Com a devida vénia ao Blogue dos Especialistas da BA12 e à autora do texto, reproduzimos um escrito publicado há algum tempo naquele Blogue, em que a nossa camarada Enfermeira Paraquedista Maria Arminda Santos resume a sua história de vida até ao presente - uma vida preenchida e cheia de memórias inesquecíveis.
Muitos de nós já a conhecem de convívios da Tabanca do Centro em que esteve presente. Aqui podem ficar a saber mais um pouco do que foi a sua vida pessoal e profissional, embora haja que reconhecer a dificuldade de se poder sintetizar em poucas linhas uma experiência pessoal tão rica e variada...
A VIDA É OS DIAS QUE NOS LEMBRAMOS
Mª Arminda Santos |
Nasci em 1937, em Setúbal, a mais nova de seis irmãos, mas apenas três
sobreviveram para me acompanhar pela vida; o João (nascido vinte anos antes de
mim), a Ivone e a Gracinda. Não me recordo da minha mãe, que faleceu com febre
tifoide, tinha eu dois anos e meio. Nessa altura, a tia Maria do Rosário, sua
irmã, veio para nossa casa orientar as nossas vidas, acabando por se casar com
o meu pai e tornando-se uma verdadeira mãe. Faleceu quando eu tinha oito anos.
Depois, tive várias mães, a minha irmã Gracinda, a minha cunhada Laura,
vizinhas e empregadas. O meu pai trabalhava na Mobil Oil, fazia a distribuição
de combustíveis no Alentejo, permanecendo em casa apenas no fim de semana.
Habitávamos no Bonfim, zona verdejante da cidade, com palmeiras, plátanos,
mimosas e lodeiros, rodeada de quintas com abundantes pomares. Com os vizinhos
formávamos uma grande família. Nas noites de verão, os adultos ficavam à porta
a conversar, e nós a apanhar pirilampos que guardávamos em caixas de fósforos.
Passava os dias a brincar livremente no campo, à macaca, pião, eixo, trinta e
um, berlinde, e à bola, onde, à vez, era jogadora e massagista, uma
“maria-rapaz”, alegre e traquina. Um dia, um dos miúdos mandou-me uma coleção
de bandeirinhas dos países, uma forma de pedir namoro. Era o Álvaro, com quem
vim a casar.
Setúbal antiga |
Não havia infantários e, aos três anos, fiquei ao cuidado de uma mestra,
com quem aprendi a ler e fazer contas. Tive uma boa instrução; quando ingressei
na escola oficial fui diretamente para a segunda classe, e só não fiquei na
terceira por ser demasiado jovem. Concluí a escolaridade obrigatória aos nove
anos com distinção e o meu pai decidiu que eu não continuaria os estudos.
Achava-se próximo da reforma e planeou voltar à sua aldeia para tratar das
terras. Estava-me reservado acompanhá-lo, pelo que fiquei dedicada às tarefas
domésticas.
Em outubro de 1951, o meu pai foi internado no Hospital dos Capuchos, em
Lisboa, para ser operado a um tumor. Fui para casa da prima Gertrudes, que vivia
lá perto, e visitava-o diariamente para lhe levar melhores refeições. Na
véspera de ser operado chovia muito, razão que levou a minha prima a impedir-me
de o visitar, apesar da minha insistência. Faleceu nesse mesmo dia, 9 de
novembro, por erro médico durante a transfusão prévia à operação. O funeral
realizou-se a 14 de novembro, dia do meu 14.º aniversário. Foi um desgosto
enorme que permanece vivo na minha memória, tal a emoção com que o senti.
Por ser menor de idade, a empresa do meu pai enviou a nossa casa uma
assistente social, a Dra. Irene Aleixo. Por decisão unânime dos meus irmãos, o
valor da pensão a atribuir seria usado para eu voltar a estudar. O meu irmão
foi nomeado tutor e iniciou-se a procura de um colégio interno. No dia 2 de
fevereiro de 1952, Dia da Senhora das Candeias, entro no colégio da Congregação
das Irmãs de São Vicente de Paulo, em Lisboa. Chorei convulsivamente, depois de
o João partir. Fui confortada pelas Irmãs e apresentada às colegas. Rapidamente
fiz amigas.
Fui uma aluna aplicada, apesar de algumas diabruras que me valeram sérias
reprimendas. Concluí, no primeiro ano letivo, o 1.º e o 2.º anos, para espanto
de Irmãs e colegas. Era também uma desportista nata; jogava ténis, basquetebol,
patinava e era a capitã da equipa de voleibol nos torneios entre escolas.
Durante os anos que fiquei no colégio só vim a casa nas férias de Natal e
Páscoa e nas férias grandes. Passava os fins de semana com as Irmãs, que nos
levavam a visitar os pobres dos bairros próximos do colégio.
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Colégio e Escola de Enfermagem de São Vicente de Paulo Foto recente |
A existência do ensino de Enfermagem em Lisboa deve-se à Irmã Eugénia,
senhora brasileira, neta de portugueses, com grande visão e dinamismo que,
juntamente com o Prof. Francisco Gentil, impulsionou a criação da Escola de
Enfermagem de São Vicente de Paulo, que iniciou atividade a 14 de novembro de
1937 (data do meu nascimento).
Em outubro de 1955, iniciei a primeira etapa do meu grande sonho, ser
enfermeira, algo que vinha dos tempos de “massagista” e se acentuara nas
visitas ao meu pai, no hospital. Fiz o curso com todo o empenho e tive a grande
satisfação de ser uma das melhores alunas. Apresentei-me, em junho de 1958, na
Escola Artur Ravara para prestar provas de Estado, tendo passado com a
classificação de 18 valores (Muito Bom com distinção).
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Hospital de Santa Maria |
Nesse período já namorava o Álvaro, que, em 1959, partira para a Índia no
Serviço Militar Obrigatório. Regressou, em abril de 1961, no navio Niassa. Este
mesmo navio partiria logo depois para Angola, com um contingente de militares
mobilizado à pressa, após os ataques, um mês antes, por bandos armados com
catanas a populações indefesas. No Santa Maria, o pessoal médico e os
universitários andavam apreensivos com rumores de uma mobilização iminente.
Um dia por esta altura, a enfermeira Mascarenhas (Maria da Nazaré)
perguntou-me: — Ouve lá, Lopes Pereira, eras capaz de largar tudo, de um dia
para o outro, para ir para Angola tratar de feridos? — Respondi-lhe que sim,
pelo que continuou: — Não contes a ninguém porque é segredo, mas a Madre
Superiora da minha escola está a formar um grupo de onze enfermeiras para esse
fim. Até já fizemos exames médicos, mas uma chumbou, e eu, sabendo que reúnes
as condições exigidas, combinei com a Madre sondar a tua recetividade. —
Aceitei de imediato.
A Nazaré, colega do Santa Maria, tinha conhecimento de um episódio ocorrido
no meu segundo ano de curso, em 1957, quando comentei numa aula um filme
passado na II Guerra sobre uma enfermeira da Força Aérea Inglesa. Notando o meu
interesse, o professor referiu uma aluna, de outra escola de Enfermagem (Irmãs
Missionárias de Maria), que tinha brevê de pilotagem e paraquedismo e deu-me o
seu contacto. A aluna em questão era Isabel de Mello Rilvas (Isabelinha), a
quem liguei no próprio dia e que se voluntariou a visitar o colégio para dar
uma palestra sobre as suas experiências aéreas.
Em França, ela conhecera o grupo Socorristas do Ar, formado por médicas e
enfermeiras paraquedistas que assistiam feridos em locais de difícil acesso, e
ambicionou trazer este projeto para Portugal. Apresentou-o ao tenente-coronel
Kaúlza de Arriaga, de quem era amiga. A ideia foi considerada interessante, mas
inviável. Agora, os ataques em Angola tornavam aqueles planos inadiáveis.
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Primeiro Curso de Enfermeiras Paraquedistas |
A cerimónia das finalistas, a 8 de agosto, em que recebemos o brevê e a
boina verde (símbolos do orgulho dos paraquedistas), foi noticiada pela
imprensa escrita, rádio e televisão, que deram a conhecer “as seis Marias”;
éramos as primeiras mulheres nas Forças Armadas Portuguesas.
Ainda nesse mês, no dia 22, realizei a primeira missão em Angola,
acompanhada pela, também alferes, Maria Ivone. Tratava-se de testar a nossa
adaptação operacional e avaliar a aceitação de mulheres no meio militar. Foram
duas semanas muito intensas, em que participámos na operação aerotransportada
de militares na Serra de Canda. Voltei a Angola, em outubro, com a Zulmira (que
veio a ser madrinha da minha filha) e a Nazaré. Acompanhou-nos na viagem a
Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima, a quem elevei as minhas preces
para a vida que estava a iniciar. Para trás ficara uma vida estável, tranquila,
o ambiente de claustro das enfermarias hospitalares. A nossa prestação foi-se
ajustando às necessidades; assistimos militares, civis e até o inimigo.
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Evacuando feridos num DO-27 |
Foi-nos exigida grande capacidade de
adaptação, não só pela ausência de planeamento logístico para militares
mulheres, como pelo próprio clima e população que diferiam entre territórios.
Valeu-nos a amizade de colegas e civis que nos acolheram e apoiaram.
Prestes a completar dez anos em comissão contínua de serviço, já tenente,
passei voluntariamente à disponibilidade a 15 de dezembro de 1970. Em 25 de
janeiro, comecei a trabalhar em Setúbal, nos Serviços Médicosociais, com
horários mais compatíveis com a futura condição de casada do que os Serviços
Hospitalares, que preferia. Casei a 18 de abril e passei a morar no Bairro
Santos Nicolau, onde foi inaugurado, em agosto do ano seguinte, o Posto Médico
n.º 22, que integrei como Enfermeira-Chefe.
Em 1974, dá-se o 25 de Abril (a minha filha Ana tinha dois anos e o meu
filho João estava a dois meses de nascer), que trouxe a esperança de liberdade
e a possibilidade de cessarem as hostilidades no Ultramar. Passei por maus
momentos quando me recusei a aderir à (primeira) greve dos enfermeiros.
Apelidada de reacionária e fascista, sindicalistas e colegas quiseram o meu
despedimento. Insultada, quase agredida, valeram-me algumas pessoas do bairro,
a quem tinha ajudado em situações de necessidade.
Como a verdade e o reconhecimento vêm sempre ao de cima, fui depois nomeada
para vários cargos no âmbito da criação do Serviço Nacional de Saúde, que se
efetivou em 1979. Desde 1980 até 1 de maio de 1992, data em que me aposentei,
não mais voltei ao exercício profissional como enfermeira, apenas desempenhei
cargos técnicos e diretivos, o último como Vogal da Administração Regional dos
Serviços de Saúde do Distrito de Setúbal.
A Maria Arminda e a Isabelinha Rilvas numa foto recente |
Nestas quase três décadas, foi também necessário dedicar cuidados de saúde a familiares e amigos, e eu própria tive a minha dose de maleitas. Foi também tempo de comemorar: as conquistas académicas e profissionais dos filhos, o nascimento dos netos (Pedro, André, Filipe) e sobrinhos.
Continuo a ser uma
mulher elétrica, ocupada com a família, as muitas Associações, as aulas de
zumba e da Universidade Sénior, informada e atenta ao mundo, cabendo-me
ocasionalmente, por ter sido a primeira enfermeira paraquedista, a tarefa
honrosa de narrar como foi, para um grupo de 47 jovens mulheres, realizar uma
missão de “Paz em Tempo de Guerra”.
Maria Arminda Santos
Enfermeira Paraquedista
8 comentários:
Relato espectacular de uma grande senhora, gande mulher e grande enfermeira na paz e na guerra. Este texto deve ter pelo menos três anos dado que a autora diz no texto que nasceu em 1937 e logo no inicio do mesmo sublinha "que após completar 80 anos, recebi o convite para fazer este retrato escrito da minha vida".
Fantástica vida e que continue a gozar com saúde a sua merecida reforma.
Uma vida intensa de dedicação ao próximo, merece o meu respeito e admiração. Desejo-lhe longa vida e muitas felicidades.
Que linda história de vida.
Tenho o privilégio de conhecer esta Grande Senhora, que até tem familiares na minha Alcobaça.
Muita saúde e bora viver.
JERO
Caríssima e respeitada amiga e vizinha Maria Arminda
Li com muita atenção este breve relato de vida.
Recheada, preenchida, intensa, multifacetada.
Foram várias as situações difíceis pelas quais a Arminda passou mas, quem já consigo privou, ainda que por breves instantes, não pode deixar de admirar a serenidade que é aplicada a todos os gestos e a todas as conversas.
Um muito obrigado por fazer o favor de ser minha amiga.
Hélder Sousa
Minha querida amiga Arminda
tê-la connosco eleva-nos a um patamar de exigência de entrega que tem de ser digno da sua história de entrega aos outros, especialmente a nós, "soldados do chão", que tanto precisávamos de vós.
Juntar a isto uma vida cheia como a sua, com todas as dificuldades e alegrias de uma vida, é uma riqueza enorme para quantos são seus amigos.
E eu conto-me entre eles com muito orgulho.
Um beijo muito amigo do
Joaquim
Rerodução de uma mensagem de Raúl Castro:
"Excelente narrativa. Parabéns à D. Maria Arminda Santos
Abraço
Raul Castro"
Querida Arminda
Só uma mulher da sua estatura poderia ter uma história de vida com esta profundidade e humildade que faz de si um grande exemplo. Receba um abraço e o agradecimento pela amizade com que me honra.
Bom dia amigos.
Agradeço os amáveis comentários à minha publicação, que o Miguel Pessoa, tão gentilmente alindou e a quem também agradeço. Tenho tido aulas da Universidade Sénior de Setúbal, por via virtual, e eis a razão de só agora aqui ter voltado para vos agradecer.
O Carlos Pinheiro tem razão. Este escrito foi para a "Revista Faces de Eva" Estudo sobre as Mulheres da Universidade Nova de Lisboa, há três anos.
Aproveito a oportunidade e por este meio, para desejar a todos e para as vossas famílias, dentro destes desditosos condicionalismos, um Santo e Feliz Natal. Que o Novo Ano nos livre desta pandemia, que começa a ser insuportável.
Com um beijinho amigo.
Mª Arminda Santos
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