domingo, 10 de janeiro de 2016

P749: AVENTURAS E DESVENTURAS EM LUANDA

DE COMO PASSEI A SER LADRÃO DE

CORTES DE FAZENDA…


Luanda, Março de 1975.

Depois de uma noite “complicada”, porque envolveu muitos copos e muitas horas, no regresso a casa, entro, sem querer, numa rua sem saída que terminava num passeio muito alto.

O carro embate com o para-choques no passeio, eu vou com as ventas ao para-brisas que fica estilhaçado, e a minha cara transforma-se rapidamente num filme de terror com cortes por todo o lado e sangrando abundantemente.

Os copos anestesiam um pouco a coisa e saio do meu carro pelo meu pé, dirigindo-me à rua principal.

Aqui falha-me a memória se foi alguém que caridosamente me depositou no Hospital de Luanda, ou algum táxi que consegui apanhar, mas dado o adiantado da hora, acredito mais na primeira hipótese.

Dou então comigo no hospital a ser cozido na cara a sangue frio, sem grande desinfecção e lavagem das feridas, de tal modo que passados muitos, muitos anos, ainda andava a tirar pedaços ínfimos de vidros, sobretudo nas sobrancelhas, à medida que eram rejeitados pelo corpo. Enfim, coisas que acontecem!!!

Dispensado pelos médicos, (ou lá quem é que me coseu), parti sozinho à procura da saída do hospital, em tronco nu, visto que a T-shirt que vestia tinha sido cortada no hospital.

Junto à saída do hospital, ou já cá fora (não me lembro bem), tinha à minha espera um ou dois agentes da PSP bem como um Alferes do Exército (com soldados numa Berliet), que me identificaram, tendo-me informado que estava detido por ter assaltado uma loja de cortes de fazenda.

Julguei que estava mais bebido do que estava, ou que aquilo era uma partida muito parva e sem sentido. Fosse como fosse, invocando a minha recente situação de Alferes Miliciano na Guiné e argumentando não sei muito bem como, lá consegui que o Alferes me levasse na Berliet até ao local do acidente, (em vez de ir com a PSP, naqueles tempos após o 25 de Abril os militares mandavam mais), para lhe provar que tudo aquilo era uma estupidez sem sentido.

Lá chegámos ao local onde estava o meu carro, diga-se de passagem bastante destruído, e qual não é o meu espanto quando verifico que por cima do capot no exterior, bem como nos bancos no interior do carro, estavam diversos cortes de fazenda!!!

O espanto foi total e tive de me render à evidência, permitindo que os militares me levassem para a esquadra da PSP. Aí chegado, convenci os agentes de que precisava de telefonar para resolver de vez aquele assunto, que nada tinha a ver comigo.

Claro que a melhor opção era telefonar para a Base Aérea de Luanda, onde tinha amigos, e até podia ser que o Major Pil Av Luís Quintanilha, (meu particular amigo e companheiro nesses tempos), tivesse chegado de Lisboa e me pudesse ajudar.

Assim não aconteceu e, não sei como, dei comigo a falar com o Major Bessa (*), Piloto Aviador já falecido, que era meu conhecido e amigo desde os tempos da Base de Monte Real, em que eu convivia, (embora mais novo), com os Pilotos da Força Aérea.

Foi-me buscar à esquadra da PSP e com promessas de retorno rápido, etc., e pela “autoridade conferida” aos militares nesse tempo, lá fomos no seu carro, tendo-o eu convencido a voltarmos ao local do acidente.

Aí chegados, (era uma zona de moradias), batemos à porta da casa mais perto do acidente e perguntámos se, por acaso, tinham visto alguma coisa. Não foi preciso ir mais longe, porque o dono da casa informou logo que estando acordado àquela hora da madrugada em que se deu o acidente, tinha antes ouvido barulho na rua e espreitado para perceber o que se passava.

Contou ele que viu dois ou três vultos, carregando os tais cortes de fazenda, e que os mesmos largaram tudo e fugiram quando o meu carro entrou pela rua sem saída. Mais informou, que tendo-me visto ir embora, e como os cortes de fazenda estavam no chão da rua, para não se estragarem os colocou no capot e nos bancos do carro!!!

Trabalho de investigação concluído, foi regressar à esquadra e dizer àquele pessoal que fizessem o trabalho como devia ser!

Ainda hoje estou para perceber porque é que o dono da casa se preocupou tanto com os cortes de fazenda e não comigo??? Mistérios da natureza!!!

A história é verdadeira, mas pode, obviamente, ter algumas lacunas ou imprecisões, dado o tempo já passado, (41 anos), e sobretudo o tempo que naquela altura se vivia com uma guerra civil diária em Luanda, entre os três movimentos políticos angolanos.

E assim passei a ser, durante algum tempo, ladrão de cortes de fazenda!!!


Joaquim Mexia Alves
10 de Janeiro de 2016

(*) Manuel Bessa Rodrigues Azevedo
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2014/11/guine-6374-p13845-in-memoriam-201.html
(Com a devida vénia à Tabanca Grande, claro!)

8 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde Joaquim
Que história do "caraças". Não ponho a mínima dúvida em tudo o que contas pois em África tudo pode acontecer.Teve um final feliz, embora com muitos cortes na tua face.Juntando os "cortes de fazenda"...são "cortes mais que muitos" !!!
Mas estás cá e de saúde e isso é que interessa.
Grande abraço,
JERO

Joseph disse...

Quem diria que foste Tu o culpado de dares ideias ao rebanho de senhoritos actuais täo destros a meter a mäo na... "Fazenda" !
(Näo é só em África que tudo pode acontecer Amigo Jero...Näo é só em África!)

Um grande abraco desde os 42 graus negativos.

José Belo

Anónimo disse...

Boa noite Camarigos
Depois de ler o comentário do José Melo, que me merece particular estima e consideração, dou a mão à palmatória...Não é só em África ! Confesso que fui influenciado por recentes conversas com amigos que estão a trabalhar em Angola e Moçambique. E que me contam histórias do"arco da velha". Que afinal também acontecem "mais coloridas" em outros espaços do Mundo.E arredores !
Abraço-vos.
JERO

Anónimo disse...

Onde está "José Melo" é melhor ler José Belo !!!
JERO

joaquim disse...

Cada vez que conto esta história fico com a sensação de reviver um sonho/pesadelo, tão inverosímil a mesma parece ser!!!

A história é mais longa, ou com mais pormenores, mas tornava-a muito extensa.

Abraços a todos

Hélder Valério disse...

Meus caros amigos

Só hoje, 17/1, li a história e acho que ela é mais um exemplo de como podem acontecer as coisas mais inverosímeis a qualquer um.
Bem, "qualquer um" não é bem assim, o 'nosso' Joaquim já nos deu conta de outras 'aventuras' e felizmente saiu-se bem.
Este caso particular tem o mérito de nos mostrar, mais uma vez, como a solidariedade pode funcionar.
Ainda bem que os vidrinhos foram saindo.

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Depois de ler a história do nosso amigo Joaquim Mexia, ainda me atrevo a dizer: ainda bem que o acontecimento já se passou em tempos remotos e em Angola. Se fosse hoje e por estas bandas com copos, lá teria de soprar o balão e por certo que a solidariedade, era outra!.. Está gira a descrição e teve um final feliz, mas o melhor era ter ficado com uma peça de fazenda e ter feito como o Bocage, enrolava-se nela e não ficaria em "tronco nu"!.. Quanto ao roubo não teria muita importância, vendo o que por lá e também por cá, vai acontecendo!..
Um abraço.
Mª Arminda

55475547 disse...

Para uma rua sem saída, tinha muito movimento!
Um Abraço.
Paulo Moreno