UM INVENTÁRIO… MEIO INVENTADO!
Em pacata localidade do outro lado da
serra chegava à comarca de segunda classe o jovem Delegado do Procurador da
República.
Com apenas 27 anos de idade e 9 meses de
experiência anterior em comarca de 3ª.classe carregava mais interrogações e
dúvidas do que certezas e sólidas convicções.
No seu primeiro dia no Tribunal foi
interpelado por um homem de idade indefinida, de aspeto doentio, que certamente
informado de que ia chegar um novo magistrado não foi de modas nem se pôs na
fila para perguntar pelo seu processo.
- “Quando me chama vossa excelência a
declarações?”
O Delegado pediu-lhe que esperasse e
chamou o escrivão, para saber de que processo se tratava.
O Sr. Rodrigues, com muitos anos
de tarimba nas lides judiciais, disse-lhe que o individuo do corredor era o Sr.
Rafael, que não tinha nenhum processo pendente em Tribunal.
Sem nada que fazer, sem parentes
próximos e com uma doença do foro oncológico, era visita habitual do
Tribunal onde queria que por força corresse um inventário por morte de sua mãe.
Que já tinha morrido há dezenas de anos.
“O que ele quer é ter um processo”,
rematou o escrivão Sr. Rodrigues.
“Pois se não tem passará a ter”. Assim
decidiu o novo Delegado.
Convocados o Juiz e os funcionários da
secção, o Conservador do Registo Civil, para as certidões relativas ao estado
das pessoas, o Conservador do Registo Predial, para certificar os imóveis, e o
Notário, todos acordaram, com a prestimosa colaboração dos respetivos
funcionários, na instauração e no acompanhamento do processo de inventário facultativo,
a requerimento do Sr. Rafael, logo ali “nomeado” cabeça de casal.
Prestou
declarações, juntou certidões, apresentou a relação de bens, deslocou-se de
repartição em repartição. Interrogava com frequência o Delegado a fim de se
informar do estado dos “autos”, como aprendera e gostava de dizer.
Tinha (finalmente) um processo! Parecia
realizado e feliz.
A doença que o minava não parava de alastrar e um dia chegou a notícia do seu fim. Foi um alívio no Tribunal, que não
mais teria que o aturar!...
O seu desaparecimento não constituiu um
alívio.
De alguma forma com a sua morte,
todos deixaram de ter “o seu processo”.
Um processo simulado, é certo, feito de
documentos falsos. Mas com entrada dada, autuado e registado, como mandam as
regras. Um processo como os outros. O que reforça a gravidade das “infrações”
que comportava. O decurso do tempo determinou a sua destruição e, para os mais
puristas, fez prescrever os “crimes” que exuberantemente documentava. Aí, o
“processo” estivera ao serviço da justiça!...
Esta história de vida aconteceu e o
Delegado do Procurador da República desse tempo e dessa comarca de 2ª.classe de
uma pacata localidade do outro lado da serra chamava-se – e chama-se ainda hoje
- Álvaro Laborinho Lúcio.
Que desempenhou vários cargos na área da
Justiça. Foi diretor do Centro de Estudos Judiciários e vogal do Conselho
Superior de Magistratura. E Ministro da Justiça, bem como Ministro da República
para a Região Autónoma dos Açores.
Álvaro Laborinho Lúcio, que é atualmente
Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça na situação de jubilado, esteve
recentemente em terras de Cister a convite dos Rotários de Alcobaça. À sua
maneira falou longamente de um seu novo livro “Um Chamador”. Entre a apresentação
e o tempo de perguntas e respostas passaram cerca de três horas. Foi uma noite
de afectos preenchida com histórias de vida. De amor pelos outros e de bom
senso. Estivemos lá. Fica este registo em jeito de homenagem e agradecimento.
JERO
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