quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

P1265: UM CONTO DE NATAL

                           UMA COMEMORAÇÃO DIFERENTE

Olhavam um para o outro com a tristeza nos olhos.

Como seria possível, com a situação de pandemia, juntar os seus dois filhos e as suas famílias no Natal, como sempre faziam todos os anos?

Vivendo longe uns dos outros, era a única noite do ano em que a família toda se juntava, pais, filhos e netos.

Decidiram então propor a todos que cada um tomasse a decisão de vir (ou não), passar o Natal, na certeza de que a sala da casa, sendo grande, dava para todos estarem à distância necessária com as máscaras colocadas.

Seria muito estranho, mas ao menos, poderiam olhar-se nos olhos.

Quanto à ceia de Natal, haveria uma mesa no meio da sala, e cada um iria servir-se e voltava para o lugar marcado para cada família - e afastados uns dos outros.

Quanto mais pensavam naquilo, mais achavam estranha a situação, mas ficaram felizes quando todos disseram que viriam, então, passar o Natal.

O dia 24 chegou e com ele começaram a chegar os filhos e as suas famílias, para dar vida aquele casarão enorme, que normalmente estava vazio só com eles os dois.

Foram muito emocionais as chegadas, tanto mais que os cumprimentos eram “longínquos”, para não colocar em risco quer as crianças, quer os mais velhos.

Era uma coisa muito confusa pois pareciam famílias dentro de uma família!

Quando chegou a hora da ceia e já estavam todos na sala nos lugares previamente designados para cada família, (com as crianças um pouco irrequietas, o que era normal), ele, o pai da família, pediu a todos que, depois de irem buscar a comida e quando tirassem as máscaras para comer, fizessem um momento em que todos olhariam uns para os outros e sorririam de modo a que se pudessem ver sem a barreira da máscara.

E assim foi.

Depois de se servirem, estando todos nos seus lugares, tiraram as máscaras e olharam uns para os outros, sorrindo e com algumas lágrimas incontidas correndo por algumas caras.

As crianças, claro que achavam tudo aquilo muito estranho, mas a visão dos presentes junto ao presépio ultrapassava a sua estranheza.

Então ele, o pai da família, pediu a todos que rezassem um Pai Nosso pela família e também por todos os que não tinham Natal.

E foi extraordinário, porque parecia que todos estavam de mãos dadas e que uma só voz fazia subir a oração ao Céu.

E o mais pequenito, que já falava, gritou de alegria: Que bom é o Natal!

                                               Joaquim Mexia Alves

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

P1264: APOIO A OUTROS CAMARADAS

              Caros camarigos da Tabanca do Centro

Infelizmente, por força da pandemia, os nossos almoços mensais estão adiados até ao dia em que voltemos a dar abraços.

Assim, já não há possibilidade de recolher mais donativos para a ajuda aos combatentes necessitados, que foi sempre uma das metas a que a Tabanca do Centro apontou, para além do óbvio e salutar convívio entre todos nós.

A última entrega de donativos que fizemos foi em Novembro de 2016, mês em que entregámos ao Manuel Reis 500€ para ajuda de combatentes seus conhecidos muito necessitados, e 700€ à Liga dos Combatentes, Núcleo de Leiria, para ajuda de vários casos pela Liga apontados como realmente necessitados.

Desde então, até Fevereiro de 2020, (mês em que ficaram suspensos os almoços da Tabanca do Centro), recolhemos 864€, que iremos dividir do seguinte modo: 

1 – Para o Manuel Reis 350€, como ajuda a um combatente muito necessitado.

2 – Para a Liga dos Combatentes, Núcleo de Leiria, 514€, como ajuda aos casos pela Liga apontados, dos quais nos fará chegar a listagem especifica. 

Assim esperamos todos proporcionar um Natal mais “cheio” àqueles que vão beneficiar da generosidade dos membros que se reúnem na Tabanca do Centro, em Monte Real, onde - esperamos sinceramente - voltaremos a encontrar-nos num futuro que todos queremos breve.

Abraços para todos

Tabanca do Centro

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

P1263: CENAS GRAVADAS NA NOSSA MEMÓRIA

O ÚLTIMO NATAL EM GALOMARO

Juvenal Amado
Estávamos verdadeiramente enfastiados naquela noite. O calor dentro do abrigo era sufocante. Todo o dia à chapa do sol transforma-o num autêntico forno à noite.
Aljustrel senta-se na cama com os pés pendurados e diz: - “Tenho ali uma garrafa de whisky que me está a estragar a mala toda”.
- “Não és homem nem és nada se não a fores buscar já” - disse eu, pouco convencido que o desafio resultasse.
Estávamos em Janeiro de 1974 e muitos dos meus camaradas já tinham feito a mala, convictos que a partida estava para breve. Tínhamos acabado de passar o terceiro Natal, facto que estava a mexer com a malta.
À luz dos petromaxes (em muitos locais), de camuflados, pratos e travessas de alumínio, assim se passavam os Natais em Galomaro e em quase todos os locais onde houvesse um aquartelamento. Os Comandos dos Batalhões e Companhias faziam questão em que a data fosse comemorada com bacalhau, batatas e rabanadas, que nem sempre estavam em todas as mesas de todos os destacamentos, mas cerveja, vinhos e uísque raramente faltavam.

Nesta mesa de Natal o único sorridente era o alferes (um periquito que, em rendição individual, tinha substituído o alferes Mota, morto pelo paludismo).

Aljustrel, acto contínuo, puxa a mala para cima da cama, abre-a, tira de lá uma Old Parr e diz: - “Vamos ter com o Ivo e bebemos lá a garrafa”.

E assim só em calções, atravessámos o quartel, tendo cuidado de passar por de trás da messe, pois o comandante podia ver-nos e chatear-nos por irmos meios nus. Seriam perto das 21 horas, já era de noite há muito tempo. Entrámos no abrigo do Pel Rec e lá estava o Ivo.

Bebemos a garrafa. Aliás, coisa que não era nada difícil naquele tempo… Já meio atordoados regressámos ao nosso abrigo pelo caminho mais curto, entre os abrigos e os edifícios que compunham os alojamentos dos oficiais e sargentos. Esse caminho embora mais curto, era cruzado por valas de escape, que davam acesso às valas de defesa, o que tornava o percurso cheio de armadilhas.

Lá chegámos ao nosso abrigo, seriam perto das 23 horas. Deitei-me meio zonzo. Ainda ouvi o pelotão de patrulha nocturna, no regresso ao quartel, proceder ao desarme da G3, tirando as balas das câmaras.

O alferes Lameiras comandava esse pelotão que regressava. O alferes entrou no quarto onde estava o tenente Matos e o alferes Orlando, que há já algum tempo não podia ficar sozinho. Encostou a G3 à parede, retirou o cinturão com os carregadores de munições bem como os porta-granadas e, como era costume, pendurou-o na própria espingarda.

O tenente, como estava pré estabelecido entre os oficiais, assim que chegou companhia para vigiar o camarada, saiu e recolheu ao seu quarto. O alferes Lameiras, pegou na toalha e dirigiu-se aos balneários para tomar banho.

O Alferes Orlando assim que se viu sozinho, levanta-se da cama, vai aos porta-granadas, retira uma defensiva, tira-lhe a cavilha, deita-se e lança a granada para debaixo da própria cama.

Mal tinha pegado no sono e um enorme estrondo ecoou. Saltei para a vala, mas como mais nada aconteceu, vi que não era ataque. Para o lado dos quartos dos graduados é que havia algum reboliço e não foi difícil adivinhar que algo de grave se estava a passar.

Estava um dos quartos totalmente esventrado, quase sem telhado, janelas e vários pequenos incêndios. No chão todo negro, quase irreconhecível no meio dos escombros, estava um corpo. Estava vivo.

O médico, mais enfermeiros, prestavam os primeiros socorros. Lascas de madeira, tinham-lhe dilacerado o corpo em especial as costas. Essas lascas eram da prancha de madeira, que era hábito pôr entre o colchão de arame e o de espuma, o que lhe acabou por salvar a vida.

Como era de esperar fomos afastados dali, mas também nada podíamos fazer a não ser estorvar.

A evacuação só se viria a processar já de dia, uma vez que os helis não operavam durante a noite. A evacuação veio às primeiras horas da manhã.

Viemos a saber que em Bissau o Alferes Orlando tinha sido internado no hospital militar, para tratamento das feridas - do corpo e da mente. Por milagre não corria perigo de vida, felizmente.

No dia do embarque do batalhão, lá estava ele ainda convalescente no cais, a despedir-se, com aquele sorriso de menino tímido que sempre lhe conheci. 
Ficou no cais a ver o barco fazer-se ao mar. Só viria a regressar mais tarde.

Muitos anos depois, soube que estava bem, que tinha ultrapassado aquele dia em que pensou resolver os seus problemas através daquela granada.

Nota do Juvenal Amado:


Todos nós quando embarcámos para a Guiné fomos informados de que a comissão não deveria ultrapassar os 18 meses. Facto que nunca se cumpriu e que, no nosso caso - se juntarmos o tempo de viagem – atingiu os 27 meses!
Os nomes dos intervenientes são forjados. Tive algum pudor em pôr os nomes verdadeiros, assim a estória poderá ser publicada como nosso direito de denunciar o mal que nos foi feito.
Para este camarada foi possivelmente demais o terceiro Natal!

<Fotos 2 e 3 do Juvenal Amado, que reproduzimos com a devida vénia>

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

P1262: PUXANDO PELA MEMÓRIA...


OS MEUS NATAIS NA GUINÉ

Hélder Valério Sousa
Inspirado por outros textos de camaradas, referentes à época natalícia durante a sua comissão de serviço, procurei relembrar os meus Natais passados durante o tempo da minha comissão militar de serviço por imposição na Guiné, um tanto para poder comparar com o que outros relataram mas outro tanto, e principalmente, para me “reencontrar”.

Ora, tendo chegado à Guiné em Novembro de 1970 e regressado em Novembro de 1972, é certo que os Natais de 1970 e de 1971 foram passados durante esse período e como por essas épocas não estive de férias, é então certo que foram passados lá…

O problema é que tenho pouca memória desses eventos. O Natal de 1970 foi passado “no mato”, em Piche, onde estive agregado ao BCAV 2922 desde o início de Dezembro desse ano até quase ao fim de Maio do ano seguinte.

Natal 1970 - Brinde
Desse Natal de 1970 muito pouco relembro. Procurei apoio de memória em dois camaradas que estiveram comigo no CSM em Santarém e que integravam o referido Batalhão - os então Furriéis Fernando Boto e Herlander Almeida - mas nada consegui que me pudesse ajudar.

O Boto disse-me que após a Guiné “apagou” todas essas memórias e que não me poderia valer. O Herlander foi no mesmo sentido, que não se lembra praticamente de nada, mas que agradece tudo o que eu tenho feito (escrito) e que, em certa medida, também o ajuda.

Quem poderia ser mais contributivo era o Luís Borrega, também membro da “Tabanca Grande” mas, entretanto, já falecido. Quando vivo foi um dos impulsionadores de encontros e convívios entre o pessoal das várias Companhias desse Batalhão e mesmo de encontros parcelares. Portanto, por aí também nada consegui…

Jantar Natal 1970
Contudo, tenho umas fotos que o Borrega em tempos me facultou e que julgo terem sido desse Natal de 1970 e de aqui junto duas delas.

Na que diz “Jantar Natal 1970” em que se vê uma travessa com leitão, reconheço o Furriel Mouta (Cripto), à esquerda. Eu sou o segundo do lado direito e lembro-me dos dois que estão de cada lado deste personagem que vos escreve mas, neste momento, não me recordo dos nomes. Na foto que diz “Brinde”, que se passa na mesma mesa, tem agora em primeiro plano do lado esquerdo o Luís Borrega, de camuflado, e à direita o Herlander, sendo que os restantes são os que estão na outra foto.

Não me recordo de pormenores mas tenho a ideia que foi uma noite passada com alegria, nesse jantar, com a protecção adequada no exterior. Depois, no recato, em solidão, os pensamentos voaram para longe, para junto dos familiares tentando visualizar como estariam de saúde e como estariam celebrando essa ocasião.

Já o Natal de 1971 foi passado em Bissau. Estava de serviço no meu turno na “Escuta” que, recordo bem, era das 19:00 de 24 às 01:00 já do dia 25.

Por tal motivo não participei no jantar colectivo que ocorreu na Messe de Sargentos do QG em Santa Luzia. Lembro-me de que comi mais cedo e tive direito a um reforço alimentar, composto por duas sandes de queijo e fiambre e uma lata de leite com chocolate… Dadas as circunstâncias não tenho nenhuma foto ilustrativa.

Recordo apenas que durante a solidão do turno tive tempo, muito tempo, para me interrogar sobre o que fazia ali, sobre o que e como seria o futuro após o fim da comissão, sobre o que e como poderia fazer para contribuir para que aquela guerra não se prolongasse indefinidamente.

Hélder Valério Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

P1261: MARIA ARMINDA SANTOS - HISTÓRIA DE VIDA

Com a devida vénia ao Blogue dos Especialistas da BA12 e à autora do texto, reproduzimos um escrito publicado há algum tempo naquele Blogue, em que a nossa camarada Enfermeira Paraquedista Maria Arminda Santos resume a sua história de vida até ao presente - uma vida preenchida e cheia de memórias inesquecíveis. 

Muitos de nós já a conhecem de convívios da Tabanca do Centro em que esteve presente. Aqui podem ficar a saber mais um pouco do que foi a sua vida pessoal e profissional, embora haja que reconhecer a dificuldade de se poder sintetizar em poucas linhas uma experiência pessoal tão rica e variada...

                     A VIDA É OS DIAS QUE NOS LEMBRAMOS

Mª Arminda Santos
Dias após completar 80 anos, recebi o convite para fazer este retrato escrito da minha vida. Chegada a esta idade, pensei não ter estes trabalhos; sobretudo, acho-me muito pequenina entre as figuras de Faces de Eva. A minha filha influenciou-me a partilhar as minhas vivências e a organizar as notas que escrevo desde que participei no livro Nós, Enfermeiras Paraquedistas, publicado em 2014, que reuniu testemunhos de várias colegas na Guerra do Ultramar. Aceite o desafio, fica este relato lembrando pessoas que comigo foram fazendo esta “viagem”; muitas delas já desaparecidas (tragicamente algumas), por ser essa a lei inexorável da vida.

Nasci em 1937, em Setúbal, a mais nova de seis irmãos, mas apenas três sobreviveram para me acompanhar pela vida; o João (nascido vinte anos antes de mim), a Ivone e a Gracinda. Não me recordo da minha mãe, que faleceu com febre tifoide, tinha eu dois anos e meio. Nessa altura, a tia Maria do Rosário, sua irmã, veio para nossa casa orientar as nossas vidas, acabando por se casar com o meu pai e tornando-se uma verdadeira mãe. Faleceu quando eu tinha oito anos. Depois, tive várias mães, a minha irmã Gracinda, a minha cunhada Laura, vizinhas e empregadas. O meu pai trabalhava na Mobil Oil, fazia a distribuição de combustíveis no Alentejo, permanecendo em casa apenas no fim de semana.

Habitávamos no Bonfim, zona verdejante da cidade, com palmeiras, plátanos, mimosas e lodeiros, rodeada de quintas com abundantes pomares. Com os vizinhos formávamos uma grande família. Nas noites de verão, os adultos ficavam à porta a conversar, e nós a apanhar pirilampos que guardávamos em caixas de fósforos. Passava os dias a brincar livremente no campo, à macaca, pião, eixo, trinta e um, berlinde, e à bola, onde, à vez, era jogadora e massagista, uma “maria-rapaz”, alegre e traquina. Um dia, um dos miúdos mandou-me uma coleção de bandeirinhas dos países, uma forma de pedir namoro. Era o Álvaro, com quem vim a casar.

Setúbal antiga
A minha infância foi vivida no decurso da II Guerra. Lembro-me de a minha irmã colar tiras de papel nas janelas e dizer que tínhamos de apagar a luz (dos candeeiros a petróleo) por causa dos aviões. Sentia medo e o meu pai sentava-me no colo, aconchegava-me no seu capote alentejano, contava ser um sobrevivente da outra guerra, para me afastar o receio. Quando a guerra terminou, ouvimos o anúncio na rádio e, com os outros garotos, corri com alegria a espalhar a boa nova.

Não havia infantários e, aos três anos, fiquei ao cuidado de uma mestra, com quem aprendi a ler e fazer contas. Tive uma boa instrução; quando ingressei na escola oficial fui diretamente para a segunda classe, e só não fiquei na terceira por ser demasiado jovem. Concluí a escolaridade obrigatória aos nove anos com distinção e o meu pai decidiu que eu não continuaria os estudos. Achava-se próximo da reforma e planeou voltar à sua aldeia para tratar das terras. Estava-me reservado acompanhá-lo, pelo que fiquei dedicada às tarefas domésticas.

Em outubro de 1951, o meu pai foi internado no Hospital dos Capuchos, em Lisboa, para ser operado a um tumor. Fui para casa da prima Gertrudes, que vivia lá perto, e visitava-o diariamente para lhe levar melhores refeições. Na véspera de ser operado chovia muito, razão que levou a minha prima a impedir-me de o visitar, apesar da minha insistência. Faleceu nesse mesmo dia, 9 de novembro, por erro médico durante a transfusão prévia à operação. O funeral realizou-se a 14 de novembro, dia do meu 14.º aniversário. Foi um desgosto enorme que permanece vivo na minha memória, tal a emoção com que o senti.

Por ser menor de idade, a empresa do meu pai enviou a nossa casa uma assistente social, a Dra. Irene Aleixo. Por decisão unânime dos meus irmãos, o valor da pensão a atribuir seria usado para eu voltar a estudar. O meu irmão foi nomeado tutor e iniciou-se a procura de um colégio interno. No dia 2 de fevereiro de 1952, Dia da Senhora das Candeias, entro no colégio da Congregação das Irmãs de São Vicente de Paulo, em Lisboa. Chorei convulsivamente, depois de o João partir. Fui confortada pelas Irmãs e apresentada às colegas. Rapidamente fiz amigas.

Fui uma aluna aplicada, apesar de algumas diabruras que me valeram sérias reprimendas. Concluí, no primeiro ano letivo, o 1.º e o 2.º anos, para espanto de Irmãs e colegas. Era também uma desportista nata; jogava ténis, basquetebol, patinava e era a capitã da equipa de voleibol nos torneios entre escolas. Durante os anos que fiquei no colégio só vim a casa nas férias de Natal e Páscoa e nas férias grandes. Passava os fins de semana com as Irmãs, que nos levavam a visitar os pobres dos bairros próximos do colégio.

Colégio e Escola de Enfermagem de São Vicente de Paulo
Foto recente

Foi necessário gerir bem o dinheiro para conseguir completar os estudos. A mensalidade, transferida da empresa do meu pai para as Irmãs, era uma fortuna na época, cerca de mil e duzentos escudos, fora o material escolar, o valor do enxoval que levei e os custos com as viagens nas férias. Quando os recursos findaram, as Irmãs conseguiram, através do Ministério da Assistência[1], um subsídio que me permitiu fazer o curso de Enfermagem, além do fardamento e uma mensalidade de cem escudos para despesas pessoais.

A existência do ensino de Enfermagem em Lisboa deve-se à Irmã Eugénia, senhora brasileira, neta de portugueses, com grande visão e dinamismo que, juntamente com o Prof. Francisco Gentil, impulsionou a criação da Escola de Enfermagem de São Vicente de Paulo, que iniciou atividade a 14 de novembro de 1937 (data do meu nascimento).

Em outubro de 1955, iniciei a primeira etapa do meu grande sonho, ser enfermeira, algo que vinha dos tempos de “massagista” e se acentuara nas visitas ao meu pai, no hospital. Fiz o curso com todo o empenho e tive a grande satisfação de ser uma das melhores alunas. Apresentei-me, em junho de 1958, na Escola Artur Ravara para prestar provas de Estado, tendo passado com a classificação de 18 valores (Muito Bom com distinção).

Hospital de Santa Maria
Optei por trabalhar no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, no Serviço de Patologia Médica. Comecei, em outubro de 1958, com doentes do sexo feminino e, passado um ano, fui nomeada subchefe, transitando para o piso destinado a doentes homens. Vivia no Lar das Enfermeiras do Hospital de Santa Maria, junto à Feira Popular.

Nesse período já namorava o Álvaro, que, em 1959, partira para a Índia no Serviço Militar Obrigatório. Regressou, em abril de 1961, no navio Niassa. Este mesmo navio partiria logo depois para Angola, com um contingente de militares mobilizado à pressa, após os ataques, um mês antes, por bandos armados com catanas a populações indefesas. No Santa Maria, o pessoal médico e os universitários andavam apreensivos com rumores de uma mobilização iminente.

Um dia por esta altura, a enfermeira Mascarenhas (Maria da Nazaré) perguntou-me: — Ouve lá, Lopes Pereira, eras capaz de largar tudo, de um dia para o outro, para ir para Angola tratar de feridos? — Respondi-lhe que sim, pelo que continuou: — Não contes a ninguém porque é segredo, mas a Madre Superiora da minha escola está a formar um grupo de onze enfermeiras para esse fim. Até já fizemos exames médicos, mas uma chumbou, e eu, sabendo que reúnes as condições exigidas, combinei com a Madre sondar a tua recetividade. — Aceitei de imediato.

A Nazaré, colega do Santa Maria, tinha conhecimento de um episódio ocorrido no meu segundo ano de curso, em 1957, quando comentei numa aula um filme passado na II Guerra sobre uma enfermeira da Força Aérea Inglesa. Notando o meu interesse, o professor referiu uma aluna, de outra escola de Enfermagem (Irmãs Missionárias de Maria), que tinha brevê de pilotagem e paraquedismo e deu-me o seu contacto. A aluna em questão era Isabel de Mello Rilvas (Isabelinha), a quem liguei no próprio dia e que se voluntariou a visitar o colégio para dar uma palestra sobre as suas experiências aéreas.

Em França, ela conhecera o grupo Socorristas do Ar, formado por médicas e enfermeiras paraquedistas que assistiam feridos em locais de difícil acesso, e ambicionou trazer este projeto para Portugal. Apresentou-o ao tenente-coronel Kaúlza de Arriaga, de quem era amiga. A ideia foi considerada interessante, mas inviável. Agora, os ataques em Angola tornavam aqueles planos inadiáveis.

Primeiro Curso de Enfermeiras Paraquedistas
No dia seguinte à conversa com a Nazaré, fui chamada ao Serviço de Saúde da Força Aérea. Passei os testes médicos e marcaram testes psicofísicos para 5 de maio. Ao batismo de voo seguiram-se as duras provas que foram superadas por todas, mas, como fiquei em primeiro, passei a ocupar o primeiro lugar na formatura, de acordo com a norma militar. Os acontecimentos sucederam-se em avalanche: a despedida do serviço do Santa Maria; a comunicação da minha decisão à família; o início do curso intensivo a 6 de junho, que incluía instrução de paraquedismo, e a sua conclusão, a 2 de agosto, com o inesquecível primeiro salto.

A cerimónia das finalistas, a 8 de agosto, em que recebemos o brevê e a boina verde (símbolos do orgulho dos paraquedistas), foi noticiada pela imprensa escrita, rádio e televisão, que deram a conhecer “as seis Marias”; éramos as primeiras mulheres nas Forças Armadas Portuguesas.

Ainda nesse mês, no dia 22, realizei a primeira missão em Angola, acompanhada pela, também alferes, Maria Ivone. Tratava-se de testar a nossa adaptação operacional e avaliar a aceitação de mulheres no meio militar. Foram duas semanas muito intensas, em que participámos na operação aerotransportada de militares na Serra de Canda. Voltei a Angola, em outubro, com a Zulmira (que veio a ser madrinha da minha filha) e a Nazaré. Acompanhou-nos na viagem a Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima, a quem elevei as minhas preces para a vida que estava a iniciar. Para trás ficara uma vida estável, tranquila, o ambiente de claustro das enfermarias hospitalares. A nossa prestação foi-se ajustando às necessidades; assistimos militares, civis e até o inimigo.

Evacuando feridos num DO-27
O conflito intensificou-se, alastrou a outras frentes, houve necessidade de abrir mais cursos, nunca fomos suficientes. Além de Angola, estive em Carachi, Guiné e Moçambique, tendo como principais missões a evacuação de feridos dos cenários de guerrilha e o acompanhamento e tratamento de doentes a bordo dos aviões até aos hospitais de Lisboa. 

Foi-nos exigida grande capacidade de adaptação, não só pela ausência de planeamento logístico para militares mulheres, como pelo próprio clima e população que diferiam entre territórios. Valeu-nos a amizade de colegas e civis que nos acolheram e apoiaram.

Prestes a completar dez anos em comissão contínua de serviço, já tenente, passei voluntariamente à disponibilidade a 15 de dezembro de 1970. Em 25 de janeiro, comecei a trabalhar em Setúbal, nos Serviços Médicosociais, com horários mais compatíveis com a futura condição de casada do que os Serviços Hospitalares, que preferia. Casei a 18 de abril e passei a morar no Bairro Santos Nicolau, onde foi inaugurado, em agosto do ano seguinte, o Posto Médico n.º 22, que integrei como Enfermeira-Chefe.

Em 1974, dá-se o 25 de Abril (a minha filha Ana tinha dois anos e o meu filho João estava a dois meses de nascer), que trouxe a esperança de liberdade e a possibilidade de cessarem as hostilidades no Ultramar. Passei por maus momentos quando me recusei a aderir à (primeira) greve dos enfermeiros. Apelidada de reacionária e fascista, sindicalistas e colegas quiseram o meu despedimento. Insultada, quase agredida, valeram-me algumas pessoas do bairro, a quem tinha ajudado em situações de necessidade.

Como a verdade e o reconhecimento vêm sempre ao de cima, fui depois nomeada para vários cargos no âmbito da criação do Serviço Nacional de Saúde, que se efetivou em 1979. Desde 1980 até 1 de maio de 1992, data em que me aposentei, não mais voltei ao exercício profissional como enfermeira, apenas desempenhei cargos técnicos e diretivos, o último como Vogal da Administração Regional dos Serviços de Saúde do Distrito de Setúbal.

A Maria Arminda e a Isabelinha Rilvas
numa foto recente

Descrever em breves linhas os meus anos de aposentação deve-se à falta de espaço, porque o texto vai longo e não pela falta de episódios marcantes neste período da minha vida. Tinha 54 anos, vontade de ser prestável à comunidade e apoiar melhor os meus filhos. Na minha cidade, envolvi-me em várias Associações, como a Liga dos Amigos do Hospital de S. Bernardo, Associação de Paraquedistas, Soroptimist Internacional, as duas últimas como sócia-fundadora.

Nestas quase três décadas, foi também necessário dedicar cuidados de saúde a familiares e amigos, e eu própria tive a minha dose de maleitas. Foi também tempo de comemorar: as conquistas académicas e profissionais dos filhos, o nascimento dos netos (Pedro, André, Filipe) e sobrinhos. 

Continuo a ser uma mulher elétrica, ocupada com a família, as muitas Associações, as aulas de zumba e da Universidade Sénior, informada e atenta ao mundo, cabendo-me ocasionalmente, por ter sido a primeira enfermeira paraquedista, a tarefa honrosa de narrar como foi, para um grupo de 47 jovens mulheres, realizar uma missão de “Paz em Tempo de Guerra”.

Maria Arminda Santos

Enfermeira Paraquedista


 

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

P1260: IN MEMORIAM - JOSÉ VERSOS CRAVINO

 José Versos Cravino faleceu na Covilhã em 5 de Fevereiro de 2020.

Reproduzo um texto que tem mais de 55 anos e que faz parte do DIÁRIO da Companhia de Caçadores 675, editado em 1965!

JERO

UM “BON VIVANT…”

Estas crónicas ficariam mais pobres sem a riqueza da personagem de que a seguir nos ocupamos.

Chama-se José Versos Cravino, é natural da Covilhã e já foi, em tempos que já lá vão, Furriel Vagomestre da Companhia. Dificuldades de adaptação e outros relacionados com os primeiros tempos da Guiné fizeram com que “mudasse” de especialidade depois de, sozinho, ter conseguido atrapalhar pelo menos uns dez indivíduos que tentaram terminar o seu primeiro mapa do rancho.


Já no mato, sem ter nos bolsos das suas calças facturas do rancho, passou a Furriel de Armas Pesadas, começando a sair em patrulhas com a sua Esquadra. Continuava pouco ambientado, autenticamente abstracto, “aéreo” (como lhe chamavam os seus camaradas), sempre só com os seus pensamentos e os seus problemas, quase sem sair da sua camarata, mais parecendo um plantão à dita de que um Furriel com tarefas de responsabilidade…


Os seus camaradas bem o procuravam animar, brincavam com ele, tentavam distraí-lo e fazer com que “aterrasse” de vez em terras da Guiné. Ele, que era forte e a “puxar” para o anafado, emagreceu, andava mal encarado, mudo, não reagindo às dificuldades.

Um dia ia-se matando no seu "quarto" ao tirar um carregador da sua “G3” que, por sua culpa, se disparou. A bala passou-lhe por debaixo do braço, rompeu-lhe a camisa e foi furar uma telha mesmo por cima da sua cabeça.


Com este “tratamento de choque” começou aí talvez a sua recuperação.
Entretanto terminaram os trabalhos da pista de aviação de Binta e com o primeiro avião “aterrou” também o Furriel Cravino, que se modificou completamente para melhor. Umas semanas depois “tínhamos” em Binta um Cravino de que ninguém já se lembrava. Mais nutrido, de excelentes cores e a falar pelos cotovelos… 


Seguia “desenrascado” para operações militares no mato com sorriso nos lábios, dizendo bem humorado que se os terroristas aparecessem ele lá estava para lhes mandar umas morteiradas nos cornos…

Os meses foram passando e o Cravino, de figura “apagada” passou ao primeiro plano; e onde havia risota, boa disposição e um “petisco” já se sabia que lá estava o nosso Furriel de Armas Pesadas. O “aéreo” passou a “bom vivant” sem problemas ou complexos.


Embora de maneira diferente do Furriel Moreira ele é, à sua maneira, um indivíduo desenrascado, embora comodista. Enquanto o Moreira vai à caça para arranjar um petisco, o segundo aparece quando o petisco já está pronto a ser comido…


Esquece-se com frequência de comprar tabaco, sabonetes, lâminas, cremes de barbear, papel higiénico, fósforos, etc., e vai pedindo o que precisa ao parceiro mais próximo, dizendo sempre nessa alturas “que aqui temos que ser uns para os outros…”.


É certo que quando tem também dá e que, quando lhe chegam os bons queijos da serra da Estrela todos os seus camaradas os provam - embora, sendo os queijos uma delícia, por pouca sorte isso não aconteça muitas vezes…

Gosta de fazer umas “partidas” aos amigos e também aceita com um sorriso as que lhe fazem. Já sofreu algumas dos seus camaradas, que também não perdem a oportunidade de se “pagaram com a mesma moeda”…

Há dias em que tem os seus azares e ainda há pouco tempo, quando esteve a “treinar” assinaturas num papel de máquina de escrever, deixou o “documento” abandonado na Secretaria do 1º Sargento Santos e acabou por ter de pagar 3 cervejas a um seu camarada que aproveitou uma das assinaturas para fazer um vale, que fez chegar à Cantina… Ele encaixou com desportivismo a “piada” e continuou bem disposto e a animar com a sua presença Binta, onde já era figura de primeiro plano.

É indiscutivelmente um grande “ponto” o nosso amigo Cravino.”

 

Nesta hora de partida recordamos-te com muita saudade. E não te esquecemos.
Até um dia, José Versos Cravino!


JERO