Em memória do nosso camarigo António Lúcio Vieira,
um poema por ele escrito sobre a sua terra, Alcanena.
RUA DA MEMÓRIA
da quinta das altas faias
dos mistérios das grutas
nos Olhos d’Água
dos poeirentos trilhos de aventura
nas terras dos Arneiros
o meu mundo era então apenas
nos tímidos dias de acordar
a singular rua onde nasci
e onde o sossego das horas
ecoava entorpecente pelas tardes
o meu pai montava altivo
uma Norton vermelha
de másculo motor
em cujo dorso voei aventuras
e de onde se libertavam odores
que ainda não esqueci
ao fim da tarde escancarava-se
rangente a larga porta da rua
com postigo de vidraças
e a moto vermelha entrava
levada pela mão cruzava a sala
grande
seguia pelo corredor
até se deter em discreto canto na
imensa sala da lareira
junto à varanda das flores
por onde se filtrava a luz da tarde
não havia outro local onde
guardá-la
e aquele espaço de forno e lareira
chão de soalho e cimento
era afinal quase meia casa
na salinha de costura
a avó Antónia suspendia o passajar
que a hora do jantar era já breve
e deslizava até à rústica bancada
junto ao forno onde no Natal
nasciam as negras broas com sabor a
festas
lá fora a pequena rua
calçada de seixo castanho
ia então escurecendo
quando os restos de luz desmaiada
escorriam agonizantes
no alpendre da ti’Ludovina
um pouco abaixo
a noite chegava mais tarde
quando o sol se derramava
por detrás da vivenda com jardim
debruçada sobre os longos degraus
pequena quase envergonhada e
discreta
a minha casa escondia-se no patamar
entre os dois lances da larga
escadaria
e toda a encantada rua era calçada
em seixos que brilhavam com a chuva
arredondados polidos e castanhos
subia-se por ela ao Outeiro
e por ali se descia rumo à ladeira
da fonte
ou à praça à Parreira à Varandinha
e ao miradouro à boca das Ladeiras
ou à praça à Parreira à Varandinha
e ao miradouro à boca das Ladeiras
ao fundo dos degraus junto à
padaria
e frente ao ladino alfaiate
no pequeno e fundo rés-do-chão
da “menina” Henriqueta
longe ainda dos tempos da escola
rasguei deslumbrado horizontes
e parti à descoberta das primeiras
letras
que não mais me dariam tréguas
numa estreita serventia sem saída
logo acima dos degraus de cima
recolhia o meu avô António em
acanhado e escuro palheiro
com cheiro a esterco a fava seca e
a feno
a burra branca malhada que
resignada e pachorrenta me levava à
horta e à fazenda
para as bandas do Peral
nas tardes de colher o sol
e soltar no regato barcos de papel
precursores das mil viagens
de um incurável vadiar
era porém pelos santos de verão
que a rua despertava e gritava vida
a Inês juntava braçados de alecrim
no cimo da rua incandescia-se a
fogueira
onde se queimavam risos e
alcachofras
noite dentro pulava-se o braseiro
a gaita de beiços do Fura-Palha
enchia de modas aquele recanto do
Outeiro
vinha gente de outras ruas
debicar broas e fritos
e beber os prazeres da noite
espargiam-se os corpos
de fumos e de aromas
dos arbustos do campo
e a música e o perfume silvestre
ungiam a rua invadiam as casas
e seguiam pelas travessas tortuosas
ao encontro das sombras nas esquinas
já só as paredes recordam
a velha escola da menina ”Requeta”
e os fatos por medida do mestre
Louro
mudaram-se as pessoas
secou a hera na parede do Polaco
e ninguém por lá agora lembra
a burra malhada do avô António
no patamar de seixo
as paredes do número onze
que em distante Janeiro me viram
chegar
tombaram vencidas
num monte de escombros
restou-lhe de pé um rosto amarelo
e uma outra porta de postigos
debruada com vasos de flores
do saudoso tempo
partiram os rostos e as vozes
e daquele povo que a rua acolheu
já ninguém lá mora
sem dó levaram os seixos
brilhantes em dias de chuva
e vieram automóveis
violar a castidade da minha rua
é assim
tudo envelhece e se transforma
olham-se agora outros rostos
e até as ruas como a minha
sofrem incúrias e vexames
que as ruas têm alma e corpo
e adoecem e morrem
quando os homens querem
a minha rua de brincar
que o menino infante sonhava assim
para sempre
não é agora mais que um espaço
maculado e raso de saudades
o resto de um passado
do pequeno sonhador
que bem cedo perdeu a inocência
a minha Rua da Cova
bem podia chamar-se agora
sei lá rua do Berço ou rua dos
Sonhos
da Utopia da Saudade talvez da
Inocência
ou apenas Rua da Memória
António Lúcio Vieira
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