quarta-feira, 31 de maio de 2023

P1398: UMA BELA PROSA DO ANTÓNIO LÚCIO VIEIRA

Mais uma obra do saudoso António Lúcio Vieira que, como habitualmente, nos chegou pela mão do nosso camarada Carlos Pinheiro.

O IMITADOR DE PÁSSAROS

Três filhos chegavam bem. Não é que o homem não tivesse arreganho para mais, mas a pobre da Catarina, meio enfezada e com aquelas mazelas que lhe ficaram dos partos anteriores, dizia o médico da Caixa que não estava lá muito a modos de emprenhar outra vez, até para evitar que daí viessem sobressaltos. Que tivessem cuidado.

Entretanto, sem mais aquelas, mal se deu por ela, a mulher estava outra vez de esperanças. É a vida, deixava ela, com um encolher de ombros e em voz baixa, às vizinhas e às colegas da fábrica das lãs, mal lhe revelavam estranheza pelos repetidos vómitos e náuseas que a atacavam, pelo frequente aumentos das idas ao urinol e a própria aversão às vulgares comidas e até a corriqueiros cheiros do dia-a-dia, tanto em casa como na fábrica.

Mas era mulher rija, lá isso ninguém duvidava. Sempre que as conversas tendiam para uma cautelosa possibilidade de se desfazer “daquilo”, Catarina enrubescia, abriam-se-lhe as narinas, as veias do pescoço engrossavam como cordas e os olhos quase flamejavam. Estavam bem livres, dizia, que os filhos dela não era para serem deitados ao lixo, como nascidas ou bichos ruins.

O homem calava-se. Mais filho, menos filho… O pior era a saúde e a vida dela. Se tivesse que se perder algum dos dois, que fosse a criança, ela nunca. Mas não lho dizia, para não lhe enfrentar a ira, como sempre acontecia quando alguma das outras alvitrava a segurança de um aborto. Respeitava-a, mas não a temia, que ele não era desses de se calar à mulher, ou andar ao beija-mão dela.

Mas conhecia-a, e bem, e bem sabia que, a danada, antes de torcer quebraria, e que defenderia a vida de um filho, parido ou não, como se de si própria se tratasse. E tinha-lhe amor também por isso e orgulhava-se tanto mais dela, quanto dela colhia os exemplos de coragem, o arreganho à luta pela vida, a ternura e o esmero com que amanhava a casa e regalava os cachopos, com os vigilantes cuidados das fêmeas das feras, ou o mimava e ataviava a ele, com os enleios que só se expressam quando se quer muito. E ela queria-lhe tanto como se ele fosse o mais velho e o mais precioso dos filhos daquele lar.

Um dia, quase em fins de Setembro, nasceu um menino, no hospital da vila. Lindo, como são os meninos quando nascem. E são, graças a Deus, que para desgraças e mazelas bem chegavam as que a mãe carregava aos ombros, desde a gravidez e o parto do primeiro dos rebentos. Na imparável correria dos dias, o puto crescia, crescia e enchia os olhos daquele pai, que todos na vila e no casal onde vivia, conheciam por Cravo Roxo.

Embora muitos não soubessem muito bem se aquilo era apelido de família ou, devido à sua profissão de jardineiro da Câmara - herdada do pai que já se ocupara das mesmas funções desde rapazola, o qual era igualmente tratado por esse tão peculiar nome – ou se se tratava apenas de uma engraçada alcunha. Fosse como fosse, o nome prestava-se a brincadeiras e a alguns momentos de diversão.

Veja-se: o Tarata, companheiro de profissão na Câmara, modesto trabalhador em eterno conflito com o dinheiro, ao qual, dizia, nunca tinha feito mal, para logo se lamentar que o “safado” – o dito dinheiro, entenda-se - parecia ter-lhe um ódio de morte e não querer nada com ele. Daí que, com desusada frequência, mal se chegava ao meio do mês, já o pobre do Tarata andava com a bolsa a dar a dar, pelo que recorria ao bom coração do Cravo Roxo e às suas parcas reservas financeiras, para que lhe abonasse uns trocos até à chegada do salário.

E o Cravo Roxo, que nascera com aquele desgraçado defeito de nunca negar auxílio a quem dele necessitasse, lá ia adiantando umas moedas para o pobre de Cristo comprar pão para os filhos. Porém, naqueles meses em que a mulher do Tarata ia de jorna para as ceifas, para as vindimas e para a azeitona, dos senhores abastados da Meia Via e de Riachos e, por via desse reforço, entravam mais uns dinheiritos, o Tarata apressava-se a atirar ao colega algo como: “Este mês não te cravo, ó Cravo Roxo”.

Companheiros inseparáveis, era frequente vê-los, nas horas vagas, na beira do rio, junto ao viveiro de plantas da Câmara, na Várzea dos Mesiões, que ambos de resto tratavam com um orgulhoso carinho paternal, quer nos petiscos na tasca do Vítor, nas proximidades do matadouro – ali frente a frente com a rival tasca do Razões, que lhe disputava a clientela - nas afamadas festas do Boi Danado, na Meia Via, próximo do Casal da Juge, onde o Cravo Roxo nascera, ou, quando era Verão, na “praia dos tesos”, aquele precioso areal na margem do Almonda, não muito distante do viveiro, que as cheias de Inverno alagavam e para onde as gentes da vila, de menor recursos, se apressavam, quando o calor apertava.

Confraternizavam assim, como amigos, que se orgulhavam de ser, a ponto do Tarata ter sido honrado com um convite para padrinho de batismo do mais recente rebento do Cravo Roxo. As próprias esposas eram amigas e juntavam-se a eles, naquela minúscula praia fluvial, principalmente aos domingos, quando os homens estavam livres e Catarina folgava do trabalho na fábrica das lãs, situada também ali a dois palmos do rio. Um dia, numa das habituais petiscadas na tasca do Vítor, o Tarata deu nas vistas e tornou-se, in extremis, quase um herói, aos olhos do compadre e amigo.

Abra-se aqui um parêntesis para esclarecer a origem daquele apodo de Tarata, que lhe ficara por ter cumprido uns longos três anos de serviço militar, devido a pesado castigo. Confessava ele que, num dia de desvario, enchera o saco e dera um arraial de porrada a um sargento lateiro, que o andava a atazanar. Cumprida a pena de prisão, o desgraçado, para o vergar, passou a trata-lo ainda pior, pelo que, “para não perder o hábito”, não tardou a levar outro enxerto, de caixão à cova. Conclusão: tudo somado, três anos “por conta” do exército, que os pais dele, de resto, agradeceram, mau grado a ausência do filho. Dizia o progenitor do detido que, enquanto lá estava dentro, não andava na boa-vai-ela, a coçar o rabo pelas esquinas e a comer e a beber à sua custa, que o desgraçado do madraço já tinha bom lombo para trabalhar. Ficou-lhe de emenda a prisão.

Numa das habituais petiscadas na tertúlia do Vítor, repete-se, o Tarata, em suprema demonstração da incondicional amizade que o unia ao Cravo Roxo, viria a livrá-lo de graves apuros, quiçá até da própria morte. A coisa conta-se facilmente. Ia o petisco já em desenfreada rédea solta, mercê do avançado estado de consumo, devoradas que estavam as febras, as morcelas de arroz, a broa de milho e, principalmente, os incontáveis malhões de tinto, quando a porta de vaivém do estabelecimento se abre, dando entrada a uma catraia, dezassete a dezoito anos bem nutridos, com a incumbência de chamar o pai que, agastado com a sorte, batia, numa das mesas do canto, uma partidas de sueca, com alguns amigos alheios à balburdia dos petisqueiros.

De pé, na ocasião, o Cravo Roxo, mais o vinho que já carregava, travou o passo à moçoila e fez ouvir, com os restos de barítono, que os embargos da voz lhe permitiam, a já conhecida quadra que sempre cantarolava, quando o espírito estava em alta. Era, de resto, uma quadra que - fazia questão de esclarecer – ouvira desde garoto ao falecido pai, alentejano, nascido para as bandas de Vila Viçosa.

Assim, de copo na mão e descarado sorriso e escorrer-lhe no rosto, balançando o tronco frente à jovem, a qual tentava livrar-se, tanto do bafo azedote, que de dentro tresandava, com as tentativas do homem para lhe impedir a passagem, o Cravo Roxo entoava: “Cravo Roxo à janela/ é sinal de casamento/ menina recolhe o cravo/ que o casar inda tem tempo.” Não tardou que começassem a cair santos dos altares, devido ao que pai e filha entenderam como descarada e reles provocação. Mal se deu por ela, deitando lume pelos olhos, já o progenitor da moça saltava do mocho onde se sentava, pegava nele por uma perna e o erguia no ar, pronto a lança-lo, como machado de carrasco, sobre a cabeça do desgraçado.

Valeu-lhe ali a pronta intervenção do Tarata, que lhe agarrou o banco quando este já descia, como um raio fulminante e implacável, sobre o emborrachado cantador. De pronto auxiliado, diga-se por justiça, pelos restantes homens, petiscadores e “suequeiros”, que logo o cercaram, a fim de evitarem uma desgraça.

Seguiu-se a costumada tentativa de apaziguamento do enfurecido pai, recordando-lhe a reconhecida bonomia e respeitosa postura do pobre bêbado e a tradicional falta de tacto e compostura que sempre se abate sobre as vítimas dos excessos etílicos. Porém aquela repentina e decidida reacção do ofendido devia, certamente, ser resultado de algum antecedente desaguisado, comentavam alguns, à boca pequena. Também por esse infeliz e nefasto episódio, o Cravo Roxo se sentia grato ao amigo e companheiro de trabalho.

Voltemos ao filho mais novo do casal, que entretanto crescia a olhos vistos. Romeu, foi o nome dado ao menino no batismo. Porque a mãe adorava o romântico entrecho do Romeu e Julieta, mas também porque o médico que cuidou dela, durante a gravidez, tinha esse nome e ela havia de lhe ficar eternamente agradecida, pelo facto do bondoso clínico, nem uma vez, lhe cobrar as consultas e algumas mezinhas de que necessitava.

Viviam então num local quase ermo, a meio da descarnada encosta do Babalhau, virada a nascente. Dali, mesmo sem se alcançar o cimo, avistava-se em redor mais de uma légua e, depois, o local ficava a dois passos de quase tudo onde o casal se movia: a fábrica das lãs, para onde Catarina diariamente se encaminhava, manhã cedo, o viveiro camarário, onde o homem ocupava parte do tempo de trabalho e o rio, com a “praia dos tesos”, para as horas de repouso nos domingos de Verão.

Ah, e é bom não esquecer: a duas centenas de metros abre-se o largo do matadouro onde, entre outros estabelecimentos similares, a tasca do Vítor piscava o olho aos sedentos amantes dos petiscos e do carrascão.

Um local perfeito para se viver; perto, porém distante, do bulício da vila, que crescia a olhos vistos. Passava-lhe à beira a camioneta da carreira, para o Entroncamento, para Riachos e, sobretudo, para a Meia Via, onde Cravo Roxo ia frequentemente confraternizar com os amigos de infância e, no sentido inverso, para a garagem da empresa, no coração da vila, bem próximo da escola, no largo do Quinchoso, onde os filhos aprendiam.

Romeu, já se disse, crescia por ali, a olhos vistos, descuidado e feliz, ora subindo ao topo da encosta, daquele quase deserto Babalhau, ora acompanhando o pai, nos tempos livres da escola, aprendendo com ele os segredos das plantas e das flores e criando, ele próprio, as raízes de um desusado carinho por aqueles milagres da natureza: as plantas, que emergem do chão e crescem, crescem, e dão folhas e frutos e as flores, que uma qualquer mão de artista esculpiu e pintou, com as mais deslumbrantes cores da natureza.

Feliz, mesmo sabendo que a vida, na modesta casinha onde moravam, não sorria tanto, como sorria a vida nas casas de outros meninos, da escola onde aprendia. Sobrava-lhe sempre a roupa dos irmãos, as coisas boas que encantavam os outros meninos também o encantavam a ele, porém, ao contrário dos outros meninos, ele não as conseguia. Apercebia-se das humilhantes diferenças sociais, nas pequenas minudências do dia-a-dia, naquela exibição de bem-estar e felicidade que se libertava dos rostos e atitudes dos meninos felizes, do encantamento das horas do recreio na escola, quando lhes cobiçava os brinquedos, as roupas caras, os lanches, as alvas batas lavadas e cheirando a flores. Romeu sabia a diferença que ia do seu mundo de menino pobre ao dos outros meninos da sua escola. E isso, antes de o tornar cativo de mágoas, agitou-lhe a alma, espicaçou-lhe a vontade e incitava-o a aventurar-se pelos caminhos da conquista do futuro.

Mas era novo, muito novo, o rapaz. Esperava-o uma juventude ameaçada pela maceração dos dias, marcados pela carência de tudo o que era conforto e felicidade e promessas de futuro. Saía da escola ao fim da tarde, metia pela Serpa Pinto – por vezes parava na praça do peixe, no rabisco de algumas sobras nas bancas de venda – e seguia pela Rua das Freiras, rumo ao matadouro e à encosta que sobe à colina do Babalhau.

Já a mãe o esperava, para ajudar nas lides da casa, que os mais velhos, vadios, já não iam pela arreata da sacrificada Catarina. E o garoto amochava aquela vida, cumpria-lhe o fadário dos dias e tentava compensar o desalento e as mágoas, com as breves fugas para junto do pai, nos jardins da vila e no viveiro das flores, pegado à várzea do Almonda, onde crescia e se fermentava para o futuro amargo que de perto o espiava.

Um dia, folgado dos deveres escolares e dos afazeres domésticos, subiu ao cume da elevação – para encher de novo os olhos da paisagem que, de serra a serra, o rodeava – e abeirou-se do hercúleo castanheiro que ali se plantava, havia um ror de anos. Era aí que, empoleirado nas ramadas, brincava, aos Tarzans, imitando o que via nas páginas do Mundo de Aventuras, que os condiscípulos de escola, mais abonados, compravam e era igualmente do alto do rijo tronco que se sentia no seu palco.

Recordava-se o petiz, naquela improvisada ribalta, daquelas raras e mágicas noites em que o pai, quando lhe dava a pachorra – como o próprio afirmava, sempre que o assunto vinha à baila - levava a família às récitas e às variedades no Salão do Salvador, ou quando, numa única e inesquecível ocasião, se sentaram no balcão do Virgínia, para assistir a uma revista, das que, vindas do Parque Mayer, periodicamente demandavam a vila.   

E era ali, nas troncadas dos ramos do velho castanheiro, que o garoto exercitava a destreza do rei da selva e ensaiava a imitação das rábulas que a memória retinha. Era no palco que ele queria estar. A divertir plateias, a deslumbrar a assistência com a magia dos ilusionistas e a receber os aplausos. Era, decididamente, essa a vida que sonhou seguir.

Era um brincar solitário, aquele do pequeno Romeu. Nas cercanias, naquele Babalhau então quase deserto, eram raros os companheiros de brincadeira. Por ali não se procurava habitação, que a zona, embora sobranceira à vila, para poente, ficava à ilharga de tudo. Apenas pequenas hortas e courelas e, aqui e além, uma ou outra discreta casa de gente modesta, sem meios para se instalar no coração da vila, onde a vida se movimentava.

Brincava só, o infante. E sonhava com um futuro de artista, ora vestido de rei, igualzinho ao dos dramas que subiam a cena no velho “salão do padre” - como o pai chamava à pequena sala do Salvador - ora tirando pombas brancas de um chapéu e cortando senhoras ao meio, como via fazer aos mágicos que sempre lhe tiravam o sono, ora dizendo chorrilhos de disparates, como nas rábulas das revista que, para além do mais, também mostravam mãos cheias de moçoilas, de arregalar os olhos.

Um dia, terminado o parco lanche, após as aulas, o pequeno Romeu subiu, uma vez mais, o tronco do castanheiro solitário. Um pouco acima da forca, onde os ramos mais fortes se dividem, soltou a corda, que meses antes lá colocara e preparava-se para, à semelhança de Tarzan, se lançar para uma ramada do lado oposto. Nem por um momento o imprudente garoto suspeitou que a constante exposição à torreira do sol, ao longo do Estio e às águas de Inverno, haviam carcomido os filamentos da débil corda, tornando-a perigosamente frágil. Num instante, as garras da tragédia abateram-se, sobre a vida do descuidado benjamim da família Cravo Roxo.

A queda desamparada, o embate brutal das costas sobre uma pedra musgosa que emergia do solo, a poucos metros do tronco, só por milagre divino não lhe quebrou a coluna e o não matou. Horas depois, na urgência do hospital da vila, o médico haveria de diagnosticar uma preocupante lesão pulmonar, originada por trauma torácico. O pobre só não se finou naquele dia porque, dizia Catarina, nas semanas que se seguiram, “não era aquele o seu dia”.

Porém a insuficiência respiratória, que a partir de então o condicionou, viria a pautar a sua vida futura e a modificar-lhe radicalmente hábitos e posturas. Romeu iria ser, no futuro, um homem limitado para o que lhe restava de vida e suspeitava-se que os sonhos de menino, por tanto tempo e tão deslumbradamente construídos, se terão esfumado naquela funesta tarde, como a névoa das manhãs.   

Alteraram-se-lhe os hábitos, o menino crescia agora ciente das suas limitações, que aquele pulmão, danificado para sempre, o impedia de aturados esforços e de demasiados sonhos. As proezas acrobáticas, as possibilidades de uma profissão laboral que lhe exigisse esforço físico, estavam irremediavelmente postas de parte e o jovem teria de enveredar por outros caminhos e de construir outros caminhos de vida. Passava agora mais tempo na observação do pequeno mundo em seu redor, na contemplação da natureza e nas coisas que, noutras circunstâncias, lhe passarias despercebidas.

E descobriu, bem cedo ainda, as suas aptidões vocais, que lhe permitiam sonorizar instrumentos musicais – marchava, descarado, atrás das bandas de música, arremedando saxofones e clarinetes – mas também os sons de máquinas, de portas a ranger nos gonzos e coisas assim. E imitava, quase na perfeição, o grunhir dos porcos, o cacarejar das galinhas, o relincho das bestas, o coaxar das rãs e uma infinidade de outros sons da fauna doméstica. Porém, eram as vozes dos pássaros que melhor lhe saiam garganta, a ponto de não se distinguirem a verdadeira voz da imitação. Um prodígio, aquele menino.

Nas andanças com o pai pelos jardins da vila, pelas cercanias do viveiro, pelas margens do rio e pela encosta onde residia, abundavam as aves que, de manhã ao anoitecer, não se cansavam de cantar. Regalava-se o moço com o canto dos canários machos cativos nas gaiolas, ou libertos e felizes nas ramagens dos pinheiros, com o chilreio dos pintassilgos na Primavera, com o ritmado canto dos cucos, bem diferente daquele outro som que deles parece saído pelo nariz humano e o assobio, quando se exibem e namoram as fêmeas.

Mas era o cantar do verdelhão, saltitando nos jardins à cata de deliciosas sementes, ou roubando descaradamente as já plantadas no viveiro, mesmo ali na presença do pai jardineiro, que mais o encantava. Romeu exultava com a observação das aves e surpreendia quem o escutava, imitando-as com tal semelhança, que mal se distinguiam as diferenças. E a fama das faculdades do rapaz logo se espalhou pelas redondezas.

Cravo Roxo, rendido às raras qualidades do rebento e dada a escassez de fundos, que desde sempre ensombrou a vida do lar, deitou-se a magicar numa forma de tirar rendimentos das qualidades do benjamim. Não faltavam por aí romarias e festas, e serões de variedades pelas aldeias da redondeza. Ele até tinha jeito para imitar as pantominices dos artistas. O rapaz bem que podia animar essa gente, a troco de umas moedas. Pois se imitava os instrumentos das bandas, os animais e sobretudo os pássaros, não havia também por certo de deliciar quem o ouvisse exibir aquela maravilha de voz que Deus lhe dera?!

E disse-lho, num serão, ao jantar. O rapaz que não, que não queria andar por aí a fazer essas figuras de imitar a bicharada à frente do público. Lá na terra, para os amigos e para a família era uma coisa, agora andar de saltimbanco a fazer imitações… Havia de se envergonhar, por certo. Que não. Mas o pai insistia e acabou levando a melhor.

No Verão, mas despontava a época das festas, lá ia o pobre, aos domingos, como burro por arreata, atrás do Cravo Roxo, de arraial em arraial, satisfazendo os pedidos mais surpreendentes dos espectadores. “Ó catraio, imita aí a minha Laurinda, quando está com prisão de ventre!”, alanzoava-lhe certo dia um idiota, de garrafa na mão, com a baba a correr-lhe pelos cantos da boca e prestes a cair-lhe aos pés, quando se tentava empoleirar à beira do rústico estrado onde a festa decorria. 

Não, não iria mais, nem que o pai o enchesse de porrada. Cravo Roxo compreendeu. Também a ele aquela vida não agradava, mas as gorjetas que iam arrecadando eram uma preciosa ajuda, lá isso eram. Não insistiu mais. Amava o filho, como amava a Catarina e os restantes rebentos e não queria que essa harmonia se quebrasse, fosse por que motivo fosse. Continuariam pobres, mas nem por sombras deixariam de disfrutar daquela pequena parcela de felicidade que o amor da família proporciona.  E o rapaz passou a dedicar-se aos pequenos biscates, recados de vizinhos, que lhe pediam para ir às compras, ou levar pequenas coisas a outros locais da vila.

Mais Romeu não arriscava, que o danado daquele pulmão, “que não prestava para nada”, não lhe consentir uma vida como a das outras pessoas. No Verão, quando a cerveja começa a escorrer pelas gargantas, era vê-lo, manhã cedo, a sair para os campos de mato, de sacola ao ombros, à cata dos caracóis, que o Vítor e o Razões - “capelas” ali postadas cara a cara, apenas com a estrada a separá-las – lhe compravam.

Havia outros, lá mais para o centro, como o Grandela e o Sepodes, que lhe encomendavam igualmente caracoletas, para os deliciosos guisados, cuja fama ganhara asas. Até os cafés já lhe pediam caracóis, que a moda tinha, também por ali, pegado de estaca. Deixava-os, aos quilos, no Melro, no Águia de Ouro e no Portugal e já não tinha mãos a medir, que as forças não davam para grandes feitos. No que lhe restava de tempo, rendido à sua irresistível predilecção, Romeu continuava a acompanhar o pai, aprendendo com ele os cativantes segredos da jardinagem.

Gostava dos espaços à beira do Almonda, quando a várzea se alonga, sempre no fascínio pelos animais, mamíferos ou pássaros, ou navegando o rio, na rudimentar canoa que o pai lhe construíra, muita vez correndo com a garotada que montava armadilhas às aves que por ali nidificavam. Navegava à vara, abaixo e acima, até ao moinho dos Gafos, ao fundo do Arco de Santo André, junto ao matadouro ou, mais além, às imediações do outro engenho de cereais, o moinho da Cova onde, desde bem cedo, se juntava aos outros garotos, nas tardes de Verão, nadando e pescando, naqueles descuidados dias de crescer e respirar os aromas da vida.

Era agora um esbelto moço, a rondar os dezassete anos, sem horizontes nem esperanças de futuro. Alguma coisa tinha de mudar, que Romeu, embora da saúde débil, não era um inválido, a quem se estende a mão por caridade. E um dia partiu, libertando-se com dificuldade e nós na garganta, da mãe que não augurava nada de bom com aquela partida do seu menino mais novo. E tão pouco saudável, valesse-lhe Deus. Cravo Roxo não se opôs. Ia sofrer-lhe a ausência, mas ele, embora fraco de forças, era um moço expedito e inteligente e havia de arranjar alguma coisa. “Vais ver, Catarina, ainda um dia te hás-de orgulhar dele”, consolava a esposa.  

Por aí, em busca de um lugar onde assentar arraiais e uma ocupação que lhe garantisse o pão, Romeu tentava em Câmaras, casas ricas e instituições, um serviço de jardineiro, até de ajudante, que os anos junto do pai lhe deram a experiência necessária para o desempenho de tal tarefa. Mas não, não havia vagas, tinham muita pena mas teria de procurar noutro lugar. Aqui e além ia desempenhando pequenas tarefas, a troco de alimentação e algumas moedas. Nada, porém, que lhe garantisse a estabilidade que o futuro lhe exigia.

Restava-lhe o fascínio pelo mundo do espectáculo, que lhe ficara de criança, mas que poderia ele fazer nesse mundo dos artistas, se não sabia mais de que imitar instrumentos e pássaros?! Ainda assim porfiava. Era o tempo da feira anual na vila beirã, onde Romeu ocasionalmente se encontrava. Apressava-se a montagem das barracas e dos divertimentos e o jovem deambulava pelo recinto, mirando, mirando.

Deteve-se junto à barraca dos tiros, já quando o velho proprietário terminava a colocação dos bonecos de plástico e os peluches, que os clientes de melhor pontaria levariam como prémio. “Precisa de ajuda, tiozinho?”, inquiriu, junto do idoso que se sentara, de lenço na mão, limpando as bagas de suor que lhe nasciam no rosto. “Preciso é de alguém que me fique ao balcão da barraca e me tome conta do serviço, que as minhas pernas já não estão muito pelos ajustes”. Romeu Cravo Roxo, assim sem mais delongas, acabava de conseguir o seu primeiro verdadeiro emprego.

Prendeu-se pela barraca dos tiros por pouco tempo. Não era aquilo que o cativava. Tentou depois, a meias com outro amigo das feiras, uma tenda de venda de algodão doce e farturas, mas o negócio pouco dava. Na região, farturas afamadas eram as do Pina – por sinal seu conterrâneo – e era para a rulote do Pina que a clientela corria. E depois embatucava, sempre que a si próprio o reconhecia: tinha umas saudades danadas dos pais e dos irmãos.

E também da encosta onde crescera, e do rio e do viveiro, cercado a muro alto, para que as cheias e os intrusos o não invadissem. Romeu - descobriu-o, ao longo daquele tempo em que andou por lá - não era homem para aquela vida de cigano. Estava muito ligado às raízes, como as plantas e as flores que o pai carinhosamente cultivava. E a mãe, a doce Catarina de quem tinha mais saudades, havia por certo de estar a sofrer a sua ausência, de uma dor mais forte do que a dos outros. Se calhar do que a dele próprio. Aquilo de andar por esse mundo de Cristo não era vida para um homem daquela têmpera.

Esquecido o sonho dos palcos, esconjuradas as mazelas com que a vida errante lhe marcara a existência, Romeu meteu um dia os parcos haveres numa coçada mala de mão e fez-se ao caminho, de volta a casa. Ao largo, que a moléstia pega-se!”, murmurava a si próprio, com a convicção de que fugia de algo sem futuro e sem os estímulos de vida, como a que ele percorrera na infância. Queria voltar ao seu mundo, à sua gente e ao conforto daquela várzea, que se estendia até à Ponte Nova, para lá dos limites do seu reduto.

Voltara a ajudar o pai no que podia e pensava no dia em que por certo o substituiria, mal o já cansado Cravo Roxo se reformasse. Sabia o suficiente dos segredos das plantas e das flores para, de cara levantada, pedir à Câmara o lugar do seu velho mestre jardineiro. Uma vez por outra, lá ia ao centro da vila, à loja das flores comprar sementes, por mando do pai, ou levar ao senhor Inácio proprietário da loja, “para amostra” e um pouco pela surra, uma ou outra flor cruzada, das muitas que Cravo Roxo fazia nascer no “seu viveiro”. Deliciava-se o homem, criando novas cores e matizes, nas suas flores, as quais exibia, com o peito inchado de orgulho, nos jardins municipais, como se fosse um pintor a expor os quadros em exposições de pintura.

Um dia Romeu demandou, como habitualmente, a lojinha, com mais uma lista de sementes para aviar. Ao balcão, sorridente, apresentou-se uma esbelta, fresca e viçosa jovem, que o atendeu com o sorriso mais suave e luminoso – santos do céu! – que nem as senhoras dos altares da igreja de Santiago. Nesse dia, cuidadosamente envoltos em jornal, levava o jovem a nova “menina dos olhos” do pai, para o senhor Inácio apreciar: um punhado de amores-perfeitos, tão maravilhosamente coloridos como se um arco-íris ali tivesse espargido as suas tintas. A jovem recebeu-os, olhou Romeu no mais profundo dos olhos e, abrindo um sorriso de sol a pique, balbuciou-lhe: “Quem dera que os amores-perfeitos se vendessem assim aos braçados, em pacotes de jornal.”

Quer saber o meu nome? Sou Madalena”, disse, em resposta à pergunta meio desajeitada do rapaz. Romeu não sabia onde havia de meter as mãos, nem os olhos, nem o pobre coração, que ameaçava saltar-lhe do peito. Entre breves gaguejos, conseguiu, a meia voz, retorquir: “Que pena não se chamar Julieta. Eu chamo-me Romeu, sabe?” E depois, por uma infinidade de tempo, que nenhum dos dois soube contar, ficaram ali numa conversa recheada de trivialidades, à descoberta de coisas que nem eles próprios saberiam muito bem o que seriam.

No dia seguinte Romeu voltou à loja. Trazia mais flores, agora não para o senhor Inácio, mas para ela, “de quem as flores da loja haviam certamente de ter ciúmes”, lançou-lhe o atrevido. E voltava para casa, de alma cheia e de janelas abertas no peito, vislumbrando algo mais sublime, mais doce e mais forte, do que as, agora tão aguardadas, idas em busca de sementes.

E nos dias que se seguiram, e nos outros que depois vieram, lá ia, prazenteiro, de fatinho bem-posto, flor na lapela, cabelo luzente de brilhantina e coração mais ofegante do que um corcel num final de galope. Romeu, sem sombra de dúvida, subira ao céu e por lá esvoaçava, de alma cheia, chilreando como as aves que tão bem sabia imitar. O rapaz, irremediável, embora secretamente, apaixonado, debatia-se com uma dolorosa falta de coragem. Porém, Madalena sabia. Soube-o, também ela, desde o primeiro momento e ria-se a sós, recordando as vezes que dizia às amigas confidentes que jamais acreditaria naquela coisa ridícula do amor à primeira vista. Podia lá acontecer uma coisa dessas?!

Não tardou que as visitas à loja se transformassem num compromisso sério entre os jovens. Amavam-se, confessavam-no mutuamente, com desusada frequência e queriam já que esse forte sentimento que os juntara fortalecesse e desse passos definitivos e sólidos. Ambos viviam agora cativos do mundo mágico das flores. Seria por aí o seu futuro. Romeu arrendou uns palmos de terra junto ao Moinho da Cova, num pequeno baldio à beira do areal, onde em menino brincava. Ia criar o seu próprio viveiro de flores, abririam uma loja na zona nova da vila, que então começava a crescer para os lados das Tufeiras.

Próximo do aquartelamento militar e das Casas Altas, alugaram uma casinha de piso térreo, onde iriam viver após a boda. Ficava perto do viveiro – era só descer um pouco, que o rio era logo ali – e ficava, por assim dizer, ainda no meio da vila. No dia do casório, Cravo Roxo, de braço curvo, no qual, tão trémula, se apoiava a mão da esposa, dizia-lhe, ao ouvido, rasgando um sorriso onde cabia a lua cheia: “Eu não te disse que o rapaz ainda nos havia de dar alegrias? Eu não te garanti que ainda te orgulharias dele?”

Pois dissera. Catarina conhecia bem o filho que trouxera no ventre, que a inundara de lágrimas, quando quase lhe morreu, naquele maldito dia no alto da colina e sabia que o seu menino – Romeu seria sempre o seu menino – merecia a felicidade que ela própria tivera, mesmo suportando as arremetidas da sorte, os sacrifícios e as agruras de uma vida de dores e privações. E depois, aquele Deus que lá do céu olha por nós, bem sabia que o seu menino nascera com a missão de levar também a felicidade aos que dele se acercavam e com aquele tão maravilhoso dom de imitar os animais, que a vida lhe ensinara a amar também, como filhos da criação.                 

Bem vistas as coisas, Romeu Cravo Roxo sabia que alguém, algures, se ocupara do seu destino e da sua felicidade. Tanto assim, que o tocara ao nascer com a varinha de condão das fadas madrinhas e lhe concedera, com essa bênção, o mais belo dos privilégios: ensiná-lo a falar com os pássaros, como se eles fossem também capazes de, com a harmonia do canto, entender a suprema maravilha do universo.

Depois da doce voz da sua Madalena, havia lá coisa mais linda de ouvir, ao acordar, do que um trinado de ave madrugadora, lançado ao vento e pelo vento levado até aos confins do coração dos homens.  

 António Lúcio Vieira

2015

segunda-feira, 15 de maio de 2023

P1394: DO ANTÓNIO LÚCIO VIEIRA

Um poema inédito do saudoso António Lúcio Vieira, de 13 de Setembro de 2016, que nos foi enviado pelo nosso camarada Carlos Pinheiro:

"Há dias em que saio para a vida com uma necessidade enorme de semear poemas.

Peço desculpa pelo incómodo”.
             SINA

Vês, lá longe, já lá vem lá longe.
Visto daqui parece uma visão por entre brumas
bate-lhe o sol na espuma da proa
e a luz salpica no ar, crepita e cintila.
Há gente no cais acenando braços e lenços
como que a dizer-lhe que é ali o lar.
Sobe o sol no espaço e ateia o dia.
Prenhes de vento as velas arrastam navegantes
ávidos de cais cansados de náuseas e tédios.
 
Lá vem, já lá vem.
Nas pedras musgosas do molhe vem o mar e volta
na amurada assomam olhares e rasgam-se os risos
e as vozes que chegam dos nautas perfilados nas vergas
trazem com o vento a solidão dos dias como se fossem almas
salgadas por todos os mares em todas as viagens.
 
A brisa da manhã lança ao cais um odor marinho
que o casco guardou dos outros mares e de outras memórias.
Lê-se ali o livro breve de tantos segredos
tantos cais de aportar e tantas tantas as procelas.
Nas velas nos mastros e quilhas escreveu-se o mural da epopeia.
Cada baía era uma alcova cada cais foi um lar de alentos
cada oceano uma estrada de galgar distâncias
um adamastor de gelar os corações e as veias.
 
Na longa travessia dos sentidos a voz dos mares dorme nos porões.
O navio atracou mas já sonha partir. Partir.
Soltar amarras e voltar aos mistérios às tormentas e aos medos.
Ao mar.
Curtir o corpo na aventura da viagem desde há muito destinada.
Ao mar que nele se fizeram os homens desta terra
que por ele se abriu o mundo à passagem de flâmulas e ouros;
do mar onde nasceram as vozes cantadas da saudade. Fados.
Ao mar que as águas em volúpia já se roçam pela quilha.
 
Ao mar. Nasceu-nos no berço este fadário de enfrentar tormentas
entre tantos cais de sarar refregas.
Quantos mais cabos a sul ainda para dobrar.
Quantas Calecutes ainda por destino. Quanto naufrágio anunciado.
 
No cais os lenços voltarão. E voltarão. As âncoras já sobem.
Soltam-se as amarras. Soam as sinetas. Ao mar.
Corre-nos nas veias um sangue salgado. E uma espuma nos olhos
e há um sopro de maresia nas vozes que murmuram: espera por mim.
 
Rasga-se o destino na proa do navio.
E vai um povo inteiro ali silente com a marinhagem.
Nos porões que hão-de voltar inchados de futuro.
 
Sina diz o povo ser o nome desta saga que se teme não ter fim.

                                   António Lúcio Vieira