quarta-feira, 24 de junho de 2020

P1238: CASTIGO PESADO

A PATRULHA NOCTURNA

Juvenal Amado
Deitado na escuridão, perto de mim o Silvestre tomava posição à minha esquerda. Para os meus camaradas, já tão habituados, era mais uma patrulha nocturna. Era a primeira vez para mim, que como Cabo Condutor os tinha levado tantas vezes para essas mesmas patrulhas.

Era uma noite particularmente escura. O silêncio total ampliava os sons da natureza selvagem. Qualquer ruído era motivo de sobressalto e da máxima atenção. Meditava no que me tinha levado a fazer aquela patrulha nocturna por castigo.

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As colunas a Bafatá tinham sempre muitos voluntários. No início do mês, com o pré fresco no bolso, era uma corrida para ver quem ia. À medida que o mês avançava ia diminuindo a oferta, mas sempre se arranjava malta para a coluna que trazia o correio.

O furriel Claudino era o responsável pela coluna. Entre outros iam o Caramba, Ivo, Silva, Aljustrel, etc.

No restaurante do Libanês, na rua principal, comemos febras de porco, batatas fritas e ovo a cavalo, cada um de nós bebeu uma garrafa de Dão branco muito fresco. Como um prato tão simples nos transportava para casa e para outra época, em que não comíamos com a espingarda e um monte de granadas penduradas nas costas da cadeira...

Rematámos com um charuto e whisky, oferta da casa. Antes já tínhamos bebido umas cervejas. Tudo isto se passava entre as 10 e as 11, 30 horas da manhã.

Uma coluna de Canquelifá também lá estava nesse dia e como de costume, eram bem regadas as visitas a Bafatá.

Bem bebidos, foi uma carga de trabalhos, para juntar o pessoal e regressar a Galomaro. Quem guiava era o meu condutor periquito.

Quando chegámos, fora de horas, ao entrarmos na porta de armas, demos de trombas com o Comandante, que de cara carrancuda e bengalim na mão, ficou a ver o espectáculo que foi o furriel cair da Berliet abaixo, quando tentava manter algum aprumo. O Silva a arrastar a espingarda pela bandoleira parada fora, como se um cão se tratasse… e todos muito entornados. Era na verdade um espectáculo deplorável, aquele que nós apresentávamos.

Ali estava o Tenente Raposo de papel na mão, para recolher os números de ordem. Íamos levar uma porrada. E logo no fim da comissão!

Apanhámos todos vários castigos. Reforços no quartel, nos postos avançados e alguns de nós, também apanhámos patrulhas nocturnas, mas o pior de todos foi a proibição, de voltarmos a Bafatá até ao fim da comissão.

A coisa só ficou por ali, porque o capelão em regresso de Bissau, vinha integrado na coluna e intercedeu por nós, dizendo que não nos tinha visto fazer má figura na cidade.

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E ali estava eu agora na escuridão, emboscado entre Campata (*) e Cansamba na direcção do Dulombi, com dez ou doze quilómetros para fazer a pé até ao Quartel. Havia um trilho e o pelotão do Pel.Rec. estava posicionado em “L" mais aberto, aproveitando uma curva. Eram talvez 20 horas.

Deitado de bruços, com a G3 apoiada à minha frente, não via hora de regressar ao quartel, tomar um banho e deitar-me.

O Comandante do Batalhão de Bafatá tinha telefonado ao nosso, contando-lhe que a malta da CCS do BCAÇ 3872 andava de rastos a correr todos os sítios onde houvesse de beber. Na verdade os gajos de Canquelifá, também andavam bem tratados e a figura deles não era melhor que a nossa. Só que eles não tinham lá o Castro e Lemos...

Nisto fico com o sangue gelado. Há movimento no trilho. Ouvem-se distintamente os passos de vários pessoas a caminhar. Ninguém se mexe. Os homens da frente deixaram passar, ouvimos vozes de crianças. Era um homem e duas mulheres com duas ou três crianças que regressavam a uma aldeia próxima. Não fizeram ideia de que passaram tão perto da morte.

Ali ficámos uma hora ou mais, estava cada vez mais escuro. O Furriel Castro deu a ordem de regresso.

Agora é que ia ser o bom e bonito. Não via nada, o Ivo ia à minha frente no seu caminhar bamboleante, de quem estava habituado a caminhar no mato, com o peso das granadas e cartucheiras. Ao passar afastava o ramos que por sua vez, me vinham bater na cara. Aqui caio e ali me levanto, esta marcha está a ser um tormento. Estou mesmo com medo de me perder, tal é a escuridão.

Como solução o Ivo, desengata a bandoleira da G3, estende-ma e é assim, comigo atrelado, que chegamos perto de Galomaro.

Finalmente vemos as luzes do arame farpado. São praticamente 11 horas e 30 minutos quando retirámos a bala da câmara e entrámos no destacamento.

À nossa espera está um banho e a bianda com estilhaços que é o prato mais famoso do restaurante da Morte Lenta.

Já estou com saudade do restaurante do Libanês. O pior do castigo é mesmo não poder integrar mais nenhuma coluna a Bafatá.

Efectivamente acabei por voltar a Bafatá, integrado em colunas de Cancolim, mas muitos dos que estavam comigo naquele dia, nunca mais lá voltaram… e assim se cumpriu a proibição.
Juvenal Amado

Anotação de Juvenal Amado

(*) Campata era uma aldeia com autodefesa feita por milícias oriundos da população. Uma das particularidades deste grupo armado, treinado e pago por nós, era o de ser comandado por um chefe fula, que estava em permanente litigio com o chefe religioso da povoação, porque bebia cerveja e comia carne de porco. Todos nós sabemos que são duas coisas completamente proibidas pela sua religião.

Esta aldeia foi atacada violentamente, originando muitos feridos na população.
Os tectos a arder, caíram sobre quem dormia dentro das casas provocando queimaduras graves em alguns habitantes. Entre os queimados, estava um menino chamado Mamadu, que ficou com as costas, um braço parte da barriga e peito, numa chaga.

Esse foi também um dia negro para a guerrilha, pois deixou seis mortos no terreno. Fomos com as viaturas até perto das Duas Fontes, sem luz e lentamente aproximamo-nos da aldeia. Regressámos de madrugada com os feridos e um guerrilheiro, que veio a falecer pois estava gravemente ferido.

O Mamadu sofreu muito, embora tratado com o máximo cuidado pelo dr Pereira Coelho, o furriel enfermeiro Graça e o enfermeiro Catroga. Todos os dias eram mudadas as compressas e os gritos do menino eram atrozes. Ficou a viver no quartel quase dois anos. Bastante deformado, voltou para Campata quando tudo estava cicatrizado.

A aldeia também foi reconstruída, seguindo os mesmos processos que relatei sobre Bangacia (Ver o nosso Post 1173).



2 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

E há por ai certa rapaziada que não sabe que a guerra existiu...

Hélder Valério disse...

Caro Juvenal

Às vezes pode-se dizer que "há males que vêm por bem".
Se não fosse a "porrada" com a intenção "profilática" quanto a possíveis (mais que possíveis) excessos alcoólicos, não terias a possibilidade de ter as experiências que relatas.
Como vês, mais uma vez se comprova um ditado antigo que nos diz que "Deus escreve direito por linhas tortas".

São úteis estas recordações.
Úteis para quem as relata na medida em que fazem como que uma exorcização.
Úteis porque para quem esteve lá pode também rever-se ou imaginar melhor os acontecimentos.
Úteis porque aqueles que só agora podem tomar conhecimento dessas situações tem a possibilidade de saberem então algumas coisas que se viveram e como se lidou com elas.

Abraço
Hélder Sousa