quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

P1325: UMA ENCOMENDA BEM APRECIADA

Mais uma história do Juvenal Amado, publicada em Março de 2013 no Blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" e agora recuperada, com a devida vénia ao autor e à Tabanca Grande.

AQUELAS POSTAS DE BACALHAU ERAM OURO!

O Caramba tinha recebido da terra uma encomenda. Enganaram-se os que pensaram que era uma coisa especial, que era o tesouro gastronómico alentejano. Na verdade a encomenda resumia-se a umas quantas postas de bacalhau salgado e seco, como era tradição cá na terra, em vez do liofilizado que recebíamos lá.

Aquilo para o Caramba era ouro puro e tratou de o guardar com mil cuidados. Começou logo a magicar como o iria fazer, sim porque aquilo não era um manjar qualquer, tinha que ter honras de iguaria fina.

Por mim achava que umas postas de bacalhau não mereciam tanta deferência, mas o Caramba era um homem que gostava das coisas da terra, que cultivava a sua ruralidade e que fazia questão de não esconder as suas origens. Contava ele que ainda moço ia com o pai para o negócio da compra e venda de fruta, com um naco de pão, umas azeitonas britadas, um dente de alho e uma posta de bacalhau demolhada, que depois passava pelas brasas feitas num intervalo do seu labor.

Eu, oriundo de operariado urbano que nem quintal tinha, apreciava quando ele falava da sopa de beldroegas, do licor de poejo, dos coentros, do gaspacho, as caldeiradas de peixe da barragem, da sopa de cação, enfim, coisas que eu não conhecia mas que quando regressei tive oportunidade de saborear nas inúmeras vezes que com ele privei.

Ele chegava a trazer do Alentejo as ervas aromáticas e mais o necessário para fazermos os petiscos em minha casa na Boavista de Alcobaça, para onde eu fui viver depois de casar. Visitava-me então amiúde quando vinha carregar fruta da região, que depois transportava para os mercados do baixo Alentejo e Algarve.

Porta de Armas de Galomaro

Mas voltemos ao “fiel amigo” que o pai lhe tinha mandado.

O destino do manjar foi uma pun..ta de bacalhau que ele preparou dentro de uma das terrinas de aço inox quem eram usadas no refeitório. Era o que se podia chamar uma grande tachada.

Nessa noite a partir das oito horas da noite, ele, eu e o Aljustrel estávamos de reforço à porta de armas no primeiro de cinco, que tínhamos apanhado por castigo - e foi mesmo ali que fizemos as honras ao dito.

Está claro que não comemos sozinhos; alguns camaradas que regressavam do Regala bem como um ou dois furriéis, a troco de um rodada de cerveja, também se associaram na terrina. Mais tarde até o Santos, que estava preso, ajudou a acabar com ela e de caminho ficou de reforço connosco até de manhã.

Na sua qualidade de preso, todo dia enfiando num pequeno cubículo no abrigo STM, onde mal cabia uma pequena mesa e dois beliches, ao Santos não lhe custou nada ficar de reforço por nós, que bem bebidos não nos aguentávamos com os olhos abertos. Quando começou a raiar o dia chamou-nos e foi-se enfiar na sua cela, onde se preparou para apanhar mais um dia naquilo que poderia chamar-se “frigideira”, tal era o calor dentro daquelas quatro paredes.

Por esperteza o Santos era soldado básico. Natural de Grijó, passava o dia às ordens do tenente Raposo, nem arma tinha distribuída. Não me lembro do que ele fez mas sei que levou uma porrada com prisão agravada pelo Comando-Chefe, passando assim duas vezes pelo encarceramento. Está claro que quem estava de serviço à porta de armas à noite lhe abria a porta para ele vir para o fresco, e por vezes, quando era levado à casa de banho, passava pela cantina para beber uma bem fresca. Tudo isto nas barbas do nosso comandante e mais oficiais do quadro, de onde podia haver problemas. Dos milicianos nós não tínhamos medo neste caso.


Fica aqui mais um apontamento onde as figuras centrais foram o nosso camarada João Caramba e o Santos dois amigos que já nos deixaram.

Voltando à figura do Caramba, uma das minhas passagens por sua casa, estava ele de convalescença de uma intervenção cirúrgica e por isso já com muitos dos problemas que a partir de certa altura o foram afligindo. Brincamos com a velhice que se ia apoderando de nós e à minha pergunta de como estava, respondeu-me, com um ar maroto, apontando para a televisão onde se passava uma cena de amor entre uma bonita mulher e um homem, assim com alguma filosofia e fino humor:

- “Ora, vamos indo não fazendo nada e para aqui estamos vendo o que outros estão fazendo…”

Dito isto, fez com a boca um trejeito trocista para que não houvesse dúvidas ao que se estava a referir.

Juvenal Amado

4 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Juvenal
Naqueles tempos, naqueles locais, as coisas mais simples, que nos pudessem transportar, pelo menos mentalmente, para junto da família, dos amigos, dos locais que nos eram familiares, eram tratadas com toda a reverência.

Essas postas de bacalhau serviram não só de alimento imediato como também fizeram a ligação emotiva que a época impunha.

Só não fiquei a saber se estava bom ou se se comeu só porque sim!

Hélder Sousa

Juvenal Amado disse...

Estava óptimo Hélder ainda me lembro , lol

Valdemar Silva disse...

Juvenal, muito interessante.
Pois, já nem me lembrava do bacalhau liofilizado ou castanho como também se chamava.
Havia um Restaurante (?) à entrada de Bafatá, quem vinha de Nova Lamego, que fazia bacalhau da metrópole com todos. Nesse Restaurante havia duas ementas com mais ou menos as mesmas coisas com uma diferença de uma delas referenciar "da Metrópole", com o bacalhau, frango, bife, batatas fritas, ovos, etc. evidentemente com preços muito mais caros que o da outra ementa com bacalhau liofilizado e os restantes produtos arranjados localmente.
Bons tempos, o mais que não seja por termos vinte e poucos anos.

Abraço, saúde e Bom Ano 2022
Valdemar Queiroz

Juvenal Amado disse...

Valdemar pois o 20 anos que só regressam na memória.

Um abraço e bom ano para todos os camaradas e suas familias