segunda-feira, 26 de abril de 2021

P1290: AINDA O MARCELINO DA MATA

Com a devida vénia ao Boletim AFAP - Associação da Força Aérea Portuguesa - transcrevemos um texto recentemente publicado naquela Revista, que descreve os encontros e reencontros entre o conhecido Marcelino da Mata e o nosso camarigo Miguel Pessoa.

ENCONTROS E REENCONTROS

Conheci o Marcelino da Mata em circunstâncias muito especiais e talvez por isso difíceis de esquecer. Em 25 de Março de 1973, durante uma missão de apoio de fogo ao aquartelamento do Guileje, o meu avião foi abatido por um míssil SAM-7 Strela e eu fui forçado a ejectar-me em plena mata, no corredor do Guileje.

As peripécias que se seguiram a essa acção já foram descritas aqui e na revista da AFAP. O certo é que vinte horas depois da minha ejecção e passada uma noite de sobressalto, já começava a ter dúvidas sobre o êxito de uma eventual recuperação, agravado pela sensação de que pessoal presumivelmente pouco amistoso se aproximava do local onde me encontrava.

Comecei a divisar cabeças que se aproximam pelo meio da folhagem. Eram africanos, o que parecia confirmar as minhas piores previsões; tinham armamento e uniformes diferentes dos das tropas portuguesas. Sabiam o meu nome e diziam-me para ir com eles – o que, segundo alguns testemunhos no local, mereceu da minha parte uma resposta pouco educada… Pudera!

Apareceu então o que parecia ser o chefe - de barbicha e óculos - e disse-me que era o Marcelino da Mata. Convenhamos que na altura, "pira" de 4 meses da Guiné, embora conhecendo as referências do Marcelino, nunca tinha tido a oportunidade de estar com ele pessoalmente mas sabia que ele costumava levar cantis com Fanta e Coca-Cola. Pedi-lhe de beber, ao que ele anuiu, ficando assim por mim confirmada a identidade do meu interlocutor, o que mereceu da minha parte, de imediato, um efusivo cumprimento: "Ah granda Marcelino!".

A cena ainda se prestou a uma foto de grupo, em que a pose agressiva do Marcelino, de catana na mão, e o  meu ar enfiado, mais faziam parecer que eu tinha sido apanhado pelo inimigo…

A minha recuperação até ao local da evacuação por helicóptero não teve muito mais história para além das provocações que o pessoal mandava para o meio da mata e que me fazia sentir na iminência de ser envolvido numa fogachada de que, com uma perna partida e lesões na coluna, eu teria dificuldade em desenvencilhar-me…

Iriam passar vinte e dois anos até eu voltar a encontrar o Marcelino, curiosamente numa reunião de pessoal da FAP combatente da Guiné, realizada nas instalações da AFAP, o que deu ensejo a uma foto dos dois para comemorar o reencontro. Desta vez o Marcelino não exibia a catana da foto de 1973 – só se tivesse ido buscar uma faca à mesa da refeição…

Tivemos oportunidade de uns breves encontros em algumas das cerimónias do 10 de Junho junto ao Monumento dos Combatentes. Tive ainda ensejo de lidar com ele por mais tempo em dois ou três encontros a que o levei, de antigos combatentes da Guiné, encontros esses realizados em Monte Real.

Observei a satisfação que ele sentiu ao ver-se rodeado de combatentes que conheciam o seu percurso de vida ou o tinham até conhecido pessoalmente na Guiné e que quiseram confraternizar com ele. Foi compensador observar na sua cara o agrado que aquelas manifestações de carinho lhe provocaram.


Nos últimos anos de vida o Marcelino teve problemas de saúde vários que o levaram a ser internado e operado, De todas essas situações o vi sair com redobrado ânimo. O que me levou inclusive, após mais uma intervenção a que tinha sido sujeito, a dizer-lhe na galhofa “Ó Marcelino, é a primeira vez que vejo um tipo vir para ti de faca na mão, e tu não reagires!...”

Acaba finalmente por não resistir a um inimigo que tem flagelado no último ano  milhares de portugueses. Que, finalmente, descanse em paz!

Miguel Pessoa

 

domingo, 18 de abril de 2021

P1289: RELEMBRANDO O NOSSO CAMARIGO JERO

Uma justa homenagem ao nosso saudoso camarada José Eduardo Reis Oliveira, que todos conhecíamos como JERO, através de um texto publicado hoje no Jornal Público, que transcrevemos com a devida vénia àquele jornal e à jornalista Susana Moreira Marques, autora do texto.



terça-feira, 13 de abril de 2021

P1288: LONGE DA AGITAÇÃO ESTUDANTIL NA METRÓPOLE...

EFEITOS COLATERAIS DA
CRISE ACADÉMICA DE 1969

Carlos Pinheiro
Estávamos na Primavera de 1969. Era Abril. Já tinha passado 6 meses da Comissão na Guiné, que viria a prolongar-se por 25 longos meses.

Tinha partido recentemente o braço esquerdo num acidente sem história. Andava de “baixa” e frequentemente, depois do almoço, durante o chamado período da “sesta” desenfiava-me de Santa Luzia e do Q.G. até à cidade, para conviver com a malta que também estava desenfiada em Bissau, à espera de transporte para o mato ou para a Metrópole.

Os sítios onde nos encontrávamos eram os habituais. O Café do Bento a que carinhosamente chamávamos a 5ª Rep., o ponto de encontro por excelência da malta do mato.

E eu tinha amigos no mato em todo o lado. Em Buba, em Tite, em Jabadá, Nova Sintra, em Catió, em Aldeia Formosa, em Bafatá, em Mansoa, em Farim, em Piche, em Bigene, em Bula, em Nova Lamego, no Cacheu, em Susana, em Varela, e depois até vim a fazer amigos quando a CCaç 1790 abandonou Madina do Boé, com a tragédia conhecida, uma vez que foram colocados na “minha guerra” dois dos sobreviventes.

Era rapaziada que tinha andado a estudar comigo na Escola Industrial de Torres Novas, era a malta da minha terra, Alcanena, era pessoal de Pernes e de Mira de Aire que frequentava de vez em quando nos bailaricos da época, eram colegas dos Serviços Médico Sociais para onde eu tinha entrado em 1964, era a rapaziada que tinha estado comigo na Escola Prática de Cavalaria em Santarém e que comigo tinha chumbado no Curso de Sargentos Milicianos e que também tinha sido “recompensada” com uma comissão na Guiné, era malta que tinha estado comigo na Especialidade no Regimento de Transmissões no Porto, na Arca d’Agua, era malta que tinha ido comigo no UIGE em rendição individual – enfim, era um conjunto alargado de companheiros e amigos embarcados no mesmo barco da Guerra da Guiné.

Mas também nos encontrávamos no Portugal ou no Internacional na Praça Honório Barreto, no Zé da Amura, nas Palmeiras em Brá, no Santos em Santa Luzia, na Solmar lá do sítio, no Café Pastelaria Império na Praça do Império, perto do Palácio do Governador, ou no Solar dos Dez. Tudo isto de dia. De noite os encontros eram mais na Meta, no Chez Toi, na UDIB, no Sporting e até no Benfica a caminho da Sacor.

O caso que vou relembrar passou-se no Solar dos Dez, talvez o melhor Restaurante de Bissau daquela altura. Mas como já tínhamos almoçado no quartel, porque o pré não dava para luxos, estávamos num mesa grande, a tomar café na esplanada e cada um ia contando as suas histórias, com muitas anedotas pelo meio.

Parece que estou a ver o Marques, que também tinha chumbado no CSM em Santarém. Na altura já era Regente Agrícola. Mas tinha chumbado... Era o Delegado em Bissau da sua Companhia. Namorava uma moça que estava em Medicina ou em Direito, já não me lembro bem. Volto a dizer. Parece que estou a ver o Marques, a ler em voz alta uma carta da namorada. E ela contava-lhe - e ele partilhava connosco - a invasão da Faculdade pela Policia e pela Pide, com muita pancadaria e algumas prisões à mistura.

Era a Crise Académica no seu auge e que nós, longe de tudo, desconhecíamos por completo. A Emissora Oficial só dava boas notícias, jornais não havia com regularidade, televisão nem vê-la, telefones nem sonhá-los e telemóveis ainda não tinham sido inventados… Aquilo desta vez parecia uma sessão solene. O orador lia a carta pausadamente e nós caladinhos para não perdermos nada da notícia.

Ao lado, noutra mesa, estava um Major, o Comandante das Transmissões da Guiné, meu Comandante - uma vez que o Destacamento do STM onde eu estava integrado em última análise também dependia deste senhor - acompanhado de sua esposa, que apesar da sua posição importante e da nossa pequenês, nunca abriu a boca.

O pior foi à tarde. Como eu estava “de baixa”, passava o resto da tarde, até ao jantar, no meu quarto particular com mais de duzentas camas. Ouvia-se rádio, jogava-se à sueca e alguns descansavam porque iam entrar de turno à noite. Aparece o Sargento Caldas - entretanto infelizmente já libertado da lei da vida - bom homem e bom amigo. Era o meu Chefe directo. Vinha com mau aspecto. E de chofre perguntou-me onde é que eu tinha andado, que o Major queria falar comigo e estava muito bravo.

Contei-lhe tudo por onde tinha andado mas esqueci-me da leitura da tal carta, coisa que poucos de nós valorizámos, porque desconhecíamos os antecedentes da Universidade de Coimbra e a ebulição estudantil que havia naquela altura.

E lá fui eu, mas o Major já não estava. Ficou para o outro dia. Nessa noite nem dormi. O que é que o Major teria para estar tão bravo como tinha dito o Caldas? De manhã, bem cedinho lá estava eu, com o braço ao peito, mas de resto devidamente uniformizado e até com as botas bem engraxadas.

Já eram mais de 10 horas quando ele chegou. Nem se sentou. Logo ali à entrada da porta dispara, perguntando-me o que é que estava ali a fazer ontem naquele “comício”. Fiquei perplexo. O que é que aquilo queria dizer? O que é que eu teria feito de mal? Fiquei sem resposta. Mas lá terei dito alguma coisa, atabalhoadamente, a tentar relatar o acaso do encontro. Levei uma rabecada das antigas. E ameaças quanto ao futuro foram as suficientes. O mato, nas piores condições e nos piores locais, tinha sempre vagas e estava sempre à espera.

Mais tarde, começou a constar, na caserna, que o senhor teria algumas ligações à Policia que tinha aquartelamento no Largo do Colégio Militar, junto à Avenida Arnaldo Shulz, em Bissau, a Policia Internacional e de Defesa do Estado, a tenebrosa Pide de má memória para o Povo Português mas também neste caso para o Povo da Guiné-Bissau. Nunca cheguei a saber se era verdadeira essa dupla função, mas lá que andei atrapalhado isso foi mesmo verdade.

Tudo se passou sem mais agruras. Mas andei mal durante muito tempo e com atenções redobradas. É que eu passava naquela Avenida de vez em quando e, às vezes, os tratamentos ouviam-se cá fora...

A guerra também tinha destas coisas. E é bom recordá-las para que a memória não esqueça.

Carlos Pinheiro

terça-feira, 6 de abril de 2021

P1287: APÓS O REGRESSO A CASA

 Diz-nos o nosso amigo Helder Sousa:

“Desafiaram-me para falar sobre o que foi a minha vida depois de regressar da Guiné. Aqui vai um texto que tentei manter curto para não "enfastiar", mas fico com a sensação que ficaram aspectos por desenvolver.

Juntei um conjunto de fotos que podem ajudar a ilustrar e a amenizar.

Na foto da "Barraca da Feira" sou o que está no interior do "stand", ao meio, de roupa mais clara.

Das outras fotos o "Maioral" já não é a mesma coisa do meu tempo, agora essa parte das "tapas" ocupa o que antes era , olhando de frente, o "restaurante fino" do lado direito e o "café requintado" do lado esquerdo. Quanto à famosa "Lezíria" não encontrei fotos da época e já faz uns bons pares de anos que passou a stand automóvel, sendo agora um "templo de beleza"…”

DEPOIS DA GUINÉ

Foi-me proposto que pudesse recordar como foi o “pós-Guiné”, o regresso a casa, a (re)inserção na sociedade civil, o retornar da “normalidade”.

E só me ocorre que, como me parece natural, por um lado houve coisas ou situações fáceis mas, por outro, também houve dificuldades.

Explicando melhor. A “normalidade” foi interrompida em Julho de 1969 com a ida para o CSM em Santarém. O regresso deu-se a meados de Novembro de 1972, ou seja pouco mais de três anos, mas como durante o resto de 1969 e praticamente quase todo o ano de 1970 fui com regularidade semanal (ou quase) a casa, o afastamento real mais sentido foi então de Novembro de 1970 a Novembro de 1972, ou sejam 2 anos.

Ora acontece que esses dois anos foram potenciadores de várias mudanças. Muitas delas teriam sido impercetíveis para os habitantes de Vila Franca, terra onde vivia com os meus pais quando iniciei o cumprimento do serviço militar, mas à distância do tempo passado pela comissão de serviço por imposição, o que reencontrei já tinha muitas diferenças.

Quando voltei em Novembro de 1972, os meus pais já tinham mudado de casa, da casa onde vivera desde os 4 anos de idade e além disso, eu entretanto tinha casado, em Abril, aquando das férias desse ano, que vim passá-las a Portugal (à “Metrópole”, como se dizia), portanto estas foram algumas mudanças “físicas”, por assim dizer.

Mas havia outras…

No País iam-se percebendo as mudanças, os sinais do que haveria de ser alterado em Abril de 1974, com a audácia das “mudanças por dentro” do Regime vigente, que a chamada “Ala Liberal” protagonizava; com o arrastar das “guerras em África”, sorvedouro de vidas e recursos, sem solução à vista; com a crescente e cada vez mais atuante contestação estudantil e também com a coragem de novas consciências de trabalhadores com mais formação. Acrescerá ainda as movimentações promovidas por outros sectores, como por exemplo o que o livro “Portugal e o Futuro” do General Spínola protagonizou.

Foi, portanto, neste “caldo”, que ocorreu o meu regresso.

Num primeiro momento foi o tempo de “esquecer” a Guiné. Foi a época de “Guiné nunca mais”! Não queria falar do tempo que passei lá, do que vi, do que vivi, do que ouvi, nem tampouco do que o meu pensamento projetava. Recordo que em Novembro de 1972, ao despedir-me do meu substituto na função, na Escuta, que iria terminar a sua comissão em Novembro de 1974, lhe ter dito, mais ou menos assim: “olha, vou-me embora e fico contente por isso, mas também fico com um pouco de inveja por teres vindo para a “comissão liquidatária” (entendida como a “última”, e foi!) e não ser eu a poder ficar com alguns desses gravadores”. Premonições? Diria antes “fé revolucionária”!

Queria acreditar que algo iria acontecer. Teria que acontecer. O meu enquadramento na oposição e contestação ao regime (os “situacionistas” de então - e de hoje - que me desculpem, se puderem e quiserem, pois havia pessoas assim e era assim que me posicionava) levavam-me a ter esse pensamento positivo. 

E de facto assim foi, como sabemos. Não foi exatamente como “sonhara”, como desejara, mas isso são contas de outro rosário.

Quando cheguei alguns provocadores perguntavam “então como é que é aquilo? é como pintam? mataste muitos pretos? deixaste lá muitos filhos?” Olhava-os com desprezo, não respondia e cada vez mais omitia tudo o que se pudesse relacionar com a Guiné.

Por outro lado, também o “meu mundo” mudara.

Antes de entrar em Santarém na EPC, frequentava um local em Vila Franca, a “Pastelaria Lezíria” que era inicialmente um local bem afreguesado com ”mães de família” e suas filhinhas, mas que aí em 1967 eu e mais dois ou três jovens estudantes em Lisboa resolvemos adotar, para estudar, conversar e/ou “conspirar”, depois do “turno de serviço” na Secção Cultural da UDV (União Desportiva Vilafranquense) em que colaborávamos e dávamos expressão ao “stand” na Feira de Outubro. Fizemos isso em rompimento ostensivo com os que frequentavam “O Maioral” onde alguns ainda se mantiveram em “alegre convívio” com os possidentes e terratenentes da região. Aos poucos a freguesia da “Lezíria” foi-se modificando, foi-se ampliando, e em certa altura já era mais conhecida por “Kremlin”. Em 1973 já havia quem se referisse ao local como “Mesoputâmia”, o que poderá querer dizer algo da “evolução da fauna” que, entretanto, ocorreu.

No primeiro semestre de 1973 utilizei as facilidades havidas ao “abrigo da lei militar” e assim procurei completar o ano escolar interrompido aquando da incorporação. Ao mesmo tempo tentei arranjar emprego pois, como disse, tinha casado e as “economias de guerra” não iriam durar muito.

Concorri a vários empregos e até tive várias respostas/propostas: delegado de propaganda médica (era assim que se designava); vendedor da “Black and Decker”; controlador de tráfego aéreo (teria sido uma boa aposta mas, caso ultrapassasse as provas, tinha garantida uma nova “comissão de serviço” de 4 anos nos Açores e isso não me atraiu); desenhador, etc. Acabei por optar pela profissão de desenhador na então “Soda Póvoa”, onde entrei ao serviço em 1 de Junho e de onde saí para a “Sapec”, em Setúbal, em Fevereiro do ano seguinte, 1974, mas isso também é outra história.

Em traços gerais, foi isto!     

Hélder Sousa

Fur. Mil. Transmissões TSF

sexta-feira, 2 de abril de 2021

P1286: PÁSCOA, ÉPOCA DE RENASCIMENTO E RECOMEÇO

Para todos os camarigos da Tabanca do Centro e respectivas Famílias, 

com votos de uma Páscoa Feliz, 

na esperança de um rápido retorno à normalidade