segunda-feira, 4 de abril de 2022

P1337: LEMBRANDO UM COMPANHEIRO JÁ DESAPARECIDO

Diz-nos o nosso camarada Carlos Pinheiro: “Há dias em que saio para a vida com uma necessidade enorme de semear poemas. Deixo-vos aqui mais um belo poema do saudoso poeta António Lúcio Vieira, nosso camarada, que nos deixou em Junho de 2020”.

                         SINA

Vês, lá longe, já lá vem lá longe.
Visto daqui parece uma visão por entre brumas
bate-lhe o sol na espuma da proa
e a luz salpica no ar, crepita e cintila.
Há gente no cais acenando braços e lenços
como que a dizer-lhe que é ali o lar.
Sobe o sol no espaço e ateia o dia.
Prenhes de vento as velas arrastam navegantes
ávidos de cais cansados de náuseas e tédios.
 
Lá vem, já lá vem.
Nas pedras musgosas do molhe vem o mar e volta
na amurada assomam olhares e rasgam-se os risos
e as vozes que chegam dos nautas perfilados nas vergas
trazem com o vento a solidão dos dias como se fossem almas
salgadas por todos os mares em todas as viagens.
 
A brisa da manhã lança ao cais um odor marinho
que o casco guardou dos outros mares e de outras memórias.
Lê-se ali o livro breve de tantos segredos
tantos cais de aportar e tantas tantas as procelas.
Nas velas nos mastros e quilhas escreveu-se o mural da epopeia.
Cada baía era uma alcova cada cais foi um lar de alentos
cada oceano uma estrada de galgar distâncias
um adamastor de gelar os corações e as veias.
 
Na longa travessia dos sentidos a voz dos mares dorme nos porões.
O navio atracou mas já sonha partir. Partir.
Soltar amarras e voltar aos mistérios às tormentas e aos medos.
Ao mar.
Curtir o corpo na aventura da viagem desde há muito destinada.
Ao mar que nele se fizeram os homens desta terra
que por ele se abriu o mundo à passagem de flâmulas e ouros;
do mar onde nasceram as vozes cantadas da saudade. Fados.
Ao mar que as águas em volúpia já se roçam pela quilha.
 
Ao mar. Nasceu-nos no berço este fadário de enfrentar tormentas
entre tantos cais de sarar refregas.
Quantos mais cabos a sul ainda para dobrar.
Quantas Calecutes ainda por destino. Quanto naufrágio anunciado.
 
No cais os lenços voltarão. E voltarão. As âncoras já sobem.
Soltam-se as amarras. Soam as sinetas. Ao mar.
Corre-nos nas veias um sangue salgado. E uma espuma nos olhos
e há um sopro de maresia nas vozes que murmuram: espera por mim.
 
Rasga-se o destino na proa do navio.
E vai um povo inteiro ali silente com a marinhagem.

Nos porões que hão-de voltar inchados de futuro.
 
Sina diz o povo ser o nome desta saga que se teme não ter fim.


                                                                                         António Lúcio Vieira 
                                                                                                       13.09.2016