quarta-feira, 1 de julho de 2020

P1239: INÍCIO DA COMISSÃO


VIAGEM PARA O DESCONHECIDO


Agostinho Gaspar
Depois de um  último jantar no R.I. 16, em  Évora, do dia 4 para 5 de Outubro de 1972, o Tenente João Manuel de Matos e Silva Mendonça chamou os aspirantes, os cabos milicianos e alguns soldados para a entrega dos galões, das divisas, das promoções a capitão, alferes, furriéis e 1ºs cabos. Foram horas de azáfama.

Depois de se ter entregue e feito o espólio pertencente ao quartel, já com as malas feitas e as últimas recomendações, chegou a hora da partida para um destino desconhecido, de que só nos bancos da escola primária, dez anos antes de embarcar, tinha ouvido falar: era a Guiné.

Depois de receber uns certos papéis, guias de embarque e boletins de vacina, para que na hora não faltasse nada, o 1º sargento chama o capitão e avisa que há um militar que também era cabo e ia ser acompanhado sob escolta até a entrada do embarque. Eu era o último dos cabos; o 1º sarg. Miguel (já falecido há uns anos) vira-se para mim e diz:

- “Ó nosso cabo, tu e outro vão acompanhar e fazer segurança a um preso, é preciso que levantem armamento; quando o preso estiver em lugar seguro as armas serão entregues aos condutores dos nossos transportes”.

Depois de ouvir o sermão e de ele ter acabado de falar, chegou a minha vez de lhe responder. Recordo ainda as palavras como se fosse hoje: - “Ó meu primeiro-sargento Miguel,  eu nem pertenço a esta guerra e muito menos sei mexer em armas e fazer segurança!”.

O capitão, que estava ao lado, vira-se para mim e pergunta-me quem eu era: - “Sou o cabo mecânico da companhia”, respondi.

A resposta dele foi bem clara: - “Tens razão, é melhor ser um atirador...”

Palavras e ordem tão sensatas! E que alívio… Tinha chegado á Companhia semanas antes e não conhecia ninguém e já o sargento me estava a meter medo… e em sarilhos se corresse alguma coisa mal!

Tudo preparado, as bagagens carregadas nas viaturas, dia 5 de Outubro de 1972, era uma noite de chuva e bastante fria,  pela uma da manhã, eu já com vinte e dois anos feitos em Abril, lá entrámos para as viaturas com destino a Figo Maduro, onde um Boeing 707 da Força Aérea estava á nossa espera. Apenas uma pequena paragem pelo caminho para esvaziar a bexiga, para o avião ficar mais leve…

Chegámos pelas seis da manhã; alguns familiares já lá se encontravam para as últimas despedidas. Da minha parte não tinha ninguém, já as tinha feito em casa. Pelas sete o altifalante começou a chamar um a um pela ordem de embarque para fazer o check-in, entregar as bagagens e receber o número do lugar. 

Fui um dos primeiros, a minha cadeira o nº 13C, do lado esquerdo. No 13A ao lado da janela ia o cabo Silva Ribeiro (o Padeiro), no13B, ao meio, o furriel mecânico, no 13C a minha pessoa, cabo mecânico.


Mais uns tempos de espera e os últimos abraços e beijos aos familiares: pais, esposas namoradas, filhos e amigos. Por volta das nove horas novamente os altifalantes anunciavam o embarque. Silêncio total, iam chamando, o pessoal ia entrando, ocupando os lugares que lhes estavam destinados. Depois de estarem todos sentados, porta fechada. 

Era um dia de Outono chuvoso e frio. Íamos bem agasalhados, mal sabíamos que nós que passado algumas horas estaríamos a sufocar no destino com as altas temperaturas…

Com o silvo dos reactores, o avião começou a movimentar-se para a pista, era o meu baptismo de voo... Ao longo de toda a viagem foi um silêncio total. A meio caminho foi-nos servida uma refeição. Quatro horas depois da descolagem chegámos a Bissau.

Quando o avião parou só passados mais de quarenta minutos é que abriram a porta - e nós a olhar pelas janelas,  tudo parecia diferente e estranho de ver, as pessoas em mangas de camisa e calções, e a nós só nos faltava o sobretudo...

Quando saímos da porta para fora, ao descer as escadas do avião parecia que íamos para o inferno, não sei se existe… 
(o verão quente de 73 passei-o no inferno de Gadamael, mas essa história fica para outra altura…).

Ao sair do avião fomos recebidos por um graduado, não tenho memória de quem era. Formados em parada na pista, veio  dar-nos as boas vindas ao nosso calvário. Na maior força do calor o oficial falava, nós sem perceber o que ele dizia e a tropa a destilar e a assar ao calor, alguns até desmaiaram…

Acabadas as cerimónias militares, as viaturas rumaram ao Cumeré para uma estadia de algumas semanas. Dentro do quartel, ainda em cima das viaturas, fomos recebidos pela praxadela habitual nestas ocasiões: "Pius… pius… pius"... Eram os da 2ª CCAÇ do nosso BCAÇ 4612/72, tinham chegado dias antes e já se consideravam velhinhos!

Começava a nossa provação…
Agostinho Gaspar

6 comentários:

Juvenal Amado disse...

Agostinho fizeste lembrar-me quando regressei após a férias em Novembro de 72 quando se abriu a porta do avião e levei com aquele calor todo pensei que a farda estava a arder. Depois até nos adaptarmos ao calor sem descanso ainda levou tempo. Um abraço

Manuel Reis disse...

Belo texto sobre uma guerra que nos marcou no corpo e na alma
Um grande abraço.

JB disse...

Os milhares de homens que fizeram a viagem para Bissau nos porões do Niassa em condições hoje inacreditáveis, sentem certamente inveja das viagens aéreas de algumas horas.
Não as sofri(!) mas tive oportunidade de as observar com os meus olhos incrédulos.
Será que existe algures um pedaço de filme, ou fotos, de algumas daquelas situações primitivas e impossíveis de compreender pelas gerações do Portugal de hoje?
Creio que membros das outras Armas das Forças Armadas de então ainda hoje não fazem ideia daquelas realidades.
Felizmente que hoje o que na verdade interessa aos antigos combatentes não são as lamentações mas sim as recordações e histórias pessoais tão bem descritas pelo Amigo e Camarada Agostinho Gaspar.

Um abraço do J.Belo

Juvenal Amado disse...

É verdade J. Belo
Viajei para Bissau no Angra do Heroísmo onde tive a sorte de conseguir ir para um dos camarotes onde já estavam uns 10 mas para cá vim nas profundezas do Niassa em beliches de 4 andares. As escadas tinham mais vomitado que escadas. Trazíamos às costas os que não conseguiam subir sozinhos, embrulhávamos-os numa manta num sitio protegido onde apanhassem Sol e à noite levavamo-os novamente para baixo.
Pequeno almoço à proa ninguém se aguentava lá, assim ia um de nós buscar o pão que era distribuído à entrada do refeitório mal se acabava de descer as escadas.
Uma tragédia para quem enjoava.
Quanto a fotos não tenho nem conheço quem tenha.

Carlos Pinheiro disse...

Essa coisa das viagens, a malta não ligava muito, queria era chegar, mas as viagens nos porões foram de facto inenarráveis, A mim calhou-me o UIGE para lá, foram 5 dias dificeis de explicar porque as condições a bordo, quer dizer nos porões, eram do pior que podia haver. E houve camaradas que ali passaram os 5 dias, uns porque enjoaram, outros porque eram banqueiros da lerpa e assim limpavam os desgraçados aventureiros não avisados.
Mas para cá, para compensar, vim no Carvalho Araujo.Foi uma das suas ultimas viagens. Nove dias a ver mar e céu, tudo azul. Quanto aos poões do Carvalho Araujo eram parecidos com os do UIGE e possivelmente do NIASSA e até do VERA CRUZ. Mas os porões do Carvalho Araujo tinham uma coisa boa. Tinham ar forçado porque quando andou anos e anos a transportar gado dos Açores para Portugal, o gado enjoava e morria, Por isso lá engendraram um ar forçado para o gado e que tambem serviu para a soldadesca. Para compensr do ar forçado, andámos 9 dias sem água para lavar a cara quanto mais para tonar banho. Até o prato que deram à entrada era lavado com água do mar. As coisas boas da viagem de regresso foi a paragem no Funchal, porque o barco tinha que lá ir meter água e nafta, e a chegada a Lisboa. Enfim. Recordações...

Hélder Valério disse...

Caro amigo Agostinho

Peço-te desculpa por só hoje, agora, comentar as tuas recordações mas a vida às vezes tem imprevistos e não dispomos do tempo e das oportunidades que se precisa.

Não consigo imaginar o que seria a viagem das condições descritas. Melhor, imaginar, talvez consiga mas nada que se possa parecer com "viver" essas condições.
Nesse aspecto fui previlegiado na medida em que tendo ido em rendição individual fui num cargueiro que tinha 6 cabinas duplas, para 12 passageiros, e como tal fui eu e outro numa cabina. Bom tratamento, boa comida, boa viagem.

Portanto acho que fizeste bem em relatar as tuas memórias.
Alguém poderá ficar a saber melhor o que se passou entretanto.

Abraço
Hélder Sousa