quarta-feira, 25 de novembro de 2020

P1260: IN MEMORIAM - JOSÉ VERSOS CRAVINO

 José Versos Cravino faleceu na Covilhã em 5 de Fevereiro de 2020.

Reproduzo um texto que tem mais de 55 anos e que faz parte do DIÁRIO da Companhia de Caçadores 675, editado em 1965!

JERO

UM “BON VIVANT…”

Estas crónicas ficariam mais pobres sem a riqueza da personagem de que a seguir nos ocupamos.

Chama-se José Versos Cravino, é natural da Covilhã e já foi, em tempos que já lá vão, Furriel Vagomestre da Companhia. Dificuldades de adaptação e outros relacionados com os primeiros tempos da Guiné fizeram com que “mudasse” de especialidade depois de, sozinho, ter conseguido atrapalhar pelo menos uns dez indivíduos que tentaram terminar o seu primeiro mapa do rancho.


Já no mato, sem ter nos bolsos das suas calças facturas do rancho, passou a Furriel de Armas Pesadas, começando a sair em patrulhas com a sua Esquadra. Continuava pouco ambientado, autenticamente abstracto, “aéreo” (como lhe chamavam os seus camaradas), sempre só com os seus pensamentos e os seus problemas, quase sem sair da sua camarata, mais parecendo um plantão à dita de que um Furriel com tarefas de responsabilidade…


Os seus camaradas bem o procuravam animar, brincavam com ele, tentavam distraí-lo e fazer com que “aterrasse” de vez em terras da Guiné. Ele, que era forte e a “puxar” para o anafado, emagreceu, andava mal encarado, mudo, não reagindo às dificuldades.

Um dia ia-se matando no seu "quarto" ao tirar um carregador da sua “G3” que, por sua culpa, se disparou. A bala passou-lhe por debaixo do braço, rompeu-lhe a camisa e foi furar uma telha mesmo por cima da sua cabeça.


Com este “tratamento de choque” começou aí talvez a sua recuperação.
Entretanto terminaram os trabalhos da pista de aviação de Binta e com o primeiro avião “aterrou” também o Furriel Cravino, que se modificou completamente para melhor. Umas semanas depois “tínhamos” em Binta um Cravino de que ninguém já se lembrava. Mais nutrido, de excelentes cores e a falar pelos cotovelos… 


Seguia “desenrascado” para operações militares no mato com sorriso nos lábios, dizendo bem humorado que se os terroristas aparecessem ele lá estava para lhes mandar umas morteiradas nos cornos…

Os meses foram passando e o Cravino, de figura “apagada” passou ao primeiro plano; e onde havia risota, boa disposição e um “petisco” já se sabia que lá estava o nosso Furriel de Armas Pesadas. O “aéreo” passou a “bom vivant” sem problemas ou complexos.


Embora de maneira diferente do Furriel Moreira ele é, à sua maneira, um indivíduo desenrascado, embora comodista. Enquanto o Moreira vai à caça para arranjar um petisco, o segundo aparece quando o petisco já está pronto a ser comido…


Esquece-se com frequência de comprar tabaco, sabonetes, lâminas, cremes de barbear, papel higiénico, fósforos, etc., e vai pedindo o que precisa ao parceiro mais próximo, dizendo sempre nessa alturas “que aqui temos que ser uns para os outros…”.


É certo que quando tem também dá e que, quando lhe chegam os bons queijos da serra da Estrela todos os seus camaradas os provam - embora, sendo os queijos uma delícia, por pouca sorte isso não aconteça muitas vezes…

Gosta de fazer umas “partidas” aos amigos e também aceita com um sorriso as que lhe fazem. Já sofreu algumas dos seus camaradas, que também não perdem a oportunidade de se “pagaram com a mesma moeda”…

Há dias em que tem os seus azares e ainda há pouco tempo, quando esteve a “treinar” assinaturas num papel de máquina de escrever, deixou o “documento” abandonado na Secretaria do 1º Sargento Santos e acabou por ter de pagar 3 cervejas a um seu camarada que aproveitou uma das assinaturas para fazer um vale, que fez chegar à Cantina… Ele encaixou com desportivismo a “piada” e continuou bem disposto e a animar com a sua presença Binta, onde já era figura de primeiro plano.

É indiscutivelmente um grande “ponto” o nosso amigo Cravino.”

 

Nesta hora de partida recordamos-te com muita saudade. E não te esquecemos.
Até um dia, José Versos Cravino!


JERO

 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

P1259: PARA QUEM FEZ A COMISSÃO DE SERVIÇO NA GUINÉ...

                                 O MONÓCULO

Carlos Pinheiro
Iniciava-se a década de 1970. A guerra colonial, que veria o seu termo com a revolução de 25 de Abril de 1974, atravessava então um período particularmente complicado na província ultramarina da Guiné Portuguesa, após o que fora a invasão a Konacry (operação Mar Verde), o célebre episódio da morte dos majores e o assassinato de Amílcar Cabral. Na capital da província, porém, a actividade bélica não se fazia ainda sentir com a intensidade dos anos de 72 e 73, época em que a própria baixa do burgo não foi poupada ao bombardeamento com foguetões 122, a que o comum dos cidadãos dava, completamente borradinho, a pomposa designação de mísseis.

O consumismo em Bissau, naquele tempo (excluindo o negócio da restauração e do divertimento, garantidos sobretudo pelo "Pelicano", pelo "Solar do Dez" e pelo "Gato Negro"), era dominado por menos do que meia dúzia de casas comerciais, das quais destaco em primeiríssimo lugar a "Casa Gouveia" (grupo CUF), comércio geral, alimentação, vestuário, artigos para a casa, etc.

Seguiam-se outras de menor volume de negócios mas não menos importantes no tecido económico da cidade, tais como a casa "Taufik Saad", especializada em livraria (até alguma literatura da tal que não se podia vender em Lisboa), música, material escolar e fotografia; "Os Correias", que detinham o exclusivo da venda de viagens marítimas e aéreas de e para o continente; a "Casa Pintozinho", que era o representante da Renault na Guiné Portuguesa, mas que detinha também o único oculista de Bissau, frente à fortaleza da Amura, na baixa da cidade, já que era essa a profissão base do seu proprietário, o distinto senhor António Pinto.

É sobre a particularidade de um infeliz desfecho de diálogo aos balcões da "Óptica Pintozinho" que me dedicarei nos próximos parágrafos. Mais uma vez declaro que me limito a transcrever ipsis verbis o que me foi contado, ainda que nas presentes circunstâncias as minhas dúvidas quanto à verosimilidade do caso sejam tão evidentes, que me proponho mesmo, com convicção, a classificar o episódio como mero fruto de alguma fecunda imaginação, sem a menor parcela de fundamento real, como se verá.

Mas cá vai:

Era então Governador-Geral e Comandante-Chefe das Forças Armadas naquela província ultramarina da África Ocidental o general António Sebastião Ribeiro de Spínola, personagem incontornável pelo seu carisma enquanto líder incontestado e senhor de uma austera personalidade de militar (homem de cavalaria) da velha guarda, cuja imagem de marca passava pelo uso de luvas pretas de pele, pingalim e monóculo na vista direita.

Ora constava que, durante uma consulta de rotina, teria o médico oftalmologista do Hospital Militar de Bissau prescrito ao general uma actualização da graduação da sua prótese ocular, pelo que este despachou de imediato o cabo-motorista do seu velhinho Mercedes 180D (que lá não havia carros de luxo), de receita em punho, direitinho ao oculista "Pintozinho", com a missão de mandar executar com a brevidade possível um novo monóculo para Sua Excelência.

Regressou o dito motorista (na tropa diz-se condutor) ao palácio do governo com a informação de que a lente estaria pronta nesse mesmo dia, pelas quatro, quatro e meia da tarde, e entregando ao governador a guia que permitia o oportuno levantamento do dito artefacto óptico.

E até aqui, tudo bem.

Fazendo justiça ao seu exigente espírito de pontualidade, e munido da referida guia, Spínola apresenta-se aos balcões da "Casa Pintozinho" exactamente às quatro horas e trinta minutos dessa tórrida tarde tropical (igual, aliás, a todas as outras), a fim de experimentar, levantar e pagar tão importante adereço da sua imagem.

O profissional António Pinto, que estava algures lá para dentro no laboratório, apercebendo-se da presença do governador na loja, deixa imediatamente o trabalho que tem entre mãos para vir rápido ao balcão, fazendo questão de ser ele a atender pessoalmente o ilustre cliente.

Cumprimentos para aqui, salamaleques para acolá, como é da praxe, e eis que um empregado avança com um pequeno tabuleiro forrado interiormente a veludo azul, em cujo centro se apresenta, resplandecente e faiscante, um minúsculo círculo de vidro, que o general inspecciona e experimenta, declarando-se confortável, e que devolve em seguida ao tabuleiro, sendo entretanto criado um compasso de espera para emissão da factura e regularização do respectivo pagamento.

Então, solícito como convém, o senhor António Pinto pega no precioso objecto, desembacia-o e limpa-o cuidadosamente com uma fina camurça, saca de um pequeno estojo de cabedal e, exibindo a amabilidade do seu melhor sorriso, questiona o velho militar:

"- Senhor general, devo embrulhar, ou Vossa Excelência vai levar no olho???"

Carlos Pinheiro

 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

P1258: 1972 - NA ESTRADA GALOMARO - SALTINHO


UM DIA NEGRO

Guiné, 15 de Novembro de 1972

Juvenal Amado
Tinha as virilhas e a parte interna das coxas cheias de bolhas, provocadas pela micose que me afligia praticamente desde que desembarcara na Guiné. A comichão era intensa, e já a fórmula 8 LM usada nestes casos pouco efeito sortia para além do momento em que se aplicava e da dor que provocava.

A coluna militar em direcção ao 
Saltinho tinha partido de Galomaro ainda o céu estava escuro para efectuar a recolha de Páras, que tinham sido largados na zona, se não estou em erro dois dias antes. Faziam segurança à coluna o pelotão do PEL REC (Pelotão de Reconhecimento e Informação), reforçado por milícias africanas.

A picada tinha sido abandonada já algum tempo, pois era mais seguro, embora muito mais longe, abastecer a Companhia do Saltinho, através de picadas onde beneficiávamos do apoio das Companhias que faziam parte do Batalhão de Bambadinca, aquarteladas ao longo do percurso. Normalmente o Esquadrão de Cavalaria de Bafatá também participava com as Chaimites.

Como era uso, uma Berliet, carregada de sacos de areia e os pneus cheios de água por causa das minas, seguia à frente e as ordens eram para se manter distância, desde que não se perdesse o contacto visual com a viatura que seguia na frente.

A picada estava em mau estado pois não era usada há bastante tempo, mas o pior era o capim que tinha crescido de tal forma que nos encharcava com o cacimbo abundante nessa altura do ano. Embora normalmente com um clima escaldante, não era nada agradável aquela hora.

A coluna parou numa aldeia abandonada. Mais parecia que os seus habitantes tinham desaparecido por artes mágicas, pois o povoado estava em perfeitas condições e as palhotas não estavam degradadas pelo abandono. 

Após um breve descanso veio a ordem de que o Pelotão de Reconhecimento e Informação (PEL REC) devia formar em duas filas indianas, uma de cada lado da picada, mas de forma a que uma começava onde a outra acabava e guardando uma distância de segurança entre cada uma, de modo a que, caso houvesse um rebentamento de mina, não fosse atingido mais ninguém para além do infeliz que a pisasse.

A minha Berliet, que até a essa altura tinha funcionado como rebenta-minas, passou para trás dessa coluna apeada, onde os soldados passariam a ter as funções de proceder à picagem à frente dos próprios pés do terreno que todos iriam pisar.

Não eram funções para as quais o Pelotão estivesse bem treinado. Na verdade tinham feito alguns ensaios, mas a prática era quase nula. Acrescento que os milícias se recusaram a fazer semelhante serviço.

Eram na grande maioria meus amigos chegados os homens daquele pelotão, não será demais afirmar o risco que eles iam correr, era uma realidade atroz.

A coluna começou a progredir na direcção do nosso objectivo. O Aljustrel, soldado mecânico, tinha-se oferecido para esta missão, talvez por solidariedade ou talvez porque lhe tivesse apetecido pisar o risco. Na verdade, como meu companheiro da cama ao lado da minha, havia entre nós uma grande amizade, talvez as minhas conversas sobre este tipo de viagens e o facto de ele nunca ter ido ao Saltinho tenham influenciado esta sua decisão.

A velocidade de progressão da coluna seguia ao ritmo dos homens que iam espetando uma vara com uma ponta de ferro no chão, pois no caso de lá haver uma mina a terra fofa facilmente seria ultrapassada pela ponta e esta, ao embater num objecto enterrado, transmite ao seu utilizador o que facilmente é de prever.

Aljustrel é que ia a guiar, utilizando o acelerador de mão e eu sentado no extremo oposto. Agradecia o favor, pois era muito chato e requeria muita atenção fazer aquele tipo de condução, pois à nossa frente, nunca é de mais lembrar, seguiam homens a pé.

Quarenta e oito anos passados, a certeza sobre o tempo em que a coluna progrediu não está já muito presente na minha memória, mas penso que nem uma hora foi, até que um forte rebentamento se fez ouvir, e o que vi foi tudo negro, terra e fumo no ar.

Atirei-me da viatura e procurei abrigar-me longe dela. Deitado no chão junto do Ivo, e sem saber o que tinha acontecido, logo começámos a ouvir os gritos lancinantes e tivemos a certeza que alguém estava gravemente ferido.

À nossa frente, as folhas rasteiras estavam todas salpicadas de sangue, e à minha esquerda, metro e meio recuado, estava um pé descalço, amputado, com um pedaço de perna, era branco e estava estranhamente limpo.

Os gritos e o choque entravam fundo em nós, e foi o Aljustrel ou o Silva que disse que tinha sido o Teixeira a pisar uma mina antipessoal.

Junto dele estava o maqueiro (o Russo, assim chamado devido à cor do cabelo), o qual tentava minimizar o sofrimento e estancar o sangue das feridas do camarada. Este tinha as duas pernas decepadas, e o que restava era uma mistura de tecidos, com restos de farda; o preto da explosão era a cor dominante.

Foi de imediato pedida evacuação. Todos esperávamos talvez um milagre e, ao vermos o nosso camarada, o terror em mexermos os pés do sítio em que estávamos era enorme.


Os gritos foram abrandando, a vida escapava daquele jovem de 22 anos que nem uma hora antes estava pleno de vida, - na terra tinha deixado namorada, pais, talvez irmãos como a maioria de nós.

O rosto ficou sereno e a luz que iluminava os seus olhos apagou-se, deixando-os baços e opacos a olhar para nós sem nos ver. Ali ficou deitado junto ao buraco que a explosão havia aberto, até que o heli passou por cima de nós. Foi a última vez que o vi quando o levaram para um local mais aberto, onde foi enfim recolhido.

Foi necessário retomar a marcha, da mesma forma que tinha sido feito antes - os nossos camaradas do PEL REC a pé, picando à frente dos seus pés, pois podia haver mais minas. Era uma visão da verdadeira coragem vê-los a caminhar à minha frente depois do que tínhamos acabado de presenciar, situação que podia acontecer novamente a qualquer momento.

O regresso foi feito em silêncio pesado, voltámos a passar no sítio e não pude evitar olhar para o buraco, que tinha a dimensão de meio bidão de duzentos litros, e nos obrigava a sair da picada para o contornarmos.

Segui para 
Nova Lamego (Gabu) com os Pára-quedistas, e nesse mesmo dia regressei a Bafatá, desejoso de estar junto dos meus camaradas, facto que só se veio verificar no outro dia.

Nessa noite bebi até ficar dormente mas não consegui dormir. Na minha cabeça a recordação do acontecido era demasiado presente, via a coluna de fumo, e ainda sentia o cheiro. A explosão e os gritos martelavam-me sem parar.

Este foi um dia como outros na Guiné-Bissau. Para este camarada como para centenas de outros, a guerra acabou tarde de mais.

Dedico este relato aos meus camaradas do BCAÇ 3872, e mais precisamente aos que viveram aquele dia comigo, pois vamos para a guerra e nunca retornamos dela.


Juvenal  Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
(Galomaro, 1972/74)

Algumas imagens reproduzidas do Blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné, com a devida vénia.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

P1257: UM OUTUBRO JÁ DISTANTE...

           23 DE OUTUBRO DE 1968

Desde meados de Agosto, quando no Destacamento do STM, no Quartel General em Tomar, recebi por teleimpressor a mensagem dirigida ao Chefe do Estado Maior do QG da II Região Militar, a solicitar a minha apresentação na minha Unidade, o Batalhão de Telegrafistas em Lisboa, tinha ficado logo a saber que estava mobilizado, só não sabia ainda para onde era.

Era a carta de chamada como alcunhávamos aquelas mensagens diárias e constantes, Só que as outras eram para outros e este era para mim mesmo em pessoa.

Claro que no dia seguinte lá fui para Lisboa e, depois de me apresentar na Companhia a que pertencia - a RE, Radiogoniometria e Escuta - recebi a guia de marcha para o RI 15 de Tomar para aguardar embarque.

E assim foi. No outro dia lá estava no RI 15 que nesse mesmo dia entrou – estávamos a 11 de Setembro – de prevenção rigorosa devido ao estado de saúde do Presidente do Conselho.

Para evitar grandes pensamentos calhou-me logo entrar de serviço numa Companhia de Ordem Pública, pronta a sair para a rua caso acontecessem alterações à ordem pública. Mas como a maioria do pessoal estava habituado a comer e a calar, não houve necessidade da força sair do quartel, Ainda bem, porque a companhia era constituída maioritariamente por cozinheiros e corneteiros - que deveriam saber muito pouco das funções duma Companhia de Ordem Pública - e alguns nem saberiam bem o que era uma espingarda. Mas passemos à frente…

No outro dia consegui ficar como impedido na Secretaria da Companhia a aguardar notícias acerca da data do embarque e, entretanto, também consegui desenfiar-me uns dias e lá fui até Alcanena para fazer as despedidas da praxe e aliviar o espírito com algum tempo.

Mas regressei a tempo e horas ao RI 15. Estavam dois Batalhões a fazer o IAO e começou a constar que um iria para a Guiné (por acaso acabou por ser o 2856), o outro (de que nunca cheguei a saber o número) deve ter ido para Angola ou Moçambique.

Mas ainda tive uns 10 dias de férias oficiais porque desta vez já havia data marcada para a partida – 23 de Outubro, e assim aconteceu. Foram mais umas despedidas até porque nada mais havia a fazer.

Na véspera do embarque fui com um amigo no seu carro, onde ia também um filho dele, mobilizado para Angola, mas que não chegou a embarcar - sabe-se lá porquê. Foi uma noite mal dormida e de manhã cedinho lá formámos algumas dezenas de rendição individual como eu, e lá fomos numa GMC para o Cais. Ainda tivemos oportunidade de nos voltarmos a despedir das famílias, já que não desfilámos.

Entretanto o tal BCaç 2856 tinha começado a embarcar, assim também um Pelotão da PM e finalmente a malta de rendição individual.

Tudo a bombordo do UÍGE para dizer o último adeus. Ao meio dia em ponto o navio deu alguns toques prolongados e anunciar que estava pronto para começar mais uma viagem. Os cumprimentos oficiais da praxe já tinham sido feitos, as senhoras do MNF já tinham descido as escadas depois de nos terem oferecido uns aerogramas, um maço de tabaco e um isqueiro. As escadas foram retiradas e o cordame recolhido, os rebocadores já estavam a postos para levarem o UÍGE até ao meio do Tejo.

No cais a multidão ainda era imensa. Os lenços brancos acenavam das varandas da Gare da Rocha a corresponder aos lenços que das amuradas do navio também acenavam. Eram as despedidas.

A banda militar estava a acabar os seus acordes e o UÍGE, com a ajuda dos rebocadores, lá se encaminhou para o melhor local do Tejo para iniciar mais uma viagem de 5 dias até às terras da Guiné. Depois foi o passar sob a Ponte Salazar a caminho do Atlântico e tudo pareceu muito rápido.

Seguiram-se cinco dias de mar e céu, com mais ou menos acompanhamento de peixes voadores, a passagem relativamente perto das Canárias e a chegada ao largo de Bissau a 28 de Outubro - onde as águas já não eram azuis mas amareladas, para não dizer acastanhadas.

Foram só cinco dias de viagem, mas cinco dias inesquecíveis. E como a maioria do pessoal, os soldados e cabos, viajou nos porões, nesses grandes buracos fechados de onde só se via a luz do dia pelo buraco por onde tínhamos entrado e descido aquelas imensas escadas de madeira, nem vale a pena dizer nada aquelas maravilhosas acomodações. Os cheiros acumulados ao longo de anos - já que era nos porões que eram transportadas todas as mercadorias de e para África no tempo em que o navio fazia carreira para Angola - mais os cheiros de milhares de soldados que por ali já tinham passado ao longo dos últimos anos, eram de facto horrorosos. Mas não havia alternativa…

Foi um bom princípio, sem dúvida, para o que nos estava guardado. Depois, bem depois, foram vinte e cinco meses e dez dias, passados todos naquela terra quente e húmida, que ao fim deste tempo todo nunca mais consegue encontrar a paz a que tem direito e de que tanto precisa.

E assim já lá vão cinquenta e dois anos desde aquele 23 de Outubro de 1968.

Carlos Pinheiro