quarta-feira, 29 de julho de 2020

P1243: BISSAU PODIA SER MAIS PERIGOSO QUE NO MATO...


BORRASCA NO PILÃO

Juvenal Amado
Sentado do lado da janela, parecia um pardal de telhado sempre ao saltos. Muito magro, pequeno, pouco maior que uma G3, fui durante toda a viagem de regresso à Guiné motivo de animação.

Quando avião se fez à pista e comecei a ver o arame farpado a correr veloz, o meu semblante transformou-se ligeiramente.

- “Já estamos de regresso ao arame farpado novamente” - disse com algum desânimo.

As férias tinham corrido rápidas, os dias tinham-se-me escapado por entre os dedos; agora, no corredor de rumo à saída do 727,  pensava no calvário que ia passar até chegar a Galomaro.

Ainda sentia o cheiro dos lençóis e a frescura daquele Novembro, que havia escassas 3 horas  tinha deixado para trás.

Cada passada que dava me aproximava da porta, a hospedeira desejava-nos sorte. Tão apreciada durante toda a viagem, o seu sorriso depressa se diluiu nas ondas de calor, que me atingiu quando cheguei às escadas. A roupa ardia, com o corpo ainda à temperatura do ar condicionado.

Vou para os Adidos. Apresentei-me já sabendo que seria escalado para tudo que era serviço. Tenho que sair de Bissau rapidamente...

A mistura de periquitos e veteranos fazia uma manta de retalhos. Os braços e joelhos branquinhos contrastavam com os rostos tisnados da malta mais velha.

A noite foi passada em cima do colchão sem lençóis e todo vestido, pois sabia lá quem já tinha dormido naquela cama…

No dia seguinte - foi fatal - estou de piquete...

Quem comandava o piquete era um furriel novinho em folha, tão branco e magro, o suor corria-lhe em bica e dava-lhe um aspecto quase transparente. Pensava eu: “Ou muito me engano ou se houver chatice, vai ser complicado convencer o furriel de que não deve fazer ondas”.

Segundo era voz corrente, no Pilão conviviam com a população clandestinos do PAIGC, comandos africanos, fuzileiros e prostitutas… Estas eram responsáveis pelas visitas dos soldados às enfermarias com maleitas que por vezes faziam temer o pior em relação ao futuro reprodutor dos mesmos.

Assim, estava eu a rogar a todos as santinhos que não houvesse problemas lá para aqueles lados, quando o piquete foi chamado. Estava visto que as minhas preces não tinham sido ouvidas…

Tinha estalado um fogachal com rebentamentos à mistura bem no meio do bairro.

Olho à minha volta, três ou quatro soldados mais velhos, os restantes acabados de chegar. Um Unimog com o nosso furriel no comando dirige-se para os cavalos de frisa da entrada do bairro. Os clarões estão cada vez mais perto e ouvem-se tiros.

Nós não conhecíamos o bairro, nem tínhamos qualquer preparação para lá intervirmos.

- “Meu furriel, o melhor é não entrarmos lá, sem que outros piquetes mais conhecedores lá entrem primeiro” - tentavam os velhinhos demover o furriel. O bom senso ditava que aguardássemos que os piquetes de Bissau interviessem primeiro.

Passaram os piquetes do Quartel General, dos Comandos, Polícia Militar e não sei mais quantos. A coisa não dava sinal de abrandar, o cheiro a incêndio era intenso. Por fim lá nos fizemos à vida e entrámos também.

As cubatas queimadas, feridos e possivelmente mortos deram-nos razão. Não teríamos salvação se tivéssemos sido apanhados entre fogos, nem saberíamos donde nos chovia a fogachada.

Galomaro
Regressámos aos Adidos sem maiores danos. Já de madrugada tentei dormir, lembrava-me do sorriso da hospedeira, da fresquidão dos lençóis, dos sabores e perfumes de casa. Os mosquitos atacavam em esquadrilhas, estava demasiado excitado para dormir.

Pensava: - Tenho que arranjar transporte para o Xime numa LDG ou coisa parecida, rapidamente, pois lá perto está a minha segunda casa...

Juvenal Amado  

3 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

O Pilão era lixado... dizia-se que alguns saiam de lá com a cabeça debaixo do braço. Mas nunca lá tive problemas e até ajudei a organizar lá um baile que acabou quando houve um "choro# ou porque tinha que acabar e nem "choro" talvez tivesse havido. Mas era lixado.

Hélder Valério disse...

Caro Juvenal

Fizeste bem em trazer aqui essa memória para ficarmos a saber como também podiam ser difíceis os dias em Bissau.
E isso porque o que relatas não se passou no "ar condicionado", como o pessoal gosta de se referir aos que estavam em Bissau.
E achei curioso o teu forte desejo de "ires para o mato" (Galomaro) o mais rápido possível. E referires-te a isso como a tua "segunda casa". Na prática, e apesar das vicissitudes de estares "no interior", já conhecias os cantos à casa e as rotinas (com mais ou menos surpresas e incómodos) e isso era largamente mais acolhedor do que aquele ambiente hostil em que entraste.
Acho bem.
Mas também te digo que não era sempre assim, ou que não era assim para todos.
Abraço
Hélder Sousa

Anónimo disse...

Boa história caro conterrâneo e amigo.
Haja saúde e venham mais.
Abraço de Alcobaça em dia de São Bernardo de Claraval.
JERO