segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

P1319: COM CARACTERÍSTICAS MUITO PARTICULARES

               A MINHA VIAGEM PARA A GUINÉ

NO N/M “AMBRIZETE”

O nosso Amigo e Editor da “Karas”, da “Tabanca do Centro”, Miguel Pessoa, pediu-me colaboração com um texto para publicação. Entretanto, na procura de inspiração e de recordações, apareceu e li no Blogue “Luís Graça & Camaradas da Guiné” um conjunto de artigos e comentários sobre os navios que foram utilizados no transporte de tropas e de material e das memórias que isso concitavam. A acrescentar, também o Amigo e Editor da “Tabanca Grande”, Luís Graça, me desafiou a relembrar a minha viagem com as suas particularidades.

Deste modo, juntando “as pontas” e as vontades, aqui me prontifico a fazer isso, tanto mais que as datas relacionadas não andam longe. Também devo referir que alguns aspetos da viagem, principalmente das circunstâncias anteriores à mesma, já foram referidos num dos primeiros artigos que escrevi para o Blogue e a que dei o título de “O último adeus”.

Começando pelo princípio devo dizer que a minha viagem, em rendição individual, estava marcada para a manhã do dia 26 de Outubro de 1970 (e ainda é a que figura na caderneta militar). Ora bem, como se podem lembrar, nessa madrugada ocorreu o chamado atentado ao “Cunene” e nessa referida manhã, no Cais da Rocha, as dificuldades para os passageiros que deveriam tomar o transporte atribuído eram muitas. Não sei se por causa disso, não me recordo se foi ou não mencionado, a verdade é que o referido transporte, o N/M “Ambrizete” estava ancorado no meio do Tejo e para lá chegar isso fazia-se nas lanchas da “Sociedade Geral” que serviam de comunicação.

O “Ambrizete” era um cargueiro que dispunha de 6 cabinas duplas, pelo que levava 12 passageiros, sendo 6 militares das Transmissões (3 Furriéis TSF e 3 TPF), ocupando no conjunto 3 cabinas; uma mãe, que a memória me sussurra ser cabo-verdiana, com 3 filhos ocupando 2 cabinas; e a restante era ocupada por dois civis, um homem já maduro que ia de contrato para ir trabalhar para a Tecnil e um outro, mecânico de automóveis, que não sei como, mas arranjou maneira de ir para a Guiné para fugir à perseguição que a sua mulher e o padeiro lá da terra lhe moviam a contas de uma alegada infidelidade conjugal entre ele e a mulher do tal padeiro, tendo a bordo apenas a roupa que tinha vestida, pois parece que não teve tempo para mais....

Na hora da despedida no Cais, o pessoal da lancha comentou baixinho para nós militares, que “não era preciso tanta despedida pois não íamos partir hoje”.

Ao chegar ao barco fomos convidados a escolher as cabinas e fomos informados que, devido a vários problemas, como por exemplo uma má distribuição da carga que fazia o barco adornar (inclinar) cerca de 13 graus a bombordo (à esquerda, tomando como referência a proa do navio) e também com uma avaria num dos frigoríficos. Não sei a que se devia a “má distribuição da carga”, se por o barco ter eventualmente largado o cais à pressa, devido à tal ação de sabotagem, para se colocar no meio do rio, ou por terem realmente depositado no porão vários materiais não tendo em conta os seus diferentes pesos, sendo que a carga era de natureza diversa, desde géneros alimentares (alguns chegaram lá à Guiné já em menores condições por não se ter conseguido colocar o frigorífico em boas condições), até bombas para avião, segundo disseram.

Pouco tempo decorrido da chegada a bordo, o cargueiro apontou à foz do Tejo, fazendo crer a quem estava no Cais que era a partida, mas na realidade o que se fez foi andar o resto da manhã e boa parte da tarde a “fazer agulhas” ao largo da baía de Cascais, com vista a tentar melhorar a distribuição da carga. Ao fim da tarde regressou-se ao ponto de partida e como era 6ª feira o Comandante do navio disse que quem quisesse podia ficar a bordo mas quem quisesse sair e passar o fim-de-semana em casa o podia fazer, pois durante o sábado e domingo não ia haver saída, mas com a condição de se voltar na 2ª da manhã.

Aqui voltou a haver aspetos que normalmente não aconteceram com a maioria dos que embarcaram nos diversos navios e que foi, por exemplo, o transporte gratuito entre as margens do Tejo nas lanchas que levavam pessoal para Cacilhas e ligavam a Lisboa, facilidades que utilizei.

Os meus outros dois camaradas TSF foram a Setúbal, a casa do Nelson Batalha, pois por coincidência nesse fim de semana o F.C.Porto, clube da simpatia do Manuel Martinho, jogava lá com o Vitória local. Voltaram na 2ª feira, conforme aprazado e já não saíram, a não ser umas escapadas rápidas a Cacilhas nas tais lanchas. Eu aproveitei para ir a Vila Franca surpreender e assustar a minha mãe e quando na 2ª feira 29 voltei, disseram-me nos escritórios da SG que “podia voltar para casa, pois os trabalhos estavam demorados e o melhor era ir telefonando para saber quando seria”, coisa que fiz então diariamente até ao dia 3 de Novembro quando recebi a indicação de que “era hoje à noite, e tinha que apanhar, o mais tardar, a lancha das 22:00”.

Durante esses dias do intervalo de tempo fiz várias coisas, sendo que no tal dia 3 de Novembro fui ver um filme no “Tivoli”, com Sophia Loren e Marcello Mastroianni, com o título original em italiano “I girasoli” mas que foi intitulado em Portugal de “O Último Adeus” e que tratava da busca de uma jovem italiana pelo seu marido dado como desaparecido, quando integrado num batalhão italiano que participava na invasão da Rússia pelas tropas alemãs na 2ª Grande Guerra Mundial. Em dada altura do filme vê-se o protagonista, o Marcello Mastroianni, caminhando num campo gelado e encontra alguns corpos congelados de camaradas seus e quando tenta pegar num deles por um braço o mesmo parte-se como um pedaço de gelo. Nesta altura o filme interrompe-se para o intervalo e como já eram cerca das 17:00 horas, hora mais ou menos combinada com os escritórios da SG para o contacto diário da tarde, precipitei-me para o telefone do “foyer” e lá fiz a chamada, referindo com as cautelas necessárias para diminuir a identificação, mas sendo claro que se tratava “do militar que queria saber se a partida para a Guiné estava ou não prevista para hoje”. De lá disseram que sim, como referi no final do parágrafo anterior.

Não me apercebi que se tinha formado uma fila de pessoas que também queriam telefonar e quando me voltei deparei com vários olhares de comiseração e de quem estava a “olhar para um morto”, pois por esses tempos a palavra “Guiné” era sinónimo de complicações….

Acabado o cinema fui jantar com a então minha namorada, num pequeno restaurante próximo de Santa Apolónia, que ainda lá está e que tenho ideia de se chamar “O Farol”, a seguir ela foi apanhar o comboio e eu o transporte para o Cais, onde a lancha me levou ao “Ambrizete”; houve mudança de turno e lá seguiu rumo à Guiné, agora com “apenas” 7 graus de inclinação.

Os meus companheiros de viagem já estavam ambientados, já estavam no barco há muito tempo, mas eu tinha acabado de chegar, vinha de uma despedida, vinha de um filme dramático e não estava com muita disponibilidade para grandes brincadeiras, grandes alegrias e por isso isolei-me, encostado à amurada, a olhar de modo a absorver tudo o que via para poder depois fechar os olhos e rever, e pensar no que o “destino” me poderia reservar.

Nisto, sou surpreendido pela presença do tal homem da Tecnil que me vem pedir para fazer “uma oração de despedida e de pedido de bom acompanhamento para a viagem”, pois os “sacaninhas” dos meus camaradas TSF, que se encontravam no deck superior a gozar a cena, lhe tinham dito que eu era muito religioso e até tinha estado num Seminário…

Como me apercebi da tramoia não quis desiludir, nem tratar mal, o personagem, e lá o deixei contente e satisfeito, com a minha homilia, apesar de por esses tempos me encontrar militantemente afastado da Igreja.

Durante a viagem as refeições normais (geralmente muito boas) mereciam a companhia do Sr. Comandante do navio mas dada a falta de higiene do tal mecânico, que não tinha roupa para mudas, ele comentou haver um cheiro desagradável, o que fez com que se tivesse que “tomar medidas” e explorando a natural curiosidade do “nosso mecânico” houve quem o levasse a ver o “veio da hélice”, havendo então elementos da tripulação que aproveitaram para lhe proporcionar um banho de agulheta e depois, enquanto a roupa era lavada e posta a secar, houve que lhe emprestar alguma roupa interior, embora isso o obrigasse a ter as refeições no camarote.

A viagem em si mesma, ressalvando a tal inclinação a que nos habituámos depressa, correu bem. Tenho ideia que se navegou a 13 nós (não sei confirmar), que passámos por entre dois grupos das Ilhas Canárias, que aconteceu por várias vezes sermos presenteados com a companhia exibicionista de peixes-voadores e que durante a noite de 8 para 9 de Novembro ultrapassámos o “Carvalho Araújo” que seguia pachorrento com a sua “carga humana”, sendo que por isso chegámos a Bissau na manhã cedo do dia 9.

Ainda durante a viagem, por força do bom relacionamento e interação que se foi fazendo com a tripulação, numa das primeiras manhãs, aquando do que seria o pequeno almoço, perguntaram se não queríamos um “mata-bicho”. Pensando que se trataria de aguardente ou coisa assim, recusámos, mas lá nos explicaram que era uma refeição mais forte para o pessoal que saía de turno e que à hora do almoço estaria a descansar. Então venha de lá esse “mata-bicho”! Bem… recordo que o primeiro deles foi um “arroz à valenciana” bastante bom, o qual antecedeu então o café e o pão com manteiga habituais.  

Pois, sei que nesses aspetos fui bastante beneficiado e protegido pelos “deuses”, com uma viagem quase particular, com uma cabina sem luxos mas funcional e apenas para duas pessoas, com refeições condignas, com a amável companhia do Comandante e suas palavras de conforto, nada comparado com os relatos das miseráveis condições em que viajaram inúmeros militares, principalmente os que tiveram a desdita de ocupar os porões “adaptados” dos navios, mas tendo sido essa a minha realidade, é essa que relato.

A aproximação à Guiné, na penumbra da pré-alvorada, com a visão da vegetação mal definida, o bafo quente que de lá vinha, os sons abafados que, entretanto, também chegavam, ajudavam a criar uma aura de mistério e de apreensão. Depois o barco ficou ancorado ao largo (mais uma vez) deixando vago o cais acostável para o “Carvalho Araújo”, sendo que a passagem para terra se fez por meio daquelas espécies de pirogas, não sem que o Sr. Comandante se despedisse de todos e de cada um com simpatia e de modo a que o “Ambrizete” ficasse para sempre na memória.  

Hélder Sousa

Fur. Mil. Transmissões TSF

9 comentários:

Alberto Branquinho disse...


Helder, fiquei deslumbrado com a tua viagem para a Guiné!
Da próxima vez que nos encontrarmos, quero ouvir essa homilia rezada a bordo desse cruzeiro. (Não ando a fugir de ninguém... só do bicho).

Abraço
Allberto Branquinho

Hélder Valério disse...

Meu amigo Branquinho

Sobre a homilia posso dizer-te que, tal como escrevi, embora à época estivesse muito afastado das "coisas da Igreja", sempre tive alguma atenção às práticas, já que o meu avô materno era assim a modos que o "sacristão" lá da aldeia, era a pessoa que no intervalo entre as presença do pároco, que vinha do Cartaxo, tomava conta e velava e zelava pelas boas condições da Igreja. Além disso, o meu pai também foi seminarista no Seminário de Santarém, embora por falta de "vocação" só lá estivesse um ano.
Então, conhecendo a prática, já que tinha andado na catequese 3 anos, e sabendo (intuindo) o que o "homem da Tecnil" queria ouvir, não me foi difícil "elevar o pensamento a Deus e formular os pedidos que seriam mais que evidentes".

Relativamente à viagem propriamente dita, pois foi como relatei.
Antes dela, ocorreram muitas coisas que foram inéditas e de que a maior parte não teve possibilidade de "beneficiar".
Durante ela (a viagem...) tudo foi muito bom, o tempo, o mar, a alimentação, a vida a bordo sem incomodidades.

Com escrevi, tenho consciência de que, de um modo geral, fui um privilegiado durante o serviço militar, salvo a canalhice de que fui alvo e que me "premiou" com uma punição depois de 3 semanas de passar à "1ª classe de comportamento", voltando assim à inicial "2ª classe de comportamento", mas isso é outra história.

Ingressei em Santarém a 15 de Julho de 1969, na EPC, na 3ª incorporação desse ano, tendo isso ocorrido em plena época de exames e cerca de 2 meses e meio após integrar uma lista eleita para a Direção da Associação de Estudantes do IIL.
Apesar desse contratempo empenhei-me seriamente em aprender e participar esforçadamente na instrução militar. Pensava que os conhecimentos adquiridos poderiam vir a dar jeito no futuro. Afinal, os componentes dos exércitos não eram, em geral, mais do que "elementos do povo, em armas"!
E fiz isso tão bem (o empenhamento no adquirir conhecimentos e na aplicação militar) que no final fui convidado a passar para o COM, já que fui então um dos 3 melhores classificados, não me lembro se só do Pelotão, se do Esquadrão, ou de todo o conjunto de instrução.
Isso não sucedeu, não aceitei, porque entretanto fui contemplado com a especialidade de TSF (disseram que era muito boa mas, garanto, que na ocasião não tinha ideia clara do que seria), sendo que apenas eu e um outro instruendo saímos de Santarém com essa especialidade, no meio de tantos que corporizavam 3 Esquadrões de instrução.

Na Guiné, integrado no STM, tive um período de cerca de 25% do tempo da comissão passado no interior, mas com uma "tropa santa", já que quando em Piche, adstrito ao BCAV 2922, só dependia do comando dessa unidade em termos disciplinares, pois nem serviços fazia, apenas "tomar conta" do Posto de STM, da garantia do seu bom funcionamento e do desempenho dos subordinados.

Após isso, fui requisitado para o Centro de Escuta, para o que pretensiosamente também chamavam "guerra eletrónica" e aí tive igualmente a felicidade de, por força das tarefas que tinha de desempenhar, como por exemplo captar telex de agências noticiosas e ouvir e gravar rádios diversas, nunca ter ficado afastado do conhecimento do que se passava no mundo e no país.

Isto ainda podia ser mais alongado mas, o umbigo.... não deixa!

Hélder Sousa

JB disse...

Interessante sequência dos acontecimentos ligados à partida,menos clássica,para a Guiné.
Não menos a…Homilia!

Lamentavelmente creio não existir um único filme documental (por razões óbvias!) sobre as condições em que milhares de Soldados do Exército de Portugal realizaram as suas viagens marítimas para a Guiné.
Uma atitude displicente por parte dos responsáveis do Exército (e não será demais salientar…do Exército)que,não sendo sujeitos a tais condições degradantes em nada se preocupavam com possíveis melhorias das mesmas.
Pequenas melhorias,pelo menos aos mais básicos níveis sanitários.
No Niassa os Oficiais consumiam confortavelmente uma ementa de aperitivos,dois pratos peixe/carne,e sobremesa.
Enquanto a orquestra de bordo criava um fundo musical durante a refeição.
Ao mesmo tempo que nos porões,sobrepostos em beliches improvisados,os soldados escorregavam nas quantidades de vomitado que cobriam o solo do porão,enquanto o odor provocado pela falta de ventilação adequada era insuportável.
Os mais gravemente afectados pelo enjoo eram auxiliados por camaradas a subir as escadas íngremes,onde o vomitado também escorria,para sentados no solo do convés procurarem um pouco de ar fresco.
Para quem tivesse “olhos para ver”,as posteriores tão acaloradas discussões quanto à guerra militarmente perdida, para uns,politicamente, para outros,estava sim (e de ante-mão) condenada….humanamente!

Desde que nasci tenho pertencido aos que confortavelmente “jantam em salões” mas,ainda hoje,e já passou meio século, não consigo esquecer as condições degradantes daqueles jovens Soldados de Portugal…..no porão!

Um abraço do J.Belo

Alberto Branquinho disse...


Pois é, Helder,

Não tenhas dúvidas que, se tivesses passado para o COM, serias "operador de G3". Conheci dois casos.
Não. Tens é um umbigo muito crítico, pois que aquilo que, habitualmente, acontece é os umbigos empurrarem os seus proprietários para falarem muito de si mesmos, que, afinal, é o mesmo que falar dele (do próprio umbigo), situado mesmo (ou quase) a meio do corpo do escrevente. Basta lembrar a História da minha ida à guerra do Solnado. Mesmo que tenha sido uma guerra santa.

Gand'abraço
Alberto Branquinho



joaquim disse...

Belo texto Hélder!

A minha viagem no Niassa está quase a fazer 50 anos neste mês!

Em relação ao comentário do José Belo apenas dizer que na noite de Natal, passada a bordo do Niassa decidi ir ver o pessoal do meu Pelotão.
Vim de lá "derrotado" e mais não digo!

Abraços
Joaquim

JB disse...

Mas o importante de se não se DEIXAR ESQUECER é o facto de que os mesmos Soldados, tão degradantemente tratados quanto às mais básicas condições sanitárias e alimentares nos Destacamentos isolados nas matas da Guiné souberam sempre dar o melhor de si mesmos quando as condições da guerra tal exigiam.

J.Belo

JB disse...
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Alberto Branquinho disse...


Pois é, Amigo José Belo

Poucas vezes se fala ou escreve (cala-se!) o enxovalho que era a forma de transportar por via marítima soldados e cabos a caminho da guerra colonial. O público português não sabia e, agora, se se falar não quer saber.
Porões abaixo da linha de água, um cheiro entranhado que, mesmo aquando do embarque, já era insuportável. E como seria em viagens para Angola e Moçambique, já que para a Guiné eram só cinco dias? E como seria com mar revolto?
Quando dois soldados do meu pelotão me chamaram para ir ver, não consegui passar do meio da escada porque o cheiro era já tão intenso que não conseguia segurar o vómito. E navegámos sempre com mar-chão.
No regresso ninguém se queixou. Mesmo sendo gente do Minho e Douro Litoral só queriam pisar o chão... de Lisboa.

Abraço
Alberto Branquinho

JB disse...
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