quarta-feira, 30 de setembro de 2020

P1252: PARA CONTRARIAR UMA CERTA LEVIANDADE...


O  BOATO

Juvenal Amado
O bom do Sardeira (1) tinha por missão ir às Duas Fontes (2), local a 6 km do quartel, com o Unimog, mais conhecido por burro do mato, encher o auto-tanque de água.

E assim durante muito tempo, logo de manhã, com uma Secção de homens armados, lá ia ele picada fora aproveitando para dar boleia às bajudas (3) que, nisto de andar de carro, estavam sempre prontas. Iam... e depois vinham.

O meu amigo Sardeira usava uns óculos que mais pareciam o fundo de duas garrafas, tal era a grossura das lentes. Mais tarde, no nosso primeiro almoço de confraternização, passados vinte anos, em Seia, reparei que ele não trazia os famosos óculos. Quando lhe perguntei por eles, com ar maroto respondeu-me que os tinha deitado fora, mal tinha saído do Niassa em Lisboa. Verdade ou não, não deixa de ser sempre tema de conversa e brincadeira entre nós, quando nos juntamos.

Unimog
Mas, voltando atrás no tempo, este nosso camarada ia encher o autotanque, duas vezes de manhã e duas vezes de tarde. Assim foram passando os meses e, não se tendo verificado quaisquer incidentes, ele foi abrandando o cuidado e, de vez em quando, pegava na viatura e lá ia ele direito às Duas Fontes, sem escolta.

Escusado será dizer que, em situação de guerra de guerrilha, esta atitude era uma tonteira - e era naturalmente assunto de conversa entre nós. Até que ele passou a ir mais vezes sem escolta do que com ela.

Nós, meio a sério meio a brincar, dizíamos-lhe: - “Qualquer dia ainda te lixas!” - e ele respondia a gozar que éramos medricas e que não havia perigo nenhum.

O tempo foi passando. Um dia lá vinha ele a chegar do seu passeio, o Caramba gritou-lhe que ele estava a forçar a sorte. Ele riu-se e disse que não havia azar, ao que o Caramba retorquiu:

Galomaro
- “Ah, pois, vai ter com o Narciso das transmissões que ele diz-te o que a Maria Turra (4) disse sobre apanhar o condutor da água de Galomaro à mão!”

O Sardeira mudou de cor e num riso um bocado amarelo, ainda disse: - “Estás a gozar!”

Caramba muito sério, na sua forma falar de alentejano dos quatro costados, retorquiu:
- “Não se está vendo? Andas brincando com a sorte!”

À custa desta conversa fartámo-nos de rir, mas a mentira passou a ser uma verdade e nenhum de nós se desmanchou junto dele…

A estória correu o quartel e à boa maneira de quem conta um conto, acrescenta um ponto, a peta alastrou.

O que é certo é que o camarada passou a querer mais segurança e nunca mais lá foi buscar o precioso líquido, sozinho...

Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
_______

Notas do Juvenal:

(1) O primeiro encontro entre nós, passado vinte anos, deveu-se em grande parte ao trabalho desenvolvido pelo Sardeira que, a par com o Alfredo Chapinhas, fizeram um trabalho notável para que o almoço se realizasse. Ele veio de propósito encontrar-se comigo em Alcobaça, para que eu fornecesse os números de telefone dos camaradas que ainda estavam em contacto comigo.

(2) Duas Fontes: local onde abastecíamos de água perto de Bangacia. Era um local que inspirava confiança, mas não podemos esquecer que essa mesma confiança custou a vida a seis camaradas do Batalhão antigo, que ali foram emboscados.
Bangacia foi também destruída por um ataque durante a nossa comissão. Nós reconstruímos a povoação com ordenamento tipo Baixa Pombalina, com escola, posto médico - e o PAIGC nunca mais atacou. Deve ter considerado que era uma coisa boa a manter para quando a paz chegasse. E tinham toda a razão…

(3) Bajudas (para quem ainda não sabe…): nome dado às moças solteiras da Guiné.

(4) A “Maria Turra era a Amélia Araújo, locutora da “Rádio Libertação” (estação pró-PAIGC que a nossa tropa por vezes sintonizava), angolana de origem, casada com o militante e dirigente politico do PAIGC, José Araújo, que até ao 14 de Novembro de 1980 foi um dos altos responsáveis do PAIGC na Guiné.


quarta-feira, 23 de setembro de 2020

P1251: RECORDAÇÕES DOS TEMPOS DE BISSAU


PEDAÇOS HISTÓRICOS PERDIDOS NA GUINÉ 
EM 1969
Só o facto de estarmos em guerra, só o facto de estarmos em África, mas também pelo facto das comunicações da altura não serem nada, nem de perto nem de longe, do que hoje dispomos, leva-me a relatar alguns factos, mais ou menos históricos, que não presenciámos, que não testemunhámos por estarmos forçadamente ausentes do nosso cantinho, da nossa família, dos nossos amigos, mas dos quais nunca duvidámos uma vez que, mesmo à distância, lá nos chegaram, dias mais tarde, ecos desses mesmos factos, que hoje são mesmo históricos por razões diversas.
Imagem retirada do Site da RTP, com a devida vénia
Logo no início do ano de 1969 foi lançado na RTP, a única televisão da época, um programa que foi marcante para a altura. 
Tratou-se do ZIP ZIP, um programa de Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz que apareceu, certamente “permitido” pela primavera Marcelista, uma vez que Salazar tinha caído da cadeira no ano anterior e Marcelo já governava. 
Segundo rezam as crónicas, foi um programa audaz para a época, mas a malta do meu tempo que estava na guerra, perdeu-o pura e simplesmente.

Foto retirada da Wikipédia, com a devida vénia
Outro facto histórico de nível mundial desse período aconteceu exactamente no dia 20 de Julho de 1969. 
Foi a chegada do primeiro homem à Lua que a Televisão terá transmitido em directo e a que nós não tivemos oportunidade de assistir. Ouvimos falar, lemos nos jornais com alguns dias de atraso, mas não presenciámos o facto e o feito. É caso para dizer que lemos e ouvimos, mas não vimos.
Também perdemos outro acontecimento, marcante para a história de Portugal, que ocorreu no dia 27 de Julho de 1969. 

Foto retirado do Site Fotos Sapo,
com a devida vénia
Foi a morte de António de Oliveira Salazar cujo funeral nacional foi efectuado de comboio de Lisboa para a sua terra natal, Vimieiro, Santa Comba Dão, tendo o país ficado de luto durante três dias. 

Até na Guiné esse luto foi garantido com a bandeira nacional a meia haste. Mas não presenciámos, só ouvimos falar, mais nada, para além de sentirmos mais algum rigor nas prevenções militares naqueles dias.

Outro facto importante para a época e que a história regista e a que nós não assistimos e muito menos participámos, foram as Eleições legislativas de 1969
As primeiras que se realizaram com Marcelo no Governo, precisamente no dia 26 de Outubro daquele ano e onde concorreram, para além da União Nacional, o partido do Governo, a CEUD Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, a CDE Comissão Democrática Eleitoral e a CEM Comissão Eleitoral Monárquica. 
Soubemos depois que a União Nacional elegeu todos os 120 Deputados naquela espécie de acto eleitoral, como mandavam as regras da época, a bem da nação, a bem da evolução na continuidade.
Cada um à sua maneira, foram factos perdidos devido à situação que estávamos a viver, no auge da guerra, quando os mísseis já eram uma arma dos nossos opositores no terreno.

Em contrapartida, para além do facto de estarmos na guerra, muitos sofrerem o horror dos combates e dos ataques, da fome e da sede, muitos morrerem na flor da idade e muitos outros terem ficado estropiados no corpo e no espírito, ganhámos o privilégio de podermos passar a consumir Coca-Cola, importada directamente de Inglaterra e até de Moçambique, bebida esta que na Metrópole era proibida. 

Aliás, já que estamos a falar de privilégios, na Guiné também podíamos beber água Perrier e Vichy vindas de França e até leite da Holanda da Twin Girls, uma vez que era difícil a entrada naquelas terras de águas ou leite da Metrópole. Vá-se lá saber porquê.

Relatar estes acontecimentos passados tantos anos, denota algum saudosismo, mas também serve para lembrar que a guerra deixou marcas das mais variadas estirpes. Hoje, nada disto aconteceria. Ou melhor aconteceria, acontece tudo, mas todo o mundo, Iraque ou Afeganistão, por exemplo, estaria informado no momento, em directo, em todas as televisões.
Carlos Pinheiro



quarta-feira, 16 de setembro de 2020

P1250: O VERDADEIRO REI DAS FLORESTAS ESCANDINAVAS


O ALCE

José Belo
O símbolo, aqui por todos aceite como sendo o mais representativo dos suecos,  é sem dúvida o Alce (alce, em sueco, diz-se älg; em inglês, moose).

Numa área 14 vezes superior à portuguesa e com o mesmo número de população, compreende-se que vastas extensões do território nada mais tenham que florestas, lagos, rios e uma riquíssima fauna selvagem.
Em quantidade, dispersão - e não menos em tamanho - os alces ocupam o primeiro lugar.
Existem, segundo cuidadosas estatísticas estatais, entre 300.000 a 400.000 alces nas florestas suecas. Em cota anual 100.000 são abatidos, tanto para consumo da carne como para manter um nível saudável entre esta espécie. A cota de 100.000 não é escolhida ao acaso mas antes por se ter em conta que em média nascem cerca de 100.000 alces no ano seguinte.

Quanto ao consumo da carne, as receitas tradicionais, que se perdem na noite dos tempos, muito para além dos Vikings, são fantásticas.
Um animal adulto pesa cerca de 700 quilos, tem mais de 2 metros de altura média e cerca de 3,5 metros de comprimento. Tem pernas muito altas que lhe permitem deslocar-se com relativa facilidade quando a neve é profunda.
Um adulto é maior que um cavalo. Os cornos,que, ao contrário das renas, só os machos têm, crescem em média 2,5 centímetros por dia (!). Atingem enorme dimensões quando os animais têm entre os 6 e os 12 anos.
Colocados em cima da cabeça de um tão alto animal ainda o tornam maior à vista.
Deslocam-se com facilidade 30 quilómetros por dia. Ao correrem podem atingir os 60 km/hora.
Tendo uma aparência  pacífica, são bastante agressivos quando as fêmeas acompanham crias, ou quando são surpreendidos na floresta.
Quando se dão contactos, e ao contrário do que se poderia esperar - tendo em conta os enormes cornos (mais usados para combate entre machos) - é com as longas patas frontais que escouceiam, rápida e violentamente em típico movimento de "bicicleta". Com isto procuram atirar ao solo o homem, cão, ou lobo, para depois o pisarem com os seus 700 quilos.

Quanto ao urso,  procuram dentro do possível evitar o contacto. São os ursos que os buscam (de preferência animais velhos ou doentes). Devido ao peso dos ursos, são os cornos a arma então usada como defesa.

Ao imaginar-se um animal maior,  mais alto e mais encorpado que um cavalo, a inesperadamente escoucear com as patas da frente (!) compreende-se que alguns destes encontros sejam fatais para os humanos (*).

Não são estes encontros que em geral causam  as mortes, mas sim os resultantes de acidentes de viação quando os alces procuram, durante a noite, atravessar estradas. 

E estes acidentes, mortais para os humanos dentro das viaturas, são muitos. Nas estatísticas oficiais é apresentado o número de humanos mortos em tais acidentes no ano de 2017 como de 7.300 (!). Em média, em anos anteriores, os números são semelhantes.

Parece impossível mas torna-se ainda mais grave ao considerar-se as estatísticas que mostram que a cada morto por acidente correspondem mais de seis casos com consequências clínicas graves do tipo 
paralisias, cegueira, etc,etc,etc.

O cinzento acastanhado da cor da pele destes animais torna-os muito difícil de ver nas escuras, enevoadas e cheias de nevões noites escandinavas,mesmo com os potentes faróis que aqui se usam.

Em outro detalhe interessante,os olhos dos alces, ao contrário da maioria dos animais selvagens frente aos faróis de um carro, não reflectem a luz dos mesmos.
As longas pernas do animal colocam-no, em colisões a alta velocidade, não à altura dos para-choques ou mesmo do motor, mas sim à altura do para-brisas contra o qual os 700 quilos são violentamente atirados, penetrando grande parte do corpo no veículo.
É por tudo isto que (para curiosidade e espanto dos turistas que visitam a Suécia vindos de automóvel) ao longo de todas (!) as auto estradas suecas,e de ambos os lados das mesmas,corre uma vedação em rede grossa com mais de 3 metros de altura para deste modo procurar evitar, pelo menos nas auto-estradas, este tipo de acidentes mortais.
Tendo em conta a área da Suécia e estando a mesma coberta de auto-estradas, pode-se calcular o custo desta rede de protecção.

De qualquer modo estas "alimárias" sempre encontram maneira de enganar a rede, sejam elas junto a saídas da auto estrada, bombas de gasolina ou restaurantes, isto mesmo que as aberturas sejam mínimas.

É certo que os lusitanos já estarão a pensar que os sacanas dos suecos não querem mesmo que se entre nas auto-estradas sem se pagar!... Mas aqui elas são gratuitas... 
Ou, a ser-se mais concreto, a sua manutenção é paga pelos cidadãos ao Estado, anualmente, através dos impostos.

Mas, e com saudade do meu querido Portugal, pergunto-me :
Quantos metros de rede seriam retirados todas as noites para fazer capoeiras na minha santa terrinha?

Um grande abraço
José Belo

(*) Dêem uma saltada ao Youtube....Älg på Svanvik ....(também funciona com o teclado portuguës Alg pa Svanvik). Poderão aí ver como o alce procura escoucear o cäo com as patas fronteiras.
Num outro video colocado junto com o nome de Älgen på Utby  pode-se ver um alce calmamente a comer maçãs num quintal. É pena que não mostrem o que acontece aos alces horas depois de comerem as maçãs,quando estas fermentam no estômago do animal e o álcool lhes provoca bebedeiras que os fazem movimentar-se como um Chaplin Bêbedo!) 


quarta-feira, 9 de setembro de 2020

P1249: JERO / MEMÓRIAS DA ADOLESCÊNCIA


A MULHER QUE SE “MATOU” À MINHA FRENTE…

Eu teria na altura uns 15 ou 16 anos. 
Frequentava o antigo 5º ano do Liceu e voltava para casa depois de um dia rotineiro.
Até a Professora de Inglês nos tinha ameaçado com o “8” habitual – as notas eram então de 0 a 20 – porque não estudávamos nada, porque eramos uns cábulas, etc, etc. 

Quando cheguei à ponte junto da casa do Dr. Neves vi muita gente a correr e a gritar. Apressei o passo e quando me foi possível ver alguma coisa tive a surpresa de ver uma jovem mulher que tinha saltado da ponte para o rio.

Tinha água pela cintura mas caminhava em direcção à represa, para águas mais profundas. Adivinhava-se que era um acto de desespero e que a mulher se queria afogar!
Os minutos seguintes ficaram-me gravados na memória. Até hoje. E já passaram mais de 60 anos.

Toda a gente gritava. Toda a gente apontava para a mulher e esperava que o “outro” fizesse alguma coisa… Eu, miúdo do 5º ano., perguntava-me porque ninguém fazia nada... e ia arranjando argumentos para não me sentir “culpado”. Afinal, estavam ali ao meu lado homens feitos… Era preciso dar um salto de uns 2 a 3 metros de altura para o rio e impedir que a mulher se afogasse. 

Lentamente a mulher, agora já debaixo da ponte, caminhava para a morte. Mais gritos, mais braços no ar e… ninguém fazia nada. A mulher parou. Só tinha a cabeça fora de água. Parecia não olhar para ninguém.

De repente… alguma coisa mudou. Os gritos dirigiam-se agora para um homem que, vindo de um armazém próximo com escadas que davam para o rio, já estava dentro de água. Os gritos agora eram de entusiasmo e de ânimo. “Força, pá. Agarra-a, agarra-a”.

O homem, seguindo encostado à margem, aproximou-se rapidamente da mulher e conseguiu agarrá-la, retirando-a da zona mais profunda. Foi um momento emocionante com os “mirones” a aplaudir.

De um minuto para o outro toda a gente arranjou coragem para dizer que estava mesmo à beira de saltar e que ninguém deixaria a jovem mulher morrer…
Também fiz qualquer “negócio” comigo mesmo… para me libertar da sensação de culpa.

Falou-se depois que o acto de desespero esteve “ligado” a um desgosto de amor.
A jovem mulher nunca mais foi a mesma.
Ficou solteira para a toda a vida e ainda hoje vive sozinha. 
Continuo a vê-la na sua rua, parecendo quase sempre alheada do mundo e a falar sozinha.
Uma irmã e o cunhado garantem-lhe o sustento.
Vejo-a muitas vezes a dar de comer aos pombos.

Recentemente tirei-lhe uma fotografia. Nem me viu. Ainda é uma mulher bonita.Com os cabelos completamente brancos. Usa sempre um chapéu.
Não fala, não vive. 
Continua a olhar para longe.
Da mesma maneira que a recordo no dia em que saltou para o rio.

Não mais esquecerei aqueles minutos.
Senti necessidade de escrever esta história de vida. Para lhe pedir desculpa…
Julgo que o empregado dos armazéns junto ao rio que a salvou já partiu. Também gostaria de lhe agradecer.
Agarrou-a nesse dia longínquo.
E já passaram mais de 60 anos. 
Mas a mulher sem o “seu” amor… não mais quis viver. 
Amanhã estará no sítio do costume a dar de comer aos pombos.
Bem me apetecia passar por perto e dizer-lhe alguma coisa.
Mas o quê? 
Há-de ocorrer-me qualquer coisa...

Até sempre!
JERO