sexta-feira, 17 de abril de 2015

P641: Do Manuel Kambuta Lopes

RELATOS DE UMA MADRINHA DE GUERRA


 Eram oito e meia da manhã quando saí de casa para fazer a minha habitual caminhada. Comecei sem pensar no percurso que ia fazer; como sempre, nunca faço a minha caminhada madrugadora dois dias seguidos pelo mesmo percurso.

Tinha pensado fazer a passeata atravessando a minha linda vila de Monte Real, percurso que adoro fazer pois encontro sempre pessoas amigas e conhecidas para conversar um pouco. Foi o que aconteceu desta vez. Parei numa pastelaria junto ao Monumento dos Combatentes do Ultramar, bem no meio da vila. Estava a precisar de um café bem quente, para aquecer a máquina - mesmo caminhando sentia frio.

Tomado o café, ia para sair da pastelaria para continuar a minha caminhada, entrou então uma senhora muito minha amiga que começou logo a puxar conversa, a que não me fiz rogado; agradeci-lhe cá no meu pensamento, pois a conversa que era até me interessava. Esta senhora começou por apontar o Monumento dos Combatentes do Ultramar que se encontrava ali mesmo a poucos metros, dizendo que, todos os Combatentes além dos monumentos mereciam muito mais, pelo sacrifício que tinham feito em defesa da nossa bandeira, a que ela sabia dar o valor pois sabia muito bem o que eles tinham sofrido. E explicou que tinha sido e ainda era madrinha de guerra de cinco soldados, três de Angola, um de Moçambique e um da Guiné.

Conforme ia desenrolando as suas histórias e conversas ia dizendo, “Manel, tu não imaginas, nem consegues compreender o que aqueles heróis passaram nas antigas províncias ultramarinas. Eu sei pois escrevia-lhes sempre; assim que recebia os aerogramas respondia-lhe com rapidez para os ajudar a passar o tempo e a atenuar o seu sofrimento e a confortá-los nos momentos de dor e de saudade, pois, Manel, como vês, nem te passa pela cabeça o que eles desabafavam comigo”.

Esta minha amiga não sabia a minha idade verdadeira, pensava que eu era mais novo e que não tinha andado no ultramar. Deixei-a falar e desabafar, pois estava a ouvir coisas que também se tinham passado comigo, outras que desconhecia da parte das madrinhas de guerra. 

Estava em pulgas para saber mais e cada vez mais, ela dizia que andava ansiosa para desabafar com alguém que se interessasse e lhe desse ouvidos e eu ia pedindo para continuar a contar, que estava a gostar.

Foi então que ela começou a contar que, assim que começou a escrever para um “afilhado de guerra” logo teve mais quatro pedidos, ficando a ser madrinha de cinco, sem interesses de namoro envolvidos. Tinha-se sentido tão feliz e contente como ninguém imaginava, e logo convidou quatro suas amigas para serem também madrinhas de outros combatentes e pedindo aos afilhados para envolverem outros camaradas. Foi o que aconteceu.

Foi-me dizendo que as cinco amigas andavam sempre ansiosas esperando pelos tão esperados aerogramas azuis ou amarelos dos seus afilhados para saberem as boas notícias. Quando alguma amiga recebia, ou quando calhava receberem todas os aerogramas, eram lidos um dia na casa de cada uma, metidas num quarto em segredo, para os pais não descobrirem. Naquele tempo não era bem visto pelas famílias que as raparigas escrevessem para rapazes que não conheciam, como  era o caso.

Foi contando que no final da leitura dos aerogramas todas elas escreviam rapidamente, respondendo em conjunto a dar as notícias e novidades aos afilhados. E que no final se ajoelhavam todas com os aerogramas nas mãos, e rezavam viradas para o crucifixo que tinham comprado em conjunto e que guardavam religiosamente, o qual as acompanhava sempre para os quartos delas para a leitura e escrita para os afilhados de guerra.

E continuava a falar pelos cotovelos, mas eu reparava que as palavras lhe saiam do coração, o que cada vez me ia deixando mais emocionado, as minhas lágrimas a quererem explodir, o que eu a muito custo fui impedindo.

Foi quando chegou o momento que me atirou por terra, quando ela contou que uma amiga dela, do grupo das cinco, tinha recebido uma carta e, ao abrir a carta, vinha uma foto do afilhado deitado na cama do Hospital Militar de Luanda. Por trás da foto mandava a informação que tinham sofrido uma emboscada na zona da Pedra Verde, que tinha sido ferido numa perna mas que não era grave, que já tinha alta para regressar à enfermaria do seu Quartel e que, pior sorte tinham tido alguns camaradas seus que tinham tombado sem vida.

A minha amiga foi contando que tinham chegado a ir a pé ao Santuário de Fátima em peregrinação para pedir a Nossa Senhora para proteger os seus afilhados e todos os combatentes do ultramar e que, ainda nos dias de hoje, se sentem felizes por tudo o que então fizeram pelos combatentes.

E a senhora lá ia contando e chorando como as beiras, eu via naquelas lágrimas o sofrimento de todas as madrinhas de guerra, assim como as minhas. Ali, ao ouvir contar todas aquelas verdadeiras histórias, a serem lavadas com aquelas lágrimas que mais pareciam o puro sangue dos combatentes que por lá tombaram, fiquei ainda mais emocionado e o coração a querer saltar do meu peito.

Mais uma vez me convenci que estas, hoje senhoras já com certa idade, na altura raparigas, as Madrinhas de Guerra, foram e são tão combatentes como nós, os combatentes que andámos nos palcos da guerra, pois foram o escudo e o pára-raios de todos nós, era com elas que nós desabafávamos o que não podíamos desabafar com as nossas mães e pais.

Ao terminar a conversa e quando ia para se despedir de mim, a senhora apontou mais uma vez para o monumento aos Combatentes do Ultramar dizendo “Pois é, Manel, repara no sofrimento de que te safaste”.

Foi então que o meu coração não aguentou mais e eu explodi, abraçando-a com quanta força tinha dizendo, “Minha querida amiga, não sabia mas fica sabendo, eu sou um desses combatentes do ultramar, sou dos que passei por tudo o que me esteve a contar; minha querida amiga, só lhe quero dizer, se nós merecemos um monumento e muito mais, vocês queridas Madrinhas de Guerra também merecem um monumento e muito mais. Repare, minha amiga, aquele monumento que se encontra ali, também é vosso; vamos lá os dois dar um beijo naquela sagrada pedra, que é o Nosso e o Vosso Monumento”.

Lá fomos nós os dois chorando, abraçados, beijar o monumento aos combatentes do ultramar da minha linda vila de Monte Real. Era para mandar tirar uma foto no local, mas achei que não era o momento certo pois a emoção era muito forte para nós dois.

Tudo isto foi real e verdadeiro, aconteceu mesmo e ainda me sinto arrepiado enquanto escrevo.

Manuel Kambuta dos Dembos

1 comentário:

Anónimo disse...

Realmente amigo Manuel, acredito mesmo no papel muito importante que as madrinhas de guerra tiveram para com os seus afilhados. Assisti por vezes à distribuição do correio aos militares em África e também conheci madrinhas de guerra que falavam da sua preocupação pelo seus afilhados. Gostei de ler e bem o entendo.Um grande abraço para vós. Mª Arminda