quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

P1263: CENAS GRAVADAS NA NOSSA MEMÓRIA

O ÚLTIMO NATAL EM GALOMARO

Juvenal Amado
Estávamos verdadeiramente enfastiados naquela noite. O calor dentro do abrigo era sufocante. Todo o dia à chapa do sol transforma-o num autêntico forno à noite.
Aljustrel senta-se na cama com os pés pendurados e diz: - “Tenho ali uma garrafa de whisky que me está a estragar a mala toda”.
- “Não és homem nem és nada se não a fores buscar já” - disse eu, pouco convencido que o desafio resultasse.
Estávamos em Janeiro de 1974 e muitos dos meus camaradas já tinham feito a mala, convictos que a partida estava para breve. Tínhamos acabado de passar o terceiro Natal, facto que estava a mexer com a malta.
À luz dos petromaxes (em muitos locais), de camuflados, pratos e travessas de alumínio, assim se passavam os Natais em Galomaro e em quase todos os locais onde houvesse um aquartelamento. Os Comandos dos Batalhões e Companhias faziam questão em que a data fosse comemorada com bacalhau, batatas e rabanadas, que nem sempre estavam em todas as mesas de todos os destacamentos, mas cerveja, vinhos e uísque raramente faltavam.

Nesta mesa de Natal o único sorridente era o alferes (um periquito que, em rendição individual, tinha substituído o alferes Mota, morto pelo paludismo).

Aljustrel, acto contínuo, puxa a mala para cima da cama, abre-a, tira de lá uma Old Parr e diz: - “Vamos ter com o Ivo e bebemos lá a garrafa”.

E assim só em calções, atravessámos o quartel, tendo cuidado de passar por de trás da messe, pois o comandante podia ver-nos e chatear-nos por irmos meios nus. Seriam perto das 21 horas, já era de noite há muito tempo. Entrámos no abrigo do Pel Rec e lá estava o Ivo.

Bebemos a garrafa. Aliás, coisa que não era nada difícil naquele tempo… Já meio atordoados regressámos ao nosso abrigo pelo caminho mais curto, entre os abrigos e os edifícios que compunham os alojamentos dos oficiais e sargentos. Esse caminho embora mais curto, era cruzado por valas de escape, que davam acesso às valas de defesa, o que tornava o percurso cheio de armadilhas.

Lá chegámos ao nosso abrigo, seriam perto das 23 horas. Deitei-me meio zonzo. Ainda ouvi o pelotão de patrulha nocturna, no regresso ao quartel, proceder ao desarme da G3, tirando as balas das câmaras.

O alferes Lameiras comandava esse pelotão que regressava. O alferes entrou no quarto onde estava o tenente Matos e o alferes Orlando, que há já algum tempo não podia ficar sozinho. Encostou a G3 à parede, retirou o cinturão com os carregadores de munições bem como os porta-granadas e, como era costume, pendurou-o na própria espingarda.

O tenente, como estava pré estabelecido entre os oficiais, assim que chegou companhia para vigiar o camarada, saiu e recolheu ao seu quarto. O alferes Lameiras, pegou na toalha e dirigiu-se aos balneários para tomar banho.

O Alferes Orlando assim que se viu sozinho, levanta-se da cama, vai aos porta-granadas, retira uma defensiva, tira-lhe a cavilha, deita-se e lança a granada para debaixo da própria cama.

Mal tinha pegado no sono e um enorme estrondo ecoou. Saltei para a vala, mas como mais nada aconteceu, vi que não era ataque. Para o lado dos quartos dos graduados é que havia algum reboliço e não foi difícil adivinhar que algo de grave se estava a passar.

Estava um dos quartos totalmente esventrado, quase sem telhado, janelas e vários pequenos incêndios. No chão todo negro, quase irreconhecível no meio dos escombros, estava um corpo. Estava vivo.

O médico, mais enfermeiros, prestavam os primeiros socorros. Lascas de madeira, tinham-lhe dilacerado o corpo em especial as costas. Essas lascas eram da prancha de madeira, que era hábito pôr entre o colchão de arame e o de espuma, o que lhe acabou por salvar a vida.

Como era de esperar fomos afastados dali, mas também nada podíamos fazer a não ser estorvar.

A evacuação só se viria a processar já de dia, uma vez que os helis não operavam durante a noite. A evacuação veio às primeiras horas da manhã.

Viemos a saber que em Bissau o Alferes Orlando tinha sido internado no hospital militar, para tratamento das feridas - do corpo e da mente. Por milagre não corria perigo de vida, felizmente.

No dia do embarque do batalhão, lá estava ele ainda convalescente no cais, a despedir-se, com aquele sorriso de menino tímido que sempre lhe conheci. 
Ficou no cais a ver o barco fazer-se ao mar. Só viria a regressar mais tarde.

Muitos anos depois, soube que estava bem, que tinha ultrapassado aquele dia em que pensou resolver os seus problemas através daquela granada.

Nota do Juvenal Amado:


Todos nós quando embarcámos para a Guiné fomos informados de que a comissão não deveria ultrapassar os 18 meses. Facto que nunca se cumpriu e que, no nosso caso - se juntarmos o tempo de viagem – atingiu os 27 meses!
Os nomes dos intervenientes são forjados. Tive algum pudor em pôr os nomes verdadeiros, assim a estória poderá ser publicada como nosso direito de denunciar o mal que nos foi feito.
Para este camarada foi possivelmente demais o terceiro Natal!

<Fotos 2 e 3 do Juvenal Amado, que reproduzimos com a devida vénia>

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Olá Juvenal

Uma "história de Natal" um tanto dramática mas, pelo menos, teve um "final feliz", ou perto disso.
Claro que, como dizes, serve para ilustrar os ambientes que se viviam e para disso dar conhecimento a quem quiser saber.

Só não se percebe porque é que "o alferes Orlando, há já algum tempo não podia ficar sozinho". Pelo desenrolar da história deduz-se que se temia algum desfecho semelhante mas não está explicado.

Hélder Sousa

Juvenal Amado disse...

Sim era segredo dos graduados a que nos não tínhamos acesso. problemas em casa e a sua saúde . Uma maleita que nos atacou praticamente a todos com maior ou menor gravidade (falo da micose nos genitais) . A ele teve uma crise que limitou durante toda comissão a ponto de andar entrapado e todos os dias era assistido pelo enfermeiro. Eu que também sofri bastante com isso não imagino o sofrimento dele. Já agora a talho de foice o alferes piriquito sorridente era o Mário que já nos deixou
. Um abraço e boas festas

Anónimo disse...

Um Natal em que o interveniente escapou de aumentar a lista, dos que não voltaram sãos e salvos.
Foram muitas e variadas as marcas" que essas comissões, deixaram em todos e muito mais, quando injustamente ultrapassavam o período normal.
A nós, enfermeiras paraquedistas, nas épocas festivas preocupavam-nos muito mais, porque eram momentos escolhidos pelo inimigo, para atacarem alguns destacamentos. Para nós e pessoal navegante, (pilotos e especialistas) eram mais uns dias de alerta.
Um abraço.
M Arminda Santos