Um grande abraço do
José Belo.




quarta-feira, 16 de julho de 2014

P521: RAMBO DE TRAZER POR CASA



UMA IDA À MATA!

Olhei para a minha G3 (feita especialmente para mim), e chamei os furriéis:
- Ó Manel, manda lá o pessoal preparar-se que hoje apetece-me encontrar os gajos e pregar-lhes uma carga de tiros!

O Furriel Manel, entre o brincalhão e o apreensivo voltou-se para os outros e disse:
- É pá, cuidado com ele! O Alferes hoje tá danado para a porrada! Até já “tou” com pena dos turras! 

Reentrei no meu quarto e comecei a preparar-me.
Pintei a cara e as mãos segundo a melhor arte de camuflagem e vesti o camuflado.

No tornozelo direito coloquei num coldre apropriado a minha Walter PPK. No tornozelo esquerdo o meu revolver Smith & Wesson, fiel companheiro de tantas idas ao mato sem nunca encravar.

À volta da cintura, presas ao cinturão 4 granadas defensivas enquadradas pelos diversos carregadores de munições das diferentes armas.

Presa à passadeira do camuflado no ombro esquerdo coloquei a minha indispensável faca de mato, que já me tinha valido a vida em tantas lutas corpo a corpo naquelas matas da Guiné.

Olhei para o cantil da água e coloquei-o de lado. Homem que é homem não bebe água e um guerrilheiro não tem sede!

Em vez de levar o cantil, coloquei mais duas granadas à cinta e no ombro direito.
Coloquei os óculos de lentes amarelas no bolso do peito, porque já sabia que me iam fazer falta para ver os turras empoleirados nas árvores no meio da folhagem.

Olhei-me no espelho grande que tinha no quarto e um ligeiro tremer apoderou-se de mim.
Porra, até a mim eu metia respeito!!!

Saí para a parada e do meu Pelotão formado saiu um Ah! de espanto e temor! Eu tinha esse condão! 

Quando saía para a mata em operações o pessoal ficava sempre à rasca quando me via. Ou não tivesse eu a fama que tinha!

Ouviam-se pelo meio dos soldados uns murmúrios que diziam:
- É pá o gajo hoje “tá” de todo. Coitados dos gajos, nem têm hipótese!

Como sempre fazia, levantei a voz e disse para os meus homens:
- Pessoal já sabem como é. Não há misericórdia, nem fazemos prisioneiros, e já sabem que enquanto eu estiver a dominar a coisa sozinho, vocês não metem o bedelho!

Só o Furriel Manel é que fica incumbido de atirar aos gajos das árvores se eu não os conseguir abater a todos.
Todos têm as palhinhas para respirarem debaixo de água?

Era o meu melhor truque!
Colocávamo-nos dentro de água, totalmente imersos e a respirar por umas palhinhas e quando os gajos se chegavam ao rio era só saltar de dentro de água e disparar a torto e a direito! Nem um só escapava!

Olhei para o pessoal, olhos nos olhos de cada um, e comandei em voz alta e forte:
- Vamos lá despachar uns gajos que eu quero chegar a tempo de beber a cervejinha da tarde!!!

Ouviu-se uma grande algazarra, vozes a discutir, etc, e depois finalmente uma voz que dizia esganiçada:

- Porra! Façam silêncio no estúdio que estamos a filmar!!!


Monte Real, 19 de Outubro de 2009 

Joaquim Mexia Alves



Este texto foi originado ao ouvir e ler algumas histórias mirabolantes de alguns, (poucos, felizmente), combatentes, que se esquecem, muito provavelmente, que houve outros combatentes que por lá andaram e conhecem a realidade da Guerra do Ultramar.