quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

P756: VELHOS HÁBITOS

UMA VEZ MILITAR …

Fui militar durante 4 anos da minha vida (1962-1966).

Em conversa recente com um amigo lembrei-me - porque nunca o esqueci - de uma história, no mínimo invulgar, que me aconteceu na vida civil.

Passou-se no Verão de 1975 ou 1976. Estava na praia de S. Martinho do Porto, devidamente “equipado” para tomar banho.

Corria de calções junto ao mar quando vejo ao longe uma figura que me pareceu familiar.

O porte altivo e uma postura desenvolta lembravam-me o meu Comandante de Batalhão dos tempos da Guiné ! Aproximei-me e era mesmo ele.

De roupão de banho, descalço e com a toalha na mão ali estava o Coronel Fernando Cavaleiro.

Instintivamente pus-me em sentido e apresentei-me.

- O meu Coronel dá-me licença? Tive a honra de servir sob as suas ordens no Bat. 490. 

Estacou e ainda antes de me apertar a mão perguntou-me: - A que companhia pertencias?

Respondi de imediato: - À “675”, meu Coronel..

- À C.Caç. 675. Ah já sei. A do Tomé Pinto. Foi um grande oficial e teve uma Companhia das melhores.

Pus-me à vontade e tive direito ao seu aperto de mão. Caminhámos juntos algumas dezenas de metros.

Soube que tinha estado preso em Caxias durante 10 meses (nos tempos do PREC). Sem culpa formada e sem qualquer interrogatório.

Disse-o sem queixumes. Altivo e "teso" como sempre o tinha conhecido.

Despedi-me e regressei lentamente para junto da minha família. Contei-lhes o que se tinha passado. Tinha estado em "sentido" em calções de banho!

Tinha cumprido um ritual da vida militar... à civil.

Um ritual de que me orgulho e que recordo com saudade. Os valores do respeito, da dignidade e da honra estão cá… Uma vez militar… militar toda a vida!
JERO

Nota: Segundo o portal Ultramar Terraweb, Fernando Cavaleiro, de seu nome completo Fernando José Pereira Marques Cavaleiro, terá nascido em 1920.  Notabilizou-se sobretudo no T.O. da Guiné, onde esteve de 22 de julho de 1963 a 12 de agosto de 1965. Foi o comandante do BCav 490. Nessa qualidade comandou as forças terrestres da Op. Tridente, que decorreu na Ilha do Como entre 15 de janeiro e 23 de março de 1964. 

Foi agraciado com uma Medalha de Cruz de Guerra de 3ª classe (em 1964) e com uma Medalha de Cruz de Guerra de 1ª classe (em 1966), ambas por feitos em combate. Faleceu no dia 03 de Agosto de 2012 com 95 anos.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

P754: NO LANÇAMENTO DO LIVRO DO JUVENAL AMADO

"A TROPA VAI FAZER DE TI UM HOMEM!"

A sala do Chiado Clube Literário e Bar, na Galeria Comercial Tivoli Forum, em Lisboa, mostrou-se pequena para albergar o grupo de amigos do Juvenal Amado que quiseram estar presentes na apresentação do seu livro “A Tropa vai fazer de ti um Homem!”.


Correndo o risco de falhar nomes dos combatentes presentes (o escriba de serviço limita-se a referir aqueles que conhece…) pudemos registar a presença do Virgínio Briote, Cláudio Moreira, Manuel Joaquim, Carlos Silva, José Brás, Rui Pedro Silva, Armando Pires, Hélder Sousa, Giselda Pessoa e Miguel Pessoa, para além de outros bloguistas (caso da Felismina Costa), amigos pessoais do Juvenal e seus familiares – a esposa Manuela e a filha Vanessa.

Na mesa, para além da representante da Editora e do autor, esteve o nosso camarada Helder Valério Sousa, convidado pelo Juvenal para apresentar a obra… e o perfil do nosso camarigo Juvenal, de que realçou o seu carácter de homem bom, solidário e amigo do seu amigo, características bem vincadas no texto que escolheu para ler, um pequeno episódio incluído no livro agora publicado.


Precavido, o Juvenal tinha preparado a sua intervenção escrita, cuja leitura foi dificultada pela emoção do momento, o que levou o Hélder Sousa a terminar a leitura do texto preparado pelo autor do livro.

Verificámos uma boa afluência de pessoal interessado na aquisição do livro, que o Juvenal  teve o gosto de autografar, antes e depois da sessão de apresentação.

Fica para o fim uma foto do nosso camarada Juvenal Amado, um homem feliz com esta sua realização, na companhia da filha Vanessa, de uma amiga de família - a Rosa Caramba, viúva de um seu camarada - e da esposa Manuela.


Reproduzimos mais em baixo a intervenção do nosso camarada Juvenal Amado, lida (a meias com o Hélder Sousa...) no decorrer deste encontro.

E lembramos que no próximo dia 29 de Janeiro o Juvenal estará presente em Monte Real para apresentar esta sua obra aos camarigos da Tabanca do Centro, por ocasião do seu 50º Encontro, uma segunda oportunidade para quem quiser adquirir o livro agora editado.


Miguel Pessoa


A INTERVENÇÃO DO JUVENAL AMADO

Caros camaradas, amigos e familiares:

Poderá discutir-se até à exaustão,  os benefícios ou malefícios de se ter ido ou não à tropa.

Deixar o emprego, a namorada, a casa e o conforto da casa paterna, perder a identidade e passar a ser um número mecanográfico.

A partir dali perdíamos a autonomia social, mandavam em nós até nas pequenas coisas, como se fez a barba ou não, a enorme chatice que era ter um botão desabotoado, as botas mal engraxadas, não se poder sair sem licença prévia, perder o direito de nos vestirmos como nos aprouvesse e termos que cumprimentar até com quem estávamos chateados, no caso de ser nosso superior.

Por outro lado ir para a tropa era como chegar à idade adulta, sair da alçada da família, satisfazer algum fascínio pelas armas e, porque não, algum desejo de aventura.

Sem esperar arranjámos amigos. Embora sem saber, esses ficaram para toda a vida  
Eles foram chegando e partindo engolidos pelas rápidas transformações que a vida militar ditava. 

Depois de mobilizados, encontrávamos os que connosco viveram mais tempo, nos destacamentos no tempo que duraram as comissões e quando estas acabaram, despedimo-nos. Muitos de nós não nos tornámos a ver, o que à partida parecia impossível dado os laços que se criaram em zona de conflito.

Desembarcado, rapidamente tentei esquecer aqueles dois anos e pico e durante 20 anos limitei-me a trocar alguma mensagem, alguma visita a dois ou três, fui ao casamento do Ivo, do Caramba e do Silva. Conheci os filhos bebés.

Mas as coisas nunca se passam como nós inicialmente pensamos e, à medida que avançamos na idade, o passado vem ter connosco de várias formas e nem sempre pacífica. Foram os almoços da Companhia, ir à procura das fotografias antigas, olhar para as imagens e tentar lembrar os nomes, acabando por pôr em marcha um mecanismo de recordações e afectos que julguei já não existir.

Depois, aconteceu encontrar amigos ao longo dos anos seguintes e, quando esperava alguma solidão, eles multiplicaram-se e enchem hoje muitos álbuns de memórias que nos ligam, forjadas em situações iguais ou parecidas, que criam novos laços a todo o momento.

Este é um projecto a caminho dos  8 anos, inicialmente sem pretensões de o ver passado a livro, o que acabou por acontecer.

Nele tento transmitir sem ódios, sem paixões sem remorsos, sem falsas modéstias sem puritanismos, sem vencedores nem vencidos, sem saudades excessivas que me toldassem o raciocínio, sobre um tempo que passou da minha juventude do qual ficaram os rostos e datas, que jamais poderei esquecer. Pelo menos foi sempre essa a minha intenção.

Está claro o que outros pensam de nós, está um bocado além do que podemos fazer. Porque ao nortearmo-nos pelos nossos princípios e seguirmos os nossos impulsos ao expor o que achamos correcto, nunca cederemos ao mais fácil, e assim nunca agradaremos ao mesmo tempo  a gregos e a troianos.

 O que está dito está dito e só o oiro agrada a todos.

Pode ter sido mal exposto ou mal interpretado, mas ficou gravado assim e assim ficará na versão que cada um julgar mais consentânea com a sua forma de pensar, ou no seu juízo de valor.

O tempo ensinou-me que não há verdades nem certezas absolutas.

Nada há a fazer quanto a isso, mas também nada pretendo fazer, pois alterar o que vi ou que penso sobre o que me levou a ir combater em terras da Guiné ainda hoje está inalterável na minha cabeça -  negá-lo seria uma desonestidade a que nunca me sujeitaria.

Porventura as minhas motivações ou razões serão iguais ou parecidas às de milhares de jovens que para lá foram ao longo dos 13 anos de guerra, com a generosidade e ingenuidade dos nossos 20 anos.

Resta-me assim esperar que para além do que possam discordar, vejam a honestidade com que apresento à vossa consideração as passagens de vidas sem nada de extraordinário, mas verdadeiras.

Não podia escrever este livro de outra maneira. Ele não aconteceu, foi acontecendo lentamente e foi assim que amadureceu.

Nestes anos muita coisa se alterou,  muitos partiram, mas também muitos chegaram para me dar alento e mostrar que não era em vão o trabalho a que meti ombros. Todos deixaram marcas, no tempo que passei com eles. São as suas vidas, histórias e a sua riqueza humana, que valorizaram o que escrevi.

Nada mais valioso do que poder fazer deles também autores, de que me servi na concepção deste livro.

Nada teria sido escrito sem as suas palavras, sem as nossas conversas, sem as suas vivências e o seu . incentivo ou as suas críticas.

Espero que não o entendam como relatório de operações pois não é disso que se trata. Trata-se de situações vividas, compiladas, reunidas sem rigor histórico. Interessam sim as personagens, todas elas reais, de carne e osso, que comigo conviveram em dado momento bom ou mau.

As dúvidas foram e são muitas, certezas praticamente nenhumas. Não há volta a dar.

As razões foram tão diferenciadas como diferenciadas foram as condições e evolução  ao longo dos anos da guerra. Alterou-se o armamento, o equipamento, mas também a maneira de encarar o conflito. Também foi crescendo a contestação ao mesmo.

O estado de espirito com que foram os jovens em 1962, terá sido bem diferente dos que foram comigo em 1971.

Mas nenhum livro porá uma pedra final sobre o assunto e a discussão sobre o conflito, bem como as consequências do fim dele, as condições da nossa retirada do teatro de operações, alimentarão as tertúlias de ex-combatentes durante muitos anos.

Diz-se que a História só deve ser escrita de 100 em 100 anos, por isso só após o nosso desaparecimento físico o que se escreveu merecerá a atenção de historiadores que, livres da nossa visão apaixonada, sem terem que tomar partido, sem terem que dizer o que esteve certo ou que esteve errado, talvez consigam colocar-nos no lugar da História, lugar esse que será de todos os ex-combatentes por direito e sem excepção.

Disse anteriormente que foi um processo solitário, resta-me também deseja-lo solidário.

Naquele tempo tínhamos pouco tempo para sermos meninos e jovens, mas não sei se foi a Tropa que Fez de Mim um Homem.

A todos os presentes quero agradecer a vossa presença, que encaro como testemunho vivo da vossa estima. Bem hajam por isso.

Quero aqui deixar uma  palavra especial para o Luís Graça, para Hélder Valério, Carlos Vinhal, ao Belarmino Sardinha, ao José Brás  e ao dr. Nuno Miguel Ferreira Oliveira que fez a correcção de texto.

Por último, quero agradecer à minha mulher e filha, por tudo o que me deram ao longo das suas vidas, em que não contabilizaram nem regatearam o seu amor.

Sem elas nunca seria o homem que sou.
Muito obrigado.
Juvenal Amado


E, para terminar, uma última foto, com dizeres da autoria do próprio Juvenal Amado... Ele lá sabe!




sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

P753: JUVENAL AMADO - O PORQUÊ DE UM TÍTULO

Ainda a propósito do livro do Juvenal Amado, “A tropa vai fazer de ti um homem!”, recebemos deste nosso camarigo um texto em que ele aprofunda as razões que o levaram a escolher este título para a sua obra.

Lembramos que o lançamento oficial do livro se realiza amanhã, 23 de Janeiro, em Lisboa, (ver pormenores aqui) e que, de aqui a mais alguns dias, em 29 de Janeiro, o Juvenal irá apresentar esta sua obra no decorrer do nosso 50º convívio, em Monte Real, onde poderá ser adquirida pelo pessoal presente.

Aqui fica o texto…

…………………………………………………………………………………………..

Escrevi este texto com o objectivo de descodificar o termo "na tropa vão fazer de ti um homem" que era muito usado na minha região.
A foto mais abaixo é de um grupo de "motoqueiros", para aí de 1965, e talvez aqueles tenham servido de inspiração a Dennis Hopper, Peter Fonda e Jack Nicholson no filme de culto “Easy Rider”,  que estreou em 1969…
Bem, este pessoal é de Alcobaça. Eu era puto ao pé deles e nunca tive uma motorizada, a não ser dois ou três anos depois de vir da Guiné. Já não tinha idade para maluqueiras em duas rodas…
JA


LÁ IRÁS PARA ONDE O PAGUES

Na década de sessenta com a guerra ainda em expansão, nós os miúdos olhávamos para ela como coisa longínqua. Na verdade ela ia atingindo as famílias de tal forma, que só tornava importante quando sabíamos que alguém perto de nós tinha sido mobilizado.

Aceitávamos como um assunto para nos preocuparmos na devida altura.

Eu tinha dezasseis anos quando o meu irmão foi mobilizado para Moçambique e a guerra ficou mais próxima.
Até demais.

Mas isso não impediu que grande parte dos jovens desse tempo continuasse a viver sem se preocupar em demasia com o assunto e só sofríamos um sobressalto quando se sabia que tinha morrido fulano, sicrano, beltrano,  ou filho de...

Na grande maioria tinham ido trabalhar mal fizeram a quarta classe, pois o rendimento das famílias era pequeno e seguir os estudos não era para todos, ou - direi  melhor - era para bem poucos.

Próprio da idade, a que podíamos chamar irreverência da juventude (hoje na maioria das vezes chamamos parvoíces), cometíamos toda a casta de imprudências, fazíamos tábua rasa das advertências e arriscávamos as nossas vidas gratuitamente em toda uma série de disparates.

Beber uns copos, noitadas, deixar crescer o cabelo assim que conseguímos rodear as ordens dadas no barbeiro para termos sempre à nossa disposição um corte de cabelo à “inglesa curta”.

Mas em lugar cimeiro estavam as motorizadas; quem não tinha babava-se e tinha pena de não ter. Compradas a muito custo para possibilitar trabalhar mais longe de casa, serviam depois para ir aos bailaricos e para toda a espécie de gincanas junto das moças.

Não eram poucas vezes que essas exibições resultavam em quedas aparatosas, com manifestações de regozijo entre a assistência por as “habilidades“ nas duas rodas terem resultado em malhanço com o nariz no chão.

Regozijar-nos com o mal dos outros não deve ser só uma atitude portuguesa, mas também por vezes escondia uma disfarçada inveja pelo o tipo de “máquina” que o outro fulano tinha,  e a quem responsabilizávamos pelo maior sucesso que ele tinha junto do sexo feminino.

Assim, o improvisado “artista” mal caía levantava-se logo como se tivesse molas; e mesmo perdido de dores, sorria para a multidão como se nada se tivesse passado e acelerava a 50 centímetros cúbicos, Famel ou Zundapp – em casos mais raros uma Honda ou V5. Depois aparecia no café no mesmo dia ou dias depois, consoante a pancada.
Os mais velhos diziam então, que a tropa nos estava a fazer falta e que lá iam fazer de nós uns homens.

Nasce então o termo que soava a ameaça, desejo ou premonição, “Lá irás para onde o pagues”, ou “A tropa  é que vai fazer de ti um homem”.

Não sei se foi isso resultou comigo, mas como saber ?

Um abraço para todos

Juvenal Amado

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

P752: DO ÁLBUM DE MEMÓRIAS DO JOSÉ BELO

DESERTORES

Sou um, entre milhares dos que combateram na Guiné ao lado de Camaradas de todos os recantos de Portugal, sem esquecer os guineenses que envergavam com orgulho  fardas portuguesas.

(Estes, não só ao nosso lado mas, muitas das vezes literalmente à nossa frente!)

Em 1980, quando ainda havia um grande interesse por parte da sociedade sueca para com os acontecimentos relacionados com Portugal da guerra colonial e de Abril, fui procurado por um grupo de jornalistas suecos que desejavam aprofundar alguns detalhes e histórias relacionadas com acontecimentos dos anos 74-75 em que eu tinha participado, e muito especialmente em alguns passados "do outro lado dos espelhos convenientes".

Foi um interessante diálogo quanto ao nível de ideias trocadas no decorrer do mesmo, não menos pelo facto de muitos dos jornalistas terem estado presentes em Portugal na altura de alguns dos acontecimentos discutidos.

Já em fim da conversa, o jornalista representante de conhecido jornal de esquerda do norte da Suécia - Norlandsk Flamma - perguntou-me com mal escondida ironia: Se eram assim tão contra a política governamental... porque é que cumpriam o serviço militar em África e não desertavam em números substanciais?

Confesso que, no momento, senti vontade de lhe explicar que tendo passado todo o "PREC" como oficial responsável pela segurança do Depósito Geral de Material de Guerra e dos seus Destacamentos Militares, todos eles situados em plena cintura industrial de Lisboa, tinha mais do que um curso completo quanto a perguntas provocatórias apresentadas em tudo que eram plenários, por representantes de grupos e grupelhos de pseudo-extremistas de punhos de renda.

Mas como explicar-lhe o facto de, desde o nascimento nos terem colocado sobre os ombros "os tais" seiscentos anos de um passado de colonialismos épicos feito?

Como explicar-lhe que, desde o Minho aos Açores, todos tínhamos bisavós, avós, pais, tios, irmãos, primos, amigos, vizinhos, colegas de estudo ou de trabalho que, ou tinham cumprido, ou cumpriam o seu serviço militar algures no Império?

Quando quase (!) todos os que conhecia em Lisboa, com idades próximas da minha, se encontravam algures em África?

Explicar-lhe que o meu avô, republicano e anti-salazarista convicto, se orgulhava de ter servido como médico militar no norte de Moçambique durante os ataques Alemães na Primeira Grande Guerra?

Que o meu pai, também médico, estivera voluntariamente no norte de Angola aquando dos massacres de  1961?

Talvez por ignorância, resultante do profundo isolamento cultural a que estávamos sujeitos, o desertar era unicamente identificado como cobardia para com a Pátria, e não como uma legítima forma de luta política contra o regime.

E, francamente, acabaram por ser bem poucos os que o fizeram... Por razões estritamente políticas (!).

A ironia barata do jornalista, nascido e criado numa sociedade livre que, na sua neutralidade, não participa em nenhuma guerra nos últimos 360 (!) anos, quase me levou a usar a frase histórica do Sr. Almirante Pinheiro de Azevedo quanto ao... "bardamerda para os trabalhadores"!

Mas, e desculpando-me por descer a um nível tão "simplista" nos exemplos ridículos e inofensivos que lhe dava da minha Lisboa dos anos sessenta perguntei-lhe:

Acreditaria ele que, "a bem da moral pública”, estavam diariamente colocados polícias da segurança pública à porta dos liceus femininos de uma capital europeia em 1968,para afastar menos "delicadamente" os pobres dos namorados (de idades dos 14 aos 17 anos) que romanticamente iam esperar as meninas à saída das aulas?

Ao mesmo nível da tal profunda moral, que razões levariam a senhora Reitora do Liceu Maria Amália de Lisboa a percorrer sistematicamente os recreios com uma régua na mão, medindo o comprimento adequado das saias e batas das alunas?

Enfim...

Enquanto isto, a escassos dois mil metros de distância, no "estrangeirado" Liceu Francês Charles Lepierre, as nossas aulas eram mistas e... as mini saias das colegas... bem fresquinhas.

Perguntei-lhe se compreendia o que lhe queria dizer com estes exemplos, aparentemente tão simplistas e desencontrados, mas que faziam parte dum contexto muito vasto de tantas outras realidades envolventes como as tais hipotéticas... deserções.

Sentado ao calor da lareira, recordando acontecimentos passados há quase meio século, surgem imperceptíveis generalizações fáceis.

Pergunta (aparentemente inapropriada, por já bem fora de contexto), apresentada pelo jornalista quanto ao serviço militar do Senhor Professor Marcelo Rebelo de Sousa em 1974, obrigou-me a pensar em alguns casos de "deserções" por outros meios. Elas foram muitas entre alguns filhos de famílias do grande capital, alta burguesia, ou de algum modo bem "situadas" politicamente.

(Devemos, com justiça, reconhecer terem também existido muitas e honrosas excepções a estas "deserções" aos mais altos níveis).

São os tais "outros" que, não desertores perante a lei, usaram de todos os meios disponíveis, no local e momento certos, para circundarem as suas possíveis mobilizações para as guerras de África.

Recordo um Senhor Brigadeiro então comandante de uma das Regiões Militares (1968) que, perante uma formatura de juramento de bandeira gritava: “Na instituição militar as cunhas não passam a porta de armas!"

Todos sabemos que assim não foi... se é que algum dia o virá a ser.

Enquanto entre as famílias mais humildes, tanto rurais como operárias as percentagens de participantes na guerra foram elevadíssimas, no capital e alta burguesia a história seria outra.

Desde a "junta médica”, à especialidade militar "conveniente".
Da não mobilização para África, à escolha de lugar resguardado no caso da mesma, de tudo havia um pouco.

Escândalo?
Não acontece  em todos os países e em todos os Exércitos por esse mundo fora?

Mas, e por isso mesmo, as posições púdicas de escamoteação destas realidades tornam-se ridículas.

Quem, de entre os antigos combatentes, não conhece uma boa quantidade de exemplos desta deserção subtil e, principalmente, não assumida?

O ano é 2016. As realidades e contextos são outros.

Mas...


José Belo

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

P750: É EM 23 DE JANEIRO

Em Dezembro chamámos a atenção no blogue para a presença do Juvenal Amado no nosso convívio de Janeiro, em que irá fazer a apresentação do seu novo livro, "A Tropa vai fazer de ti um Homem".

Referimos também que nessa ocasião a obra estará disponível para compra (preço 15 €), revertendo 2 € em cada livro vendido para apoio a combatentes necessitados - uma oferta generosa do nosso camarigo Juvenal.

Não queremos agora deixar de referir que o lançamento oficial deste livro ocorrerá uns dias antes (em 23 de Janeiro, pelas 16H30) no Chiado Clube Literário & Bar, em Lisboa, conforme poderão ver no cartaz promocional reproduzido em baixo.

Uma boa razão para o pessoal que mora em Lisboa e arredores estar presente neste evento, dando uma forcinha a este nosso camarada e acompanhando-o num momento importante para ele. O Juvenal irá certamente apreciar o nosso apoio!



domingo, 10 de janeiro de 2016

P749: AVENTURAS E DESVENTURAS EM LUANDA

DE COMO PASSEI A SER LADRÃO DE

CORTES DE FAZENDA…


Luanda, Março de 1975.

Depois de uma noite “complicada”, porque envolveu muitos copos e muitas horas, no regresso a casa, entro, sem querer, numa rua sem saída que terminava num passeio muito alto.

O carro embate com o para-choques no passeio, eu vou com as ventas ao para-brisas que fica estilhaçado, e a minha cara transforma-se rapidamente num filme de terror com cortes por todo o lado e sangrando abundantemente.

Os copos anestesiam um pouco a coisa e saio do meu carro pelo meu pé, dirigindo-me à rua principal.

Aqui falha-me a memória se foi alguém que caridosamente me depositou no Hospital de Luanda, ou algum táxi que consegui apanhar, mas dado o adiantado da hora, acredito mais na primeira hipótese.

Dou então comigo no hospital a ser cozido na cara a sangue frio, sem grande desinfecção e lavagem das feridas, de tal modo que passados muitos, muitos anos, ainda andava a tirar pedaços ínfimos de vidros, sobretudo nas sobrancelhas, à medida que eram rejeitados pelo corpo. Enfim, coisas que acontecem!!!

Dispensado pelos médicos, (ou lá quem é que me coseu), parti sozinho à procura da saída do hospital, em tronco nu, visto que a T-shirt que vestia tinha sido cortada no hospital.

Junto à saída do hospital, ou já cá fora (não me lembro bem), tinha à minha espera um ou dois agentes da PSP bem como um Alferes do Exército (com soldados numa Berliet), que me identificaram, tendo-me informado que estava detido por ter assaltado uma loja de cortes de fazenda.

Julguei que estava mais bebido do que estava, ou que aquilo era uma partida muito parva e sem sentido. Fosse como fosse, invocando a minha recente situação de Alferes Miliciano na Guiné e argumentando não sei muito bem como, lá consegui que o Alferes me levasse na Berliet até ao local do acidente, (em vez de ir com a PSP, naqueles tempos após o 25 de Abril os militares mandavam mais), para lhe provar que tudo aquilo era uma estupidez sem sentido.

Lá chegámos ao local onde estava o meu carro, diga-se de passagem bastante destruído, e qual não é o meu espanto quando verifico que por cima do capot no exterior, bem como nos bancos no interior do carro, estavam diversos cortes de fazenda!!!

O espanto foi total e tive de me render à evidência, permitindo que os militares me levassem para a esquadra da PSP. Aí chegado, convenci os agentes de que precisava de telefonar para resolver de vez aquele assunto, que nada tinha a ver comigo.

Claro que a melhor opção era telefonar para a Base Aérea de Luanda, onde tinha amigos, e até podia ser que o Major Pil Av Luís Quintanilha, (meu particular amigo e companheiro nesses tempos), tivesse chegado de Lisboa e me pudesse ajudar.

Assim não aconteceu e, não sei como, dei comigo a falar com o Major Bessa (*), Piloto Aviador já falecido, que era meu conhecido e amigo desde os tempos da Base de Monte Real, em que eu convivia, (embora mais novo), com os Pilotos da Força Aérea.

Foi-me buscar à esquadra da PSP e com promessas de retorno rápido, etc., e pela “autoridade conferida” aos militares nesse tempo, lá fomos no seu carro, tendo-o eu convencido a voltarmos ao local do acidente.

Aí chegados, (era uma zona de moradias), batemos à porta da casa mais perto do acidente e perguntámos se, por acaso, tinham visto alguma coisa. Não foi preciso ir mais longe, porque o dono da casa informou logo que estando acordado àquela hora da madrugada em que se deu o acidente, tinha antes ouvido barulho na rua e espreitado para perceber o que se passava.

Contou ele que viu dois ou três vultos, carregando os tais cortes de fazenda, e que os mesmos largaram tudo e fugiram quando o meu carro entrou pela rua sem saída. Mais informou, que tendo-me visto ir embora, e como os cortes de fazenda estavam no chão da rua, para não se estragarem os colocou no capot e nos bancos do carro!!!

Trabalho de investigação concluído, foi regressar à esquadra e dizer àquele pessoal que fizessem o trabalho como devia ser!

Ainda hoje estou para perceber porque é que o dono da casa se preocupou tanto com os cortes de fazenda e não comigo??? Mistérios da natureza!!!

A história é verdadeira, mas pode, obviamente, ter algumas lacunas ou imprecisões, dado o tempo já passado, (41 anos), e sobretudo o tempo que naquela altura se vivia com uma guerra civil diária em Luanda, entre os três movimentos políticos angolanos.

E assim passei a ser, durante algum tempo, ladrão de cortes de fazenda!!!


Joaquim Mexia Alves
10 de Janeiro de 2016

(*) Manuel Bessa Rodrigues Azevedo
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2014/11/guine-6374-p13845-in-memoriam-201.html
(Com a devida vénia à Tabanca Grande, claro!)