Mais uma história do Juvenal Amado, publicada em Março de 2013 no Blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" e agora recuperada, com a devida vénia ao autor e à Tabanca Grande.
AQUELAS POSTAS DE BACALHAU ERAM OURO!
O Caramba tinha recebido da terra uma encomenda. Enganaram-se os que pensaram que era uma coisa especial, que era o tesouro gastronómico alentejano. Na verdade a encomenda resumia-se a umas quantas postas de bacalhau salgado e seco, como era tradição cá na terra, em vez do liofilizado que recebíamos lá.
Aquilo para o Caramba era ouro puro e tratou de o guardar com mil cuidados. Começou
logo a magicar como o iria fazer, sim porque aquilo não era um manjar qualquer,
tinha que ter honras de iguaria fina.
Por mim achava que
umas postas de bacalhau não mereciam tanta deferência, mas o Caramba era um
homem que gostava das coisas da terra, que cultivava a sua ruralidade e que
fazia questão de não esconder as suas origens. Contava ele que ainda moço ia
com o pai para o negócio da compra e venda de fruta, com um naco de pão, umas
azeitonas britadas, um dente de alho e uma posta de bacalhau demolhada, que
depois passava pelas brasas feitas num intervalo do seu labor.
Eu, oriundo de
operariado urbano que nem quintal tinha, apreciava quando ele falava da sopa de
beldroegas, do licor de poejo, dos coentros, do gaspacho, as caldeiradas de
peixe da barragem, da sopa de cação, enfim, coisas que eu não conhecia mas que
quando regressei tive oportunidade de saborear nas inúmeras vezes que com ele
privei.
Ele chegava a trazer
do Alentejo as ervas aromáticas e mais o necessário para fazermos os petiscos
em minha casa na Boavista de Alcobaça, para onde eu fui viver depois de casar.
Visitava-me então amiúde quando vinha carregar fruta da região, que depois
transportava para os mercados do baixo Alentejo e Algarve.
Porta de Armas de Galomaro
Mas voltemos ao “fiel
amigo” que o pai lhe tinha mandado.
O destino do manjar
foi uma pun..ta de bacalhau que ele preparou dentro de uma das terrinas de aço
inox quem eram usadas no refeitório. Era o que se podia chamar uma grande
tachada.
Nessa noite a partir
das oito horas da noite, ele, eu e o Aljustrel estávamos de reforço à porta de
armas no primeiro de cinco, que tínhamos apanhado por castigo - e foi mesmo ali
que fizemos as honras ao dito.
Está claro que não
comemos sozinhos; alguns camaradas que regressavam do Regala bem como um ou
dois furriéis, a troco de um rodada de cerveja, também se associaram na
terrina. Mais tarde até o Santos, que estava preso, ajudou a acabar com ela e
de caminho ficou de reforço connosco até de manhã.
Na sua qualidade de
preso, todo dia enfiando num pequeno cubículo no abrigo STM, onde mal cabia uma
pequena mesa e dois beliches, ao Santos não lhe custou nada ficar de reforço
por nós, que bem bebidos não nos aguentávamos com os olhos abertos. Quando
começou a raiar o dia chamou-nos e foi-se enfiar na sua cela, onde se preparou
para apanhar mais um dia naquilo que poderia chamar-se “frigideira”, tal era o
calor dentro daquelas quatro paredes.
Por esperteza o Santos era soldado básico. Natural de Grijó, passava o dia às ordens do tenente Raposo, nem arma tinha distribuída. Não me lembro do que ele fez mas sei que levou uma porrada com prisão agravada pelo Comando-Chefe, passando assim duas vezes pelo encarceramento. Está claro que quem estava de serviço à porta de armas à noite lhe abria a porta para ele vir para o fresco, e por vezes, quando era levado à casa de banho, passava pela cantina para beber uma bem fresca. Tudo isto nas barbas do nosso comandante e mais oficiais do quadro, de onde podia haver problemas. Dos milicianos nós não tínhamos medo neste caso.
Fica aqui mais um apontamento onde as figuras centrais foram o nosso camarada João Caramba e o Santos dois amigos que já nos deixaram.
Voltando à figura do
Caramba, uma das minhas passagens por sua casa, estava ele de convalescença de
uma intervenção cirúrgica e por isso já com muitos dos problemas que a partir de
certa altura o foram afligindo. Brincamos com a velhice que se ia apoderando de
nós e à minha pergunta de como estava, respondeu-me, com um ar maroto,
apontando para a televisão onde se passava uma cena de amor entre uma bonita
mulher e um homem, assim com alguma filosofia e fino humor:
- “Ora, vamos indo não
fazendo nada e para aqui estamos vendo o que outros estão fazendo…”
Dito isto, fez com a boca um trejeito trocista para que não houvesse dúvidas ao
que se estava a referir.
Juvenal Amado
4 comentários:
Caro Juvenal
Naqueles tempos, naqueles locais, as coisas mais simples, que nos pudessem transportar, pelo menos mentalmente, para junto da família, dos amigos, dos locais que nos eram familiares, eram tratadas com toda a reverência.
Essas postas de bacalhau serviram não só de alimento imediato como também fizeram a ligação emotiva que a época impunha.
Só não fiquei a saber se estava bom ou se se comeu só porque sim!
Hélder Sousa
Estava óptimo Hélder ainda me lembro , lol
Juvenal, muito interessante.
Pois, já nem me lembrava do bacalhau liofilizado ou castanho como também se chamava.
Havia um Restaurante (?) à entrada de Bafatá, quem vinha de Nova Lamego, que fazia bacalhau da metrópole com todos. Nesse Restaurante havia duas ementas com mais ou menos as mesmas coisas com uma diferença de uma delas referenciar "da Metrópole", com o bacalhau, frango, bife, batatas fritas, ovos, etc. evidentemente com preços muito mais caros que o da outra ementa com bacalhau liofilizado e os restantes produtos arranjados localmente.
Bons tempos, o mais que não seja por termos vinte e poucos anos.
Abraço, saúde e Bom Ano 2022
Valdemar Queiroz
Valdemar pois o 20 anos que só regressam na memória.
Um abraço e bom ano para todos os camaradas e suas familias
Enviar um comentário