O mecânico acompanha-me enquanto faço a inspecção de 360º ao Fiat G-91
estacionado na placa, na BA12. Sinto a ansiedade habitual dos últimos voos.
Também não admira - quando sabemos que vamos encontrar fogo de anti-aérea e
possíveis Strela, é natural que fiquemos preocupados.
Como
tem vindo a ser habitual, a tensão dá-me voltas ao estômago enquanto continuo a
inspecção exterior ao avião. Parece que tenho vontade de vomitar mas nada sai.
Tento disfarçar, que o mecânico continua ao meu lado e ninguém gosta de dar
parte de fraco ao pé dos outros.
Mas
os antecedentes não ajudam muito... Já "fui ao charco" uma vez e não
gostei. E o problema é que matematicamente tenho as mesmas hipóteses que os
outros de ser abatido - não me parece lá muito justo! Só voltei à Guiné há
poucas semanas e a readaptação tem sido difícil; é muito penoso para mim
recordar o tempo que estive sozinho no mato, depois da minha ejecção, sempre na
iminência de ser "apanhado à mão", por isso é natural que esteja preocupado.
Aliás,
também os mecânicos andam preocupados. É grande a sua responsabilidade - o
avião tem que funcionar que nem um relógio, o armamento não pode falhar, a
Martin-Baker* tem que funcionar se tudo o resto correr mal - nenhum quer ser
responsável pela perda de um piloto.
Logo
hoje, que era o meu dia de folga! Bom, nesta bagunçada nada é garantido e temos
que ser adaptáveis às mudanças... Mas a Esquadra foi solicitada para uma série
de missões importantes que podem contribuir para diminuir o fluxo de pessoal e
material que se interna na Guiné vindos do exterior. Se resultar, poder-se-á reduzir
a intensidade das flagelações aos nossos aquartelamentos; este esforço já se
prolonga há dois dias e todos juntos não somos demais.
Neste momento sou o oficial mais antigo (um tenente!) a seguir ao Comandante de Esquadra, por isso, como oficial de operações (nome pomposo!) cabe-me a mim indicar os pilotos para as missões. Naturalmente, o meu nome tem que aparecer lá (o exemplo tem que começar por nós) e a folga, paciência!, fica para outro dia.
O
avião está OK, o armamento pronto, como normalmente - o pessoal da linha não
falha, como de costume - e eu dirijo-me para a escada para ocupar o meu lugar
no "cockpit" - controlo um último espasmo e enquanto subo a escada verifico,
penduradas nela, as diferentes cavilhas de segurança que o mecânico retirou.
Coloco
o capacete, o mecânico ajuda-me a colocar os cintos. Percorro com os olhos o "check-list"
para confirmar que fiz todos os procedimentos correctamente antes de pôr em
marcha. O chefe da formação, no avião ao meu lado, faz sinal com a mão para
pormos em marcha. Primo o botão do cartucho de arranque do motor, este começa a
rodar e estabiliza nas rotações normais. Executo os restantes procedimentos, acciono
a descida da "canopy"** e faço sinal ao mecânico para tirar os calços
das rodas.
Tudo
OK! Aumento as rotações do motor para sair do estacionamento e inicio a rolagem
do meu avião atrás do outro, fazendo antes um aceno de despedida ao mecânico
que me deu a saída.
Toda
a excitação acumulada anteriormente parece abandonar-me. Estou ali só, dentro
do avião, controlando os meus medos de modo a que não interfiram com o
cumprimento da missão. Temos de esquecer tudo e concentrarmo-nos totalmente no
voo que temos pela frente, vigiando o espaço à nossa volta, tentando detectar
alguma ameaça para o nosso ou para os outros aviões.
Finalmente
estamos no ar e dirigimo-nos para o alvo definido no "briefing" antes
do voo. Tudo corre normalmente e sinto uma estranha sensação de calma que
contrasta com o nervosismo anterior. Os "Tigres" da Esq. 121 estão no
ar para mais uma missão de rotina nos céus da Guiné...
Miguel
Pessoa
* Cadeira de ejecção do Fiat G-91 R4
**
Cobertura da cabina
Foto 1 de Miguel Pessoa
Fotos 2 e 3 de autor desconhecido, cedidas pelo Paulo Moreno
7 comentários:
"Os *tigres* da Esq.121 estäo no ar para mais uma missäo de rotina nos céus da Guiné".
Gostei do profissionalismo despretensioso da frase.
Como diziam os antigos romanos
"O carácter näo nasce conosco.
Forma-se! "
(Quanto à foto do Piloto,verifica-se que o equipamento de voo terá que ser hoje(!)ligeiramente...modificado).
Herr Överste, um grande abraco.
Uma boa descrição dos momentos que antecedem um voo.
Obrigado Miguel, por nos dares esses momentos tão importantes para compreendermos como tudo acontece.
Um abraço,
BS
Permitam-me realçar uma frase do texto do Miguel: " O exemplo tem que começar por nós". Esse foi também o meu princípio na Guiné, aliado ao lema da minha Companhia: " Et Pluribuns unum".
Esta leitura acordou os sentimentos que me assaltavam na preparação das saídas do meu aquartelamento.
Um abraço, Miguel.
Vasco A. R. da Gama
Mais um magnífico texto na 1.ª pessoa que nos transporta para o cenário relatado pelo Sr. Corn. Miguel Pessoa, este relato e a maneira como é feita a discrição, de quem já tinha tido a má experiência de ser traiçoeiramente abatido por um míssil strella, digo traiçoeiramente pois era uma arma desconhecida no terreno, ninguém contava com ela, e depois de ter feito várias perdas não havia uma solução viável para a combater, dai o receio de ir para o ar, vários foram os mecânicos
que viram sair um avião, mas não o viram regressar.
Em relação "O exemplo tem que começar por nós" recordo-me perfeitamente de um texto do Sr. Vasco da Gama, em que dizia, e por esse motivo do "exemplo" comer a mesma ração que era dada aos soldados, apesar de e como oficial poder ter outro trato.
É um privilégio para mim poder estar no v/ contacto.
O meu Obrigado.
Um Abraço.
Paulo Moreno
Caro Miguel
Gostei.
Gostei da pormenorização de como fizeste a aproximação ao aparelho.
Pode-se pensar que estavas a 'ganhar tempo' para retomares os céus da Guiné com renovada confiança.
Hoje, aqui, a esta distância e sem ser 'parte interveniente', mesmo assim, acho que não seria fácil, não seria de ânimo leve, que se voltaria 'ao local do crime'.
Muita coragem, muita força de vontade, certamente.
Abraço
Hélder Sousa
E assim descrito, eu voei contigo pelos céus da Guiné!
Um grande abraço
Joaquim
Miguel gostei bastante desta sua odisseia. Ponho-me na sua pele e sinto que difícil seria para mim voltar a voar, sabendo que poderia vir de novo outro maldito míssil atacar-me, mas o cumprimento do dever, fê-lo a si dar o exemplo e executar outra missão. É preciso ter muita fibra!.. Felizmente que hoje nos pode relatar este e outros acontecimentos. Um grande abraço amigo Miguel.
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