quarta-feira, 17 de junho de 2020

P1237: COM A MÃO NA MASSA (?)...


Esta história ocorreu durante a Especialidade (2.º Ciclo do CSM) e tem o mérito de, para além do anedótico da situação, revelar a capacidade que havia de se gerarem laços de solidariedade e de resistência, já prenunciadores da disposição que se ia aos poucos alastrando, e também aborda (ao de leve) um outro aspecto que já foi também aflorado num outro texto do Blogue, que é a situação de alguns elementos profissionais irem vivendo e alimentando esquemas remuneratórios alternativos resultando tal, muitas vezes, em prejuízo do pessoal comum.
Hélder Sousa

APRENDER A SER SOLIDÁRIO:
UM SALAME DE CHOCOLATE  ESPECIAL

Helder Valério Sousa
A história que quero partilhar convosco teve lugar durante o período do meu 2.º Ciclo de Instrução do CSM o qual, por ser da Especialidade TSF, foi efectuado no então Batalhão de Telegrafistas (BT) à Graça, em Lisboa, decorrendo do final de Setembro de 1969 a Janeiro de 1970.

Fui testemunha directa e parte interessada e envolvida do acontecimento que a seguir relato, que se passou na segunda quinzena de Outubro de 1969 (em plena época de eleições, lembram-se?) e relembro-o agora principalmente para salientar e reforçar a ideia que a tomada de consciência de cada vez mais elementos da nossa juventude questionando a guerra de África foi sendo feita de modo progressivo e com base em situações com que se viam confrontados, de que o episódio que se segue é um exemplo.

O Mário Miguel Rodrigues e o Fernando Cruz
em Nampula
Os dois personagens que acabaram por ser as vítimas desta história foram o Fernando Cruz e o Mário Miguel Rodrigues que foram Fur Mil Transmissões TSF em Nampula, Moçambique. 

Ambos homens do norte, o Cruz do Porto e o Mário de Barcelos, que foram músicos nos seus tempos de juventude (o Cruz confessou-me que se encontra on de road again), são dois bons amigos, que também seguem os Blogues e que, por via disso, conversando sobre tempos passados, relembraram este episódio que agora passo então a relatar.

O que é que o poderá tornar interessante?

Antes do mais porque, estando eu já em Bissau, portanto em 1971 ou 1972, não sei agora precisar, acabei ouvindo a história, deturpada, como é natural, pois é sabido que quem conta um conto aumenta um ponto e quem a relatava não sabia que eu tinha sido contemporâneo e que por tal poderia fazer correcções ao seu relato, mas também não me dei ao trabalho de o desdizer, já que tenho a ideia de que estava muito mais bem composta, romanceada e bastante lisonjeira para toda a rapaziada do Curso, transformados em verdadeiros heróis, contra as arbitrariedades e desmandos da hierarquia e seus lacaios.

Além disso nem sempre havia disposição, mesmo estando em Bissau, longe do Vietnam, como o Luís Graça escreveu naquela carta dirigida ao seu amigo e que já foi publicada no Blogue, não havia disposição, dizia eu, para grandes discussões. Assim deixei passar as deturpações naquela época e já nem me lembrava da história não fosse o Blogue e os amigos que o lêem.

Depois, porque para lá do caricato da situação, podemos encontrar muitas coisas que devem merecer reflexão e até, porque não, discussão sobre o que se perdeu ou não desde esses tempos, como sejam a solidariedade, o espírito de grupo, a unidade contra situações opressoras, bem assim como relembrar os tais desmandos que ocorriam muitas vezes em nosso prejuízo e muitas mais em benefício dos prevaricadores.

O caso em questão aconteceu, porque já vinha sendo hábito desaparecerem coisas das nossas mesas junto às camas e também dos nossos armários, sendo a vítima principal o Mário Miguel Rodrigues que tinha por norma comprar umas bolachas de chocolate que vinham em caixa metálica de formato rectangular. Andávamos todos aborrecidos com a situação, que ocorria por norma durante a nossa permanência nas aulas, num edifício distante da caserna, e as desconfianças iam, naturalmente, para quem fazia a faxina ou a supervisionava.

Deste modo, tiveram uma ideia para apanhar o ladrãozeco e resolveram passar aos actos. Mas vou deixar o Cruz relembrar os factos. Escreveu-me ele o seguinte:

“…quanto ao incidente na Graça, em Lisboa, as bolachas eram roubadas do armário metálico e eu, numa hora de inspiração intestinal, substitui as bolachas na caixa por um apropriado excremento e coloquei a mesma na parte superior e exterior do armário. Ainda mais fácil do que quando as guardava dentro dele e ao mesmo tempo evitava algum odor menos agradável que ficasse no interior. Mas foi tiro e queda. Não me lembro da marca das bolachas mas eram boas com certeza. Sei que a caixa era rectangular e do trabalho complicado que foi acertar na dita sem danificar a mesma. Obra de arte! (hoje talvez a pudesse expor em Serralves!!! ) Bem...

Nós fomos para as aulas e nessa mesma manhã perto da hora do rancho o Sargento A quis saber quem tinha colocado a caixa em cima do armário. Claro que na altura ninguém se acusou e só eu e o Mário Miguel sabíamos do facto e fomos disfarçando como podíamos.


O tipo (acho que era um Cabo RD) levantou a tampa e, sem ver o conteúdo, pois já era hábito sacar as bolachas, meteu a mão e... sujou os dedinhos...

Chamou o Sargento, alegou que tinha ido lá porque cheirava mal, que andava a ver se a camarata tinha sido limpa e que nunca tinha roubado bolachas etc., etc. O Sargento leva a novidade ao Capitão. 

O Capitão, de que neste momento não sei o nome, quando mais tarde nos inquiriu, quis saber quem foi, começou com um ar muito sério, riu, gozou com o assunto, que nunca tinha tido um caso semelhante, de tal forma que cheguei a pensar que estava safo. Perante a pressão do Sargento A - que era um cara de pau - acabámos por levar 3 dias de detenção por autoridade do Comandante Ca FT/BT (Companhia Formação Transmissões/Batalhão Telegrafistas) em 31 Outubro 1969 “por haver introduzido dejectos na camarata infringindo os n.ºs 4 e 9 do Art.º 4 do RDM”.

Esta brincadeira fez com que ficasse de faxina às latrinas pelo menos durante uma semana. Ainda hoje me lembro bem de lavar aqueles poleiros e os azulejos com ácido de baterias (o detergente da época para as pôr a brilhar) e admiro-me como alguns gajos têm tão fraca pontaria, mesmo sendo ele cego... E o buraco não era tão pequeno assim...! Acho que o Miguel apanhou castigo igual.

O Capitão deu uma descasca no RD, acreditou que as bolachas estavam a ser repetidamente roubadas mas, perante os factos e falta de provas de roubos anteriores, só eu e o Miguel nos lixámos. O Cabo ficou conhecido pelo Cabo da merda...

Mas nós só nos acusámos como autores materiais e cúmplices do sucedido na aproximação do fim-de-semana, porque havia os camaradas casados, o Reis e o Marques, que queriam muito ir a casa e enquanto não aparecessem os infractores não havia fim-de-semana para ninguém, ficavam todos no quartel a fazer serviços. 

Não me lembro bem quanto tempo durou a nossa resistência (eu e o Miguel discutimos a situação várias vezes até chegarmos a uma decisão), mas perante o quadro que se apresentava e num espírito de camaradagem assumimos a autoria e o fim-de-semana foi radioso para todos... menos para nós.

Levei tudo na maior. Afinal três dias passam depressa. E ainda nos divertimos com o truque de deixar cair as moedas no muro do Quartel que era contornado pelo passeio exterior e pela abertura na vedação ficar a ver as pessoas na parte de fora a procurar no chão pelas moedas que achavam tinham deixado cair! Por vezes não controlávamos o riso e lá vinha palavrão como moeda de troca.

Só o toque a detidos a horas inesperadas e a lenga-lenga que tínhamos de dizer ao Oficial de Dia... “apresenta-se o Soldado Miliciano n.º 18489568 que se encontra detido... blá, blá, blá...” não era música para os meus ouvidos nem a letra era agradável. 

O estar detido não impediu que fosse várias vezes comer qualquer coisa (o bitoque lisboeta) tomar café e beber uns copos na tasca que ficava mesmo em frente da porta de armas. Os Sargentos que estavam na porta normalmente eram compreensivos e os Oficiais eram milicianos e nós não íamos fugir. Ser TSF era outra coisa!...”

Desta história o que eu quero ressaltar são, essencialmente, duas coisas:

- A solidariedade (cumplicidade) que se conseguiu gerar entre nós, um grupo de jovens que só se conheciam há apenas 5 semanas, que, eventualmente, teriam as suas rivalidades, pois faziam-lhes crer que a posição relativa numa lista de classificação podia ser motivo para uma não mobilização.


De facto isso aconteceu para os 2 primeiros classificados que eram os 2 que eram casados na altura, lá os conseguimos colocar aí) e que aguentaram sem vacilar, sem bufar, todas as pressões para que houvesse denúncia dos delinquentes;

- A situação de relativa (chamemos-lhe assim…) corrupção, com o Sargento A a gerir os serviços a matar (dizia-se) e portanto com os seus homens de mão sempre prontos para o que fosse preciso e protegidos quanto bastasse, com o tal Cabo RD em serviço permanente e que obviamente mereceu todo o empenho do A em sua defesa junto do Capitão.


Perante os factos e com a impossibilidade de provar que tinha havido roubos anteriormente e que tinham sido efectuados pelo mesmo faxineiro, o Capitão não tinha outra alternativa, face aos regulamentos, senão aplicar a tal porrada.

E a vida continuou, nós mais fortes e solidários e em plena época de eleições, as eleições de 1969!
Um abraço!
Hélder Sousa
Fur Mil Trms TSF



Com a devida vénia ao Blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné", 
de onde repescámos este texto, ali publicado há muuuitos anos...

4 comentários:

Anónimo disse...

Uma pergunta feita com a ingenuidade de um habitante do extremo do extremo Norte Europeu rodeado de renas e...ursos.

O material que saiu das urnas eleitorais em 1969
seria o mesmo que foi colocado na caixa das bolachas?

Um,como sempre,mui respeitoso abraço do
J.Belo

Carlos Pinheiro disse...

Grande cena. Essa dos homens de mão, que "matavam" serviços era prática corrente nessa guerra. Eu,estive poucos dias no BT depois de ter feito a especialidade no RTm no Porto, mas fiquei a pertencer à Companhia RE - Radiognometria e Escuta mesmo quando passei a fazer serviço no QG da 2ª Rm até ser mobilizado para a Guiné, para um Batalhão que estava para vir embora. Nem me cheguei a apresentar nesse tal Batalhão. Mas o BP era uma unidade porreira... como as outras.
Um abraço
Carlos Pinheiro

Hélder Valério disse...

Meus caros amigos e camaradas da Guiné

Acho que esta história merece uns comentários/correcções mas, antes disso, vou tentar satisfazer a curiosidade, inteiramente legítima, do JB (José Belo para os conhecedores).

Não posso dizer que o "material" tenha sido exactamente o mesmo. Poder-se-à pensar que, na essência, assim foi mas (há sempre um mas...), se se atentar que dessas "eleições" resultou o aparecimento da chamada "ala liberal" e isso, não resolvendo nada em concreto, veio criar alguma fricção no regime, talvez se consiga vislumbrar alguma diferença. Daí não se poder dizer, com rigor, que "a massa foi a mesma".

Agora em relação a esta história.
Procurei relatá-la com a pretensão de lhe dar vários ângulos de observação e também vários "materiais" para se discutir mais e melhor as nossas vivências nesses tempos.
Mas, na prática, saiu um texto longo, pouco propício (agora diz-se "amigável") a leituras, já que a preguiça campeia.
Nestes tempos em que "ler é uma seca", em que é mais moda "tuitar" ou "amandar bocas" no Face, esta história podia ser assim:
"Em tempos houve num Quartel em Lisboa uns rapazes que estavam na tropa, que era obrigatória.
Durante algum tempo repararam que desapareciam algumas coisas, especialmente bolachas de chocolate, enquanto estavam fora da camarata em formação.
Fartos disso, dois deles, os mais prejudicados, resolveram tentar "apanhar" o abusador e para tal decidiram encher uma caixa com um cagalhão produzido a preceito e para o efeito.
Nesse dia o prevaricador foi "às bolachas" e teve a desagradável surpresa de sujar as mãozinhas marotas.
Foi fazer queixa ao seu superior hierárquico e "contratador de serviços a matar", o 1º Sargento "Afonso" que foi queixar-se ao Capitão.
Foram então todos pressionados a delatar o autor, ou autores, da "obra" mas nada conseguiram pois naquele tempo imperava uma coisa estranha, chamada solidariedade e firmeza de princípios.
Ao fim de algum tempo os autores decidiram, por vontade própria, divulgar a autoria e por via disso foram castigados com detenção no Quartel e serviços internos de limpeza às latrinas.
Correu tudo bem.
O episódio foi correndo e o autor dos roubos, um 1º Cabo RD, acabou cognominado por "cabo da merda", coisa que se manteve por algum tempo e fama."

E pronto, acabou a história.

O que eu gostava mesmo era de se poder perceber que foram casos destes que foram forjando a vontade de se opor a arbitrariedades.
Que a solidariedade foi decisiva para que se mantivesse a firmeza de propósitos.
Que nos quartéis os "mancebos" iam passando mas que haviam "donos" que acabavam por dominar a vida interna, já que tinham, aparentemente, "lugar cativo".
E outras coisas mais.

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Muito grato pelo esclarecimento quanto ao conseguir-se “vislumbrar alguma diferença “ quanto ao “ material” referido.
Um clima tão extremado como o do Círculo Polar Árctico acaba sempre por criar entre os indígenas estes tipos de generalizações... demasiado simples.
Será um bom exemplo quanto aos extremismos por aqui tão envolventes o facto de estar a escrever este comentário às cinco da manhã, hora a que sou sempre obrigado a enfrentar “intemperismos” vários para contar as patas das minhas renas,devidi-las por 4, e verificar se todas estão presentes em mais uma alvorada.
O infalível método alentejano por aqui muito generalizado.
Enfim....”De vitória em vitória até a derrota final!”
Sempre!

Um grande abraço do J.Belo