AS MINHAS VIAGENS
Inspirado
pelos relatos que tenho lido das viagens que alguns amigos têm feito, achei que
também poderia ser interessante dar-vos a conhecer algumas que fiz.Espero
que o amigo Branquinho não considere que estarei a “falar de mim e do meu
umbigo”, mas isso será injusto considerar desse modo, na medida em que, tratando-se
de factos ocorridos comigo, é inevitável que não me inclua no relato, a menos
que arranjasse um personagem para me substituir, algum “alter ego”.
Viagens
de barco fiz algumas. Coisa pouca, ou de pouca expressão.
Travessias
do Tejo, entre Tancos e Almourol, entre Lisboa (Terreiro do Paço) e Cacilhas ou
Barreiro, ou entre Lisboa (Belém) e Trafaria, travessias do Sado entre Setúbal
e Tróia, travessias do Guadiana entre Vila Real de Santo António e Ayamonte. Também
fiz o que por aqui temos chamado de “o cruzeiro das nossas vidas” de Lisboa a
Bissau. E aí, na Guiné, do Xime a Bissau. Mas também fiz alguns percursos no
Mar Egeu, de Atenas (Pireu) a Mykonos, depois a Rhodes, depois a Patmos, depois
Kusadasi e regresso ao Pireu. Em todo o caso, nada comparado com as viagens de “volta
ao Mundo” que fomos vendo e lendo por aí.
Mas
o que venho relatar são “viagens à boleia”. Outros tempos em que isso era
possível sem a carga de perigos (vários) que hoje em dia nos fazem desaconselhar
aos nossos familiares de se aventurarem nessas coisas.
No
verão de 1968, depois de ter ido “às sortes” em Santarém, e na posse de algumas
economias que consegui da apanha do tomate (para as fábricas da “Idal” e da “Sugal”),
foi-me possível aproveitar as facilidades do “turismo estudantil” e, com um amigo
de Vila Franca, José Carlos, de seu nome, resolvemos viajar em 14 de Agosto até
Paris (viagem no “Sud-Express”), depois até Londres (com “voo económico”, cerca
de 100$00 da época, de “Paris - Le Bourget”) e depois de Londres para Lisboa, em
11 de Setembro, que custou, lembro bem, 1.020$00.
Não
são estas viagens que vos quero transmitir, mas sim as boleias que apanhámos de
Paris para a fronteira da Bélgica, da fronteira para Bruxelas e no regresso da
capital belga a Paris. Cada qual com as suas particularidades.
A 1ª das três boleias (de Paris
até à fronteira da Bélgica)
Para
essa, que foi a primeira delas, fomos até à autoestrada que ia para Lille, depois
de cruzar a fronteira belga, iria para Tournai, mas não foi nada fácil apanhar
boleia. Uma grande “seca” de cerca de 4 horas. Os carros vinham quase todos
cheios de pessoas que regressavam de férias (estávamos no final de Agosto). O
tempo ia passando, penosamente, até que em determinado momento, em que eu até estava
de costas para o trânsito com um saco da TAP a tiracolo, com as letras e o
logotipo bem visíveis, encosta uma viatura, apenas com o condutor, um homem de
meia idade, e convida-nos a entrar depois de perguntar para onde queríamos ir.
Dadas
as circunstâncias, eu e o José Carlos entreolhámo-nos interrogativamente, com
alguma apreensão, mas lá aceitámos a oferta de transporte, tanto mais que a
jornada já ia longa.
Após
a entrada ficámos logo a perceber o que tinha motivado a paragem e a oferta de
boleia. O nosso generoso benfeitor era um admirador confesso do regime político
então vigente em Portugal, fez questão de o declarar, tendo referido que foi a
identificação do saco da TAP que o motivou. Depois de inquirir o que é que nós
estudávamos (eu em engenharia e o Zé Carlos em economia), lá nos aconselhou a
mantermos a “fidelidade aos princípios da política governamental do nosso país e
ao repúdio pelas ideias estrangeiras”.
Ele
era um notário, que tinha ido levar a família a fazer férias algures na Normandia,
mas teve que regressar a casa, perto da fronteira belga, a fim de terminar uns
processos, daí que estivesse com disponibilidade de espaço e tempo para nos
transportar.
Ao
aproximar-se da sua casa, uma espécie de mansão, com cave, piso térreo, andar
superior e sótão, passámos por algumas construções de tipo militar tendo ele
aproveitado para revelar melhor os seus pontos de vista, esclarecendo serem
restos da linha defensiva (“linha Maginot”) que “eles” (os franceses, seus alegados
compatriotas), tinham construído para evitar uma invasão alemã (que tinha do
outro lado a “linha Siegfried”) mas “os alemães fintaram-nos pois vieram por
cima”, rindo-se gostosamente. Percebeu-se bem de que lado estava.
Insistiu
em mostrar a casa e a propriedade, dizendo que conhecia bem o pessoal da
fronteira, que depois nos ia lá levar e facilitar a passagem (o que aconteceu).
No que se pode entender ser a traseira da construção habitacional (e
escritório) tinha aí num quadrante do terreno uma piscina, noutro quadrante um “court”
de ténis, noutro uma espécie de bosque com umas camas de rede estendidas entre
árvores e no outro quadrante havia mais qualquer coisa que agora não recordo.
Sei que na periferia envolvente de tudo isto tinha um género de estrada em
terra batida que ele aproveitou para nos demonstrar a sua perícia a conduzir a
viatura, fazendo uma condução rápida em várias voltas. Uma loucura!
Na
visita à casa voltou a apreensão. “Visitar o sótão? Será que nos vai sequestrar
lá? Visita à cave? Mas o que é que ele quer?”
Bem,
mesmo com algumas reservas mentais e em atitude defensiva, lá fomos ao sótão. Dado
que tudo em volta no exterior era mais ou menos plano, as vistas davam para
alcançar distâncias significativas. Na descida à cave deparámo-nos com a
produção de cerveja artesanal. Fomos contemplados com um saco de nozes e duas
garrafas dessa cerveja caseira cada um (que bem foi a nossa “safa” lá mais à
frente na noite) e fomos levados à fronteira onde depois de esclarecer os
guardas franceses e os belgas que se tratavam de “estudantes amigos portugueses”,
fizemos a passagem facilmente e depois das despedidas, lá seguiu a nossa
jornada.
A 2ª das três boleias (algures
da fronteira franco-belga até Bruxelas)
Entretanto
a noite tinha-se aproximado, havia um género de lusco-fusco, e a boleia também
não foi imediata, embora não chegasse a uma hora de demora.
Lá
estávamos a pedir aos carros que passavam, até que parou uma furgonete que no
imediato não deu para perceber bem o que era. Perguntaram, o condutor e a
mulher, para onde íamos e lá nos disseram que ficavam na periferia de Bruxelas mas
que nos levavam. Só quando a porta de deslizamento lateral da furgonete se abriu
é que nos apercebemos da existência de 4 crianças vestidas à moda cigana (tal
como depois verificámos também estarem os pais) mas lá confiámos e seguimos
viagem com eles, conversando em francês sobre nós e sobre eles.
Tal
como tinham dito deixaram-nos, por assim dizer, às portas de Bruxelas, mais ou
menos como se fosse o Campo Grande e o nosso destino era a zona da Baixa, sendo
que lá era perto da Ópera, e só nesse momento nos apercebemos que não tínhamos
francos belgas (esquecimento imperdoável) para pagar elétrico (trolley) ou táxi
e vá de vencer a distância palmilhando o caminho, comendo nozes e bebendo cerveja.
A 3ª das três boleias (de Bruxelas
a Paris)
No
terceiro dia, cumpridas a missão e a visita à capital belga, dispusemo-nos a
regressar a Paris. Já nessa altura parece que “teremos sempre Paris….”
Para
não variar procurámos obter boleia para a viagem. E desta vez não demorou muito
até que um “Opel Commodore” parasse junto a nós e nos oferecesse o desejado transporte.
Tratava-se de um jovem casal holandês, ele um engenheiro químico da “Dupont de
Nemours” e ela não me recordo, que iam a Paris, que não conheciam e nem faziam
ideia como chegar ao hotel de destino, para depois participar numa conferência
qualquer.
Claro
que, como portuguesitos desenrascados, dissemos logo que não havia problema, já
conhecíamos as voltas a dar em Paris e que íamos dar as indicações para
chegarem ao hotel com toda a facilidade. Depois tínhamos as cadernetas de tickets
de Metro e íamos à nossa vida, ou seja, ao nosso alojamento da zona de Les
Halles.
A
viagem foi agradável, parámos para comer em estradas secundárias, lembro de beber
a minha primeira Coca-Cola, e depois as coisas em Paris correram como lhes
tínhamos dito. Chegaram ao Hotel, ficaram contentes, nós também e pronto,
acabou a 3ª viagem.
Estes
relatos tiveram apenas por alvo as boleias, não o que se viu, ou fez, ou
visitou, tanto em Partis como em Bruxelas ou Londres, pois isso seriam outras
histórias, mas esta aprendizagem do que era então “viver na Europa para lá dos Pirenéus”
ajudou muito à tomada de consciência, ou à sua consolidação, do que era
necessário fazer em Portugal.
Hélder Valério Sousa
Fur. Mil.
Transmissões TSF