quarta-feira, 22 de julho de 2020

P1242: DE VEZ EM QUANDO UMA VIAGEM AO PASSADO...


FRANCISCO DIOGO VELEZ, A MODÉSTIA EM PESSOA

Quem passou pela Guerra do Ultramar tem estórias de vida que nunca mais acabam.
Dos meus tempos da Guiné (1964-66) recordo o Velez como um militar disciplinado, cumpridor, bom no que fazia, mas sem dar especialmente nas vistas. O Velez só se transfigurava quando jogava futebol. Era o nosso melhor jogador. Simplesmente o melhor.

Em termos pessoais recordo-o como parceiro de uma cena meia caricata, de que não me orgulho particularmente - mas que aconteceu. Consta até do nosso “Diário”.

«…na noite de 13 de Setembro de 1964 tivemos a surpresa de um ataque ao quartel, em Binta. Estávamos – vários furriéis e sargentos - numa sala que tinha duas saídas. Uma para o lado donde vinham os tiros e outra pró outro lado.

O lado bom… dava para a sala dos telegrafistas. Arrombámos a porta e passámos pelos telegrafistas como uma manada de búfalos a fugir de leões. Eu fui um dos “heróis” que atropelou o Velez na minha corrida desenfreada “pró lado bom”. Nunca mais esqueci a sua cara de espanto…».

Regressámos em Maio de 1966 e a partir do ano seguinte iniciámos os nossos convívios anuais.

Nos convívios da C.Caç 675 o ex-1º. Cabo-telegrafista Velez nunca contou nada da sua vida de civil e sempre se manteve discreto e sem alardes ou bazófias da sua vida profissional. Sabíamos que trabalhava na Central de Cervejas mas pouco mais.

Mantinha-se solteiro e próximo dos seus familiares.

Na missa que mandamos celebrar nos dias dos nossos convívios, que têm lugar habitualmente no 2º domingo de Maio, desde 1967 até aos nossos dias, recordamos sempre os nossos mortos. Quando a já longa lista é lida em voz alta pelo nosso ex-Alferes Belmiro Tavares cada nome é saudado com o grito de “presente”.

Na Guiné tivemos 3 baixas. Regressámos em Maio de 1966 e desde então até aos nossos dias já nos deixaram mais 55 camaradas.

Um dia chegou-nos a triste notícia de que Francisco Diogo Velez nos tinha deixado em 23 de Março de 2010.

A C.Caç 675 continua a honrar os seus mortos. Mais uma vez acompanhei o ex-Alferes Belmiro Tavares na honrosa e digna missão de colocar uma lápide na última morada do nosso camarada.

Acompanhado de um seu familiar – José Godinho, seu sobrinho por afinidade - fomos visitar a sua campa no cemitério Municipal Vale Flores, em Feijó.

"Presente”. Velez. 1º Cabo Cond/Auto/ 2458/63 da CCaç 675 (“dizia” a placa mortuária)
... Dr. Francisco Diogo Velez, da Central de Cervejas, completou seu sobrinho José Godinho.

O Belmiro olhou para mim e eu olhei para o Belmiro. No Outono desse 2011 estava-nos reservada uma surpresa. Das grandes. 

Saímos do cemitério do Feijó e visitámos a casa do sobrinho do Velez. E soubemos tantos anos depois o que tinha sido a vida pessoal e profissional do nosso Velez, da Guiné.

Já na casa de José Godinho vimos uma sala preenchida com troféus e fotografias do “Chico” Velez, como os seus familiares mais próximos o tratavam.

Nasceu em 1942 em Benavila, concelho de Aviz, distrito de Portalegre. Alentejano de um meio rural, filho de uma família de camponeses, muito humilde, teve a companhia de mais 4 irmãos. Fez a 4ª Classe, jogava a bola e foi aprendiz de sapateiro, com um seu tio. Viveu na sua terra natal até aos 20 anos. Chegou o tempo da vida militar, e foi mobilizado para a Guiné, onde o viemos a conhecer.

Depois do regresso em Maio de 1966 – soubemos pelo seu sobrinho José Godinho - ingressou pouco tempo depois na Sociedade Central de Cervejas e Bebidas, em Vialonga, onde veio a trabalhar toda a vida.

Foi servente e depois ajudante de motorista. Tirou a carta de condução profissional e foi promovido a condutor. Por volta dos 40 anos resolveu estudar. Estudou à noite e em dois anos fez o liceu. Ingressou depois na Faculdade de Economia, em Lisboa, e em 5 anos conseguiu terminar o seu curso. 

Na sua empresa reconheceram-lhe os méritos e o seu esforço para se valorizar e quando já andava no 2º ou 3º  ano da Universidade ingressou nos escritórios da Empresa, como tesoureiro. Quando terminou a sua licenciatura passou ao Departamento de Finanças e nos últimos anos da sua vida foi Director Financeiro da Central de Cervejas.

Nos convívios da CCaç 675 o Dr. Velez nunca contou nada da sua vida particular e sempre se manteve discreto e sem “caganças”. Sabíamos que trabalhava da Central de Cervejas… mas pouco mais.

Manteve-se solteiro e sempre próximo dos seus familiares. Comprou uma casa com 9 assoalhadas, onde viveu grande parte da sua vida. Essa casa de 9 assoalhadas é em Lisboa, na Avenida Miguel Bombarda.

Na fase da sua doença, que lhe veio a causar a morte, esteve nos últimos meses de vida em casa do José Godinho em Fernão Ferro, na margem Sul. Já muito doente fez questão em fazer testamento e deixou as poupanças da sua vida aos seus familiares mais próximos.

O seu funeral foi uma sentida manifestação de pesar. De gente do futebol – jogou nas reservas do Benfica e do Sporting Clube de Portugal nos tempos em que Juca foi treinador do clube – e de gente do ténis de mesa. Nesta modalidade o “Chico” Velez foi durante alguns anos campeão nacional de veteranos pelo Clube Desportivo do Millennium BCP. Sem nunca ter sido bancário…

Nunca contou aos seus camaradas da “675” os problemas de saúde que marcaram duramente um ano da sua vida. O último. E só mais tarde soubemos que já não estava entre nós.

A surpresa estava para acontecer quase um ano e meio depois da sua morte.
O 1º Cabo Velez da “675” morreu “Doutor”.
Doutor em economia mas principalmente em simplicidade. Sem ostentação de títulos nem vaidades.

Francisco Diogo Velez foi a modéstia em pessoa. Cultivou em vida valores que vão para além da morte. Merece o nosso apreço. A nossa homenagem póstuma e a expressão da nossa saudade.

Um Alfa-Bravo dos teus camaradas da Guiné. Até um dia.
JERO


2 comentários:

Hélder Valério disse...

Amigo JERO, fazes bem em continuar com estes teus "retratos" sobre os teus (nossos) camaradas dos tempos da Guiné.
Fazes bem porque é uma forma de os honrar e, aos falecidos principalmente, dar um pouco mais de visibilidade à sua memória.
O caso que relatas é exemplar.
Tenho ideia que não é único mas é a prova de que "pode-se ser" sem estar a alardear "parecer".
Há uns anos atrás, não muitos, tomei conhecimento de forma superficial que um camarada do meu curso de TSF e também da Guiné, era funcionário da Refer, salvo erro "Refer-Telecomunicações", ali junto à "Gare do Oriente".
Num dia em que me encontrava na zona resolvi ir tentar encontrá-lo.
Fui a uma portaria secundária e perguntei ao "segurança" se seria possível "dar uma palavra" a um amigo que sabia trabalhar lá, embora desconhecesse o departamento e que se chamava Eduardo Pinto.
O simpático funcionário percorreu as listagens de funcionários e nada encontrou. Mas não desistiu, ligou para a colega da portaria principal e ela de lá, pelo telefone, o esclareceu e à medida que o fazia fui apreciando a cara de espanto do meu interlocutor.
Meio a gaguejar disse: "mas é o nosso Administrador"! Vou ligar à secretária."
Assim o fez, repetindo o meu nome e o motivo da visita.
Pouco tempo depois "o Senhor Eduardo", como era tratado, deslocou-se pessoalmente à tal portaria, veio ter comigo, fez uma daquelas festas que só nós, os antigos camaradas, fazem e levou-me para o seu gabinete atravessando os "open-space" comigo e deixando todos aqueles funcionários intrigados (observei as suas caras) quem seria aquele personagem (eu) trajando tão pouco a rigor (foi no verão e não tinha casaco....) e que merecia tal deferência por parte do "Senhor Eduardo".
Estivemos à conversa, rememorando tempos e situações comuns, presenteou-me com umas coisas "lá da casa" e lá fizemos o caminho de retorno até à saída voltando a notar os olhares do pessoal.
Mais tarde perguntei-lhe e ele disse que os esclareceu que se tratava de "um camarada da guerra da Guiné". Acho que compreenderam....

Abraço
Hélder Sousa

Juvenal Amado disse...

Jero
Foi um percurso devera interessante que confirma o lema de quem porfia mata caça. Um abraço