A CIDADE
DE BISSAU EM ‘68/’70
Carlos Pinheiro
A esta distância no tempo, recordar a cidade
de Bissau onde passei mais de 25 meses da minha vida, obrigatoriamente e sem
alternativa de escolha, não é fácil, mesmo assim é bom recordar Bissau, para
que a memória não esqueça e para que outros possam também recordar e
testemunhar.
Bissau era
uma cidade simpática onde havia um pouco de tudo e acima de tudo muita tropa,
muitos militares em movimento, a chegar, a partir e a estar. Não era uma grande
metrópole mas tinha infra-estruturas que uma cidade de província, na Metrópole
de então, não tinha, não podia ter e nem tinha que ter.
Tinha um Aeroporto em Bissalanca,
que se confundia de algum modo com a BA 12, já que a pista era a mesma. Aliás, o Boeing da TAP só lá ia uma ou duas vezes por semana, levar de
regresso combatentes que tinham vindo de férias, buscar outros em sentido
contrário e acima de tudo levar e trazer o correio, tão indispensável para o
apoio moral das tropas e especialmente dos seus familiares cá na santa
terrinha.
Na maior parte do tempo eram os FIAT G91, os T6 e os DO27, para além de outros meios aéreos, os únicos a utilizar as pistas quando eram lançadas operações onde o apoio aéreo tinha uma preponderância mais que evidente.
E, claro, também era dali que saíam os helicópteros, os Alouette III, para as Operações, mas acima de tudo para fazer as evacuações dos doentes e dos feridos.
Tinha também um porto de mar, que por acaso era no rio Geba onde, por vezes,
os barcos maiores, o Uíge ou o Niassa, não atracavam.
Mas barcos
como o Rita Maria, o Ana Mafalda, o Alfredo da Silva, o Manuel Alfredo, todos
da Sociedade Geral, da CUF, esses porque eram mais pequenos, atracavam. Também
o Carvalho Araújo, penso que dos Carregadores Açorianos, nos seus últimos
tempos de vida, também ali atracava. Mas era um porto com poucas condições.
Este último barco, porque tinha pouca autonomia, tinha que ir, na viagem de
ida, a S. Vicente, Cabo Verde, meter água e nafta; no regresso, era no Funchal
que atestava.
Tinha ainda outro
porto, este mais de pesca, o Pidjiguiti, tristemente célebre pelos massacres que
precederam a guerra da independência.
Mas tinha
o Palácio do Governador, a Associação Comercial, algumas casas
apalaçadas de arquitectura tipicamente colonial, um cinema (a UDIB), dois campos de futebol, o
campo da UDIB e o Estádio dos Cajueiros, à Ajuda. E tinha um comércio
florescente, especialmente dominado pelos libaneses, onde tudo se vendia desde
o alfinete ao camião, tudo importado, principalmente do Japão, mas também dos Estados
Unidos da América, da Inglaterra, da Escócia, da Itália, da Holanda, da
Checoslováquia, da França, etc., e naturalmente da Metrópole.
E Bissau
tinha algumas casas que toda a malta conhecia pois era lá que convivia, que
matava saudades e acima de tudo matava a fome e a sede.
Logo à saída
do QG havia o Santos, a que
simplesmente, mas com muito carinho, chamávamos o “Enfarta Brutos”, onde se
comia, talvez a maior febra de Bissau. Parecia que tinha as orelhas de fora do
prato, tal era a sua dimensão. Mas as batatas fritas a acompanhar também
mereciam respeito. Quanto à cerveja, ela era igual em todo o lado, desde que
estivesse bem fresca; isso às vezes conseguia-se e muita até era da Manutenção
Militar.
Havia o Solar do 10, casa mais pequena mas mais requintada, onde por vezes à noite se cantava o fado depois de uma jantarada ou ceia.
Tínhamos o Zé da Amura onde se comiam uns chispes que iam para lá enlatados não sei de onde, mas que, à falta de melhor, eram apreciados.
Tínhamos, na Praça Honório Barreto, o Internacional, o Portugal e o Chave de Ouro, tudo cafés/cervejarias, mas também onde se comiam umas febras ou uns bifes, quando havia.
Na Avenida
principal (a Av da República, que ía do porto ao Palácio do Governo) estava
localizado o Bento, café e
esplanada característica da cidade a que vulgarmente nós, os militares, chamávamos
de “5ª Rep.” (um “acrescento” às 4 Repartições do Quartel-General)...
Era ali, na 5ª
repartição, que quem chegava do mato se encontrava com os residentes, onde se
trocavam informações e onde, se dizia, que essas informações vadiavam ali dum
lado para o outro do conflito. Ao lado do Bento, mais para o interior, era a Bolola, onde esteve o Serviço de Material, depois
transferido para Brá, e onde era o Cemitério que ainda guarda os restos mortais
de muitos camaradas nossos.
Nessa avenida estavam talvez as maiores casas comerciais. Por exemplo a Casa Gouveia, da CUF, que vendia ali de tudo e que tudo comprava o que os naturais produziam, principalmente a mancarra (2), o Banco Nacional Ultramarino, o banco emissor da Província, o Cinema UDIB e ao lado uma boa gelataria. Mais acima, a Pastelaria, Padaria e Gelataria Império, assim baptizada por estar já na Praça do Império onde se situava o Palácio do Governo e a Associação Comercial.
A caminho de
Brá e da SACOR havia um local chamado Benfica onde havia um café com o mesmo nome e onde se
apanhavam os transportes para os vários quartéis daquela zona – o Hospital
Militar 241, o Batalhão de Engenharia 447, os Comandos, os Adidos e mais à
frente a BA 12 e o BCP 12 (estes dois em Bissalanca.
Mas havia
outros estabelecimentos dignos de recordação. A casa de fados Nazareno, mais tarde rebaptizada
de Chez Toi, a Meta com as suas pistas de automóveis eléctricos e, como novidade,
também apareceu naquela altura o Pelicano, café-restaurante
construído pelo Governo e explorado por privados, com uma belíssima vista sobre
o Geba e avenida marginal.
Na Avenida Arnaldo Shulz, que ligava a Estrada de Santa Luzia à tal SACOR, a caminho de Brá, sempre ao lado do Cupelão (ou Pilão), estava o Comando Chefe das Forças Armadas à esquerda de quem subia, um pouco mais abaixo, os Bombeiros Voluntários de Bissau num grande quartel nessa altura muito bem equipado, a Cruz Vermelha, estes do lado direito e até a sede local da PIDE, que nessa altura já se chamava DGS, também do lado direito mas já junto ao Largo do Colégio Militar.
Na Avenida Arnaldo Shulz, que ligava a Estrada de Santa Luzia à tal SACOR, a caminho de Brá, sempre ao lado do Cupelão (ou Pilão), estava o Comando Chefe das Forças Armadas à esquerda de quem subia, um pouco mais abaixo, os Bombeiros Voluntários de Bissau num grande quartel nessa altura muito bem equipado, a Cruz Vermelha, estes do lado direito e até a sede local da PIDE, que nessa altura já se chamava DGS, também do lado direito mas já junto ao Largo do Colégio Militar.
Era uma avenida nova, como se fosse uma circular urbana onde as boas vivendas também começaram a aparecer.
No princípio da Avenida que ia para Santa Luzia, antes de se chegar ao Hospital Civil, estava o Grande Hotel, nome pomposo do melhor estabelecimento hoteleiro da cidade. O resto era pensões, algumas de quinta escolha.
Mas o comércio de
Bissau não era constituído só por cafés, restaurantes e tascas. Havia de tudo.
E há nomes que não se esquecem. Para além da Casa Gouveia, o maior empório
daquele então Província Ultramarina, como então se dizia, a Casa Pintosinho, a Taufik Saad, a Costa
Pinheiro, e muitas outras vendiam de tudo, são nomes que ficaram para
sempre na memória.
Havia,
claro, várias casas de fotografia, como por exemplo a Agfa, perto da Amura. Estas casas
ganhavam muito dinheiro, na medida em que era raro o militar que não tivesse
comprado a sua Fujica, Pentax, Nicon, etc., a que davam muito uso.
Muitas casas vendiam roupa barata, nessa altura já confeccionada em Macau, especialmente aquelas camisas de meia manga, calças de ganga e sapatos leves.
Muitas casas vendiam roupa barata, nessa altura já confeccionada em Macau, especialmente aquelas camisas de meia manga, calças de ganga e sapatos leves.
Era assim Bissau naquela época…
Carlos Pinheiro
Torres Novas
Com a devida vénia ao autor e ao blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné",
de onde fomos rebuscar este texto, ali publicado há bastantes anos...
5 comentários:
Uma visão "colonialista" da Bissau de então. Nas imaginem o que poderia ser Bissau, e África, se os os malfadados colonialistas por lá tivessem ficado mais umas dezenas de anos.
Abraço,
António Graça de Abreu
Caro Carlos
Gostei de reler este teu roteiro por Bissau.
É uma pena que o nosso bem conhecido AGAbreu não consiga perder uma ocasião para lançar provocações e avacalhar o que outros escrevem.
Mas é assim, um pilriteiro dá pilritos....
Em relação ao teu relato devo dizer que ele não difere muito do que eu vi e até dei conta disso também num artigo para o Blogue referido e onde disse que achava que por essa ocasião, muito por força do movimento de militares é certo, Bissau sem se aproximar sequer da pujança de Luanda ou a então Lourenço Marques, era muito mais movimentada e com mais ofertas que a maior parte das localidades, cidades incluídas, donde os nossos militares tinham saído.
O "Solar do 10" tinha dois espaços. Um mais requintado, frequentado principalmente pelos oficiais da Marinha (mas não só) e um outro mais espaçoso, em jeito de pátio, com capacidade para mais pessoas.
No "Zé d'Amura" também petisquei muitas vezes as saborosas iscas.
A gelataria que referes na Avenida ficava na parte de baixo da Pensão da D. Berta.
Na Praça do Império, na leitaria com esse nome, costumava comer sandes de queijo da serra, para me transportar mentalmente para a Metrópole e não referiste o "Ronda" no lado esquerdo quando se descia a caminho da 5ª Rep.
Um local onde me refugiava para ler e/ou escrever ou estudar era no "Oásis".
Enfim, isso já foi "noutras vidas" mas é bom recordar.
Abraço
Hélder Sousa
Carlos Pinheiro
A cidade de Bissau como tu a descreves, que eu também a conheci assim, foi-se fazendo a partir do início da guerra. Gostava de a ter visitado em 1963.
Quase todas as actividades económicas da cidade surgiram para consumo dos milhares de militares lá fixados e em trânsito.
A grande maioria dos restaurantes e pensões pertenciam a militares e passavam de dono conforme a duração do tempo de comissão. Na maior parte das pensões as camas, colchões e lençóis eram os mesmos dos quarteis e até faltavam as fronhas como na tropa.
No meio daquilo tudo, muitíssima pouca gente da metrópole por lá ficava a residir depois de acabar a comissão.
Provavelmente, se a guerra durasse mais uns anos teriam que ser fabricados abrigos à prova de misseis strela, edifícios com telhados reforçados e janelas protegidas, e preparativos para um 'aguenta que a Guiné é nossa' e uma debandada igual à dos americanos em Saigão no fim da guerra do Vietname.
Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Um senhor comentador a este interessante texto sobre Bissau pergunta: O que teria sido se....?
Com tal tipo de pergunta cai-se no que nos meios jurídicos Norte Americanos se denomina de“infantilidade analítica “.
“O que teria sido se....?” aplicado a toda e qualquer situação,seja ela pessoal ou colectiva (histórica no exemplo referido),é um verdadeiro exercício de retórica que pode nos levar a qualquer resultado ao mesmo tempo que não nos leva a...resultado algum!
“O que teria sido se...?” nos tivessem oferecido a oportunidade de mais uma meia dúzia de anos coloniais?
Para realizarmos nessa meia dúzia de anos o que não conseguimos,ou quisemos,fazer em seiscentos anos coloniais na Guiné?
A meia dúzia de comerciantes “terceiro mundistas” somados a alguns “restaurantes” que mais não eram do que o que eram, uns“ nightclubs “ de fazer sonhar o aldeão mais empedernido do nosso querido Portugal?
“O que teria sido se...?” a herança cultural ,e social que por lá criámos tivesse sido antes em educação de profissionais especializados em Administração,Medicina,Engenharia,Economia,Indústria,Agricultura e Pesca?
Neocolonialismos posteriores?
Esta é uma oportunidade só dada aos que disponham de economias que o permitam.
Enfim,”o que teria sido se...” não tivéssemos sido obrigados a nos reagrupar nas mais resguardadas sedes de Batalhões ao mesmo tempo que íamos abandonando estrategicamente Madina do Boe,Gandembel,Guileje,e outros Destacamentos de menor renome.
“O que teria sido se...?” o mesmo Iluminismo saloio dos geniais políticos de então ,que levou à tragédia de Goa,se viesse a repetir na Guiné?
Marcelo Caetano referiu esta possibilidade.
Os Chefes Militares da época também o fizeram.
“O que teria sido se...?”
Abraço do J.Belo
J Belo. Gostei da tua apreciação.
Mas no que respeita a comercianetes, para além da Casa Gouveia que era da CUF e não é preciso dizer mais nada, o meu parente, o Costa Pinheiro, que foi para a Guiné na década de 50, era infortador da Toyota, desde o Camião, às carrinhas, aos automóveis até ao Crown, ele importava tudo de todo o lado. Do japão, para aalém da Totota, era a Sony, a JVC Nivico, a Suzuky, os relógios Seiko, a Fufica e tanta caoisa mais que me passam, De Inglaterra vinham os produtos da Max Factor, de Itália os Tapetes da Issing Trading, da Checolosváuia as louças da Prago Export depois do SKoda, dos EUA os discos da Ausónia, de Portagal a Colgate Palmolive e a BIC... e tanta coisa mais que eu ajudei lá a escriturar nas minhas horas vagas. Cheguei a ajudar a
montar camiões que vinham em Kits, lá no quintal do prédio que era na Arnaldo Shulz, quse em frente à Pide. Era casado com uma francesa, não tinha filhos e queria que eu viesse à Metropole, casasse e fosse para lá. Construiu duas vivendas sendo que uma seria para mim e outra para um sobrinho que ele tinha. Mas nem eu nem o sobrinho aaceitámos o desafio. Isto para dizer que havia casas grandes que não pareciam tanto, mas eram. Um abraço.
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