Do nosso camarada Carlos Pinheiro recebemos a triste notícia do falecimento do António Lúcio Vieira, um companheiro que nos habituámos a ver nos nossos convívios, de que infelizmente estava arredado há já algum tempo por motivos de saúde.
Refere-nos o Carlos:
Refere-nos o Carlos:
"Faleceu ontem, 04 de Junho de 2020, o nosso Camarigo e Grã-Tabanqueiro António Lúcio Coutinho Vieira.
Foi para mim um dia muito difícil e não tive condições para alinhavar umas palavras em sua homenagem,
Tenho imensos trabalhos que ele ao longo dos anos foi partilhando comigo, sendo que muitos deles são inéditos e nunca publicados.
Apesar do dia ser triste, até porque não se sabe ainda quando é o funeral e em que condições, vasculhando os seus trabalhos, encontrei o único que ele escreveu sobre a Guiné, mas em conto que um dia terá compilado para aliviar os figados e as preocupações da vida de um combatente. É um aconto, anedótico, mas é interessante até porque revela mais uma vez a sua forma correcta de escrever bem.
Se o Miguel ou o Carlos Vinhal, ou os dois, entenderem por bem publicar este conto em homenagem à memória do nosso amigo, acho que fazem uma boa acção. Se entenderem de outra forma, tambem compreenderei. Mas se assim for, envio, em alternativa, um poema sobre a sua, e minha, terra Alcanena.
Carlos Pinheiro"
O texto acima referido pelo Carlos já foi publicado neste Blogue - Post 709, em 20 de Outubro de 2015. Mas vamos reproduzi-lo novamente, bem como o poema sobre Alcanena, agora enviado pelo Carlos. Uma singela homenagem em memória do nosso camarada António Lúcio Vieira.
Os editores
SUBMARINO À VISTA!
Lúcio Vieira |
Até
no desenrolar dos dramas mais pungentes emergem, com alguma frequência,
pequenos oásis de balsâmica voluptuosidade, preciosas gotas de água, que se
libertam das nuvens da vida e nos refrescam o escaldante quotidiano, pautado
pelas dores que sempre resultam das tragédias.
Também no seio dos conflitos armados desabrocham, por vezes, essas pequenas e decisivas pérolas, que nos ajudam a refazer o debilitado estado de espírito e nos criam uma reserva de revigorante resistência aos sucessivos assaltos de uma sorte mais madrasta do que a madrasta da Cinderela.
Chega. Nada melhor do que contarmos, sem mais delongas, o insólito episódio, ocorrido algures nas margens de um caudaloso rio africano e tendo como cenário um diminuto cais, junto às pré-históricas instalações de um pequeno destacamento militar, algures nas entranhas da Guiné, em meados da longínqua década de 1960.
Também no seio dos conflitos armados desabrocham, por vezes, essas pequenas e decisivas pérolas, que nos ajudam a refazer o debilitado estado de espírito e nos criam uma reserva de revigorante resistência aos sucessivos assaltos de uma sorte mais madrasta do que a madrasta da Cinderela.
Chega. Nada melhor do que contarmos, sem mais delongas, o insólito episódio, ocorrido algures nas margens de um caudaloso rio africano e tendo como cenário um diminuto cais, junto às pré-históricas instalações de um pequeno destacamento militar, algures nas entranhas da Guiné, em meados da longínqua década de 1960.
Manhã
cedo – pouco passaria das sete e meia – de um dia já a aquecer e a prometer
mais uma escaldante jornada, em tudo igual às que habitualmente pautavam
aquele, quase esquecido, reduto de uma reduzida unidade de Engenharia. A
capital não distava muitas léguas e o local, quase inacessível por terra,
alcançado apenas por tosca e estreita estrada, era classificado, à época, como
um reduto seguro, pouco susceptível de se apresentar como alvo de ataques
inimigos.
Atracada,
uma tosca jangada, de motor assustadoramente periclitante – na ausência de uma
mais sofisticada LDM da marinha - aguardava a chegada de uma qualquer coluna de
veículos em trânsito, que ali necessitasse efectuar a travessia do largo curso
de água. Pelo espaço em redor, após um reconfortante pequeno-almoço, os rapazes
desentorpeciam as pernas, puxavam umas fumaças nos cigarros americanos,
trazidos de Bissau e preparavam-se para mais um dia monótono e arrastado, igual
aos restantes dias da monótona e arrastada comissão de serviço.
Uma
pasmaceira, aquele restar por ali, entre as refeições, umas partidas de sueca,
umas mornas e coladeiras na rádio, umas revistas com gajas nuas, as sessões de
anedotas, os aerogramas para a Maria, algumas fotografias e, quando calhava,
três ou quatro viaturas, para enfiar na jangada e transportar para a margem
contrária.
Perdiam-se os olhos na imensidão do rio, pela
cinzenta mancha de bolanha, que quase cercava as pequenas barracas, forradas a
chapa de zinco, que o destacamento habitava; pelo renque de árvores –
bissilões, na sua maioria – que ornavam a estrada na margem norte do rio, a
dezenas de metros de distância, do outro lado onde os combates se iam tornando,
cada vez com maior intensidade, um acontecimento diário.
Mais
a sul, por entre os restos de neblina que se elevavam da bolanha, os olhos
ainda distinguiam a enorme mancha verde-escura do tarrafo que, da margem virada
a poente, se alongava até perder de vista, para as bandas do mar. Dois ou três,
dos homens do destacamento, ocupavam-se entretanto, junto ao cais, na recolha
das armadilhas, deixadas no rio na noite anterior. Havia sempre peixe que
optava por não dormir e o que buscava o engodo, nos engenhos de rede; habitualmente dava para uma refeição à pequena guarnição do destacamento.
De
pé, encostado à tosca viga de palmeira-dendém, num dos cantos do alpendre do
polivalente refeitório-secretaria e sala de convívio, o alferes que comandava o
destacamento observava, a espaços, a paisagem em redor, por vezes de binóculo
em punho, com o olhar atento e perscrutador, que se exige à suprema
responsabilidade dos lideres, a quem compete zelar pelas vidas dos homens sob o
seu comando e dos haveres, que o estado português confiara à sua guarda.
Pese
embora o facto de, por aquelas bandas, jamais ter havido notícia de presença
inimiga, o homem sabia que não podia baixar a guarda. Quando menos se espera… E
recordava, amiúde, os episódios lidos e relidos, sobre guerras distantes ou
passadas, nos quais se dava conta das surtidas traiçoeiras, dos audaciosos
golpes furtivos e das mil e uma artimanhas, que o génio dos grandes cabos de
guerra sempre souberam engendrar, para colher o inimigo de surpresa. E também
da importância estratégica de destacadas zonas do globo, locais cirurgicamente
nevrálgicos para o rumo dos conflitos.
Assim,
aquele perdido posto militar, encravado entre a bolanha e o largo rio, bem
podia ser – quem sabe - o seu estratégico rochedo de Gibraltar, ou algo
semelhante. Por isso o nosso alferes não baixava a guarda. Cônscio da
importância de uma observação constante e minuciosa, o homem queimava as
pestanas, observando metro por metro, litro por litro, as margens e o leito do
rio, que na sua frente se abriam. Com ele, ficasse o inimigo a saber, não
contassem para menosprezar os perigos, muito menos para se entregar ao desleixo
da rotina, que a experiência lhe dizia ser sempre má conselheira.
Um
homem, enfim, ciente da sua responsabilidade e da transcendência da missão que
até ali o levara; àquele pasmado e frustrante longe de tudo, perdido entre
nenhures, onde, habitualmente, o mais emocionante, do arrastado quotidiano, era
a passagem, no seio das colunas militares, de uma ou outra bajuda, à boleia. No
seio, foi o que atrás se escreveu, porque nos ditos das moçoilas, rijinhos e
ali ao léu, vulgarmente designados por “mama firmada”, já a rapaziada ia,
despudoradamente, e sempre que o ensejo se proporcionava, aquecendo as
manápulas, naquele tão cativante, quanto emotivo e patriótico, exercício de
acção psicossocial.
Por
entre a onda de espuma que a sua passagem levantava, erguia-se sobre ele, na
vertical e a cerca de um metro acima da água, hirto e misterioso, um outro
objecto, igualmente redondo e escuro, a fazer lembrar um vulgar tubo de
canalização. “Diabo, se aquilo não parece um submarino…”, cogitava o intrigado
graduado, de cenho franzido e sentidos alerta. Voltou a mirar o estranho
objecto que sulcava as águas, bem no meio da corrente, a uns bons cem metros da
margem.
Atarantados,
os rapazes corriam, desordenadamente, para o interior dos barracões, em busca
das G3. Pelo caminho, um ou outro, de mente menos confusa, ia-se deitando a
matutar que ideia seria aquela de enfrentar um submarino com umas reles
espingardas automáticas, mais umas pobres granadas, que tanta falta faziam para
as radicais pescarias do peixe mais graúdo. Mas pronto, o alferes é que tinha
os livros; por aquelas bandas, ainda era quem mandava na guerra. Entrincheirado
com a jangada, o destemido comandante da guarnição abria fogo de rajada sobre o
“submersível inimigo”.
Só
podia ser inimigo, já que a pelintra marinha de guerra nacional ainda não
conseguira orçamento para tais luxos. Porém, o PAIGC ainda menos. Era pois,
seguramente, um vaso de guerra de leste, da União Soviética, que todos sabiam
estar de panelinha com os movimentos guerrilheiros. “Fogo, fogo nele!”, gritava
o homem, qual Rommel no deserto, qual Napoleão antes da debandada em Waterloo,
qual Nuno Álvares em Aljubarrota ou, mais adequadamente, qual Mouzinho em
Chaimite. As balas – apenas as dele, adiante-se – tracejavam as águas,
levantavam cogumelos de espuma, enquanto por ali, deitados no chão, em posição
de fogo, os homens se entreolhavam, de expressões idiotas, sem entender
patavina da situação.
“Aquilo é um submarino! É ou não é, malta?”, interrogava
ele, aos brados, num esforço de autoconvencimento. “É, é, meu alferes! Vê-se
bem…”, respondiam os homens, confusos e sem coragem para contrariar o agitado
superior. “Fogo nele! Afundem os gajos!” Relutantes, os subalternos lá iam
disparando uns tiros dispersos, que aquilo de estar ali ao desvario a atirar
para o boneco, não lhes cabia lá muito na cachimónia.
O
homem já se via - mais do que numa qualquer e banal entrega de medalhosas
distinções, no Terreiro do Paço - nos próprios salões do palácio de Belém,
altivo, impante, solene, distinto, em farda de gala, na presença das mais altas
figuras da nação. E depois – oh, subida glória! – recebendo, das mãos do
venerando chefe de estado, uma qualquer comenda, das várias com que o patrono
das ordens honoríficas habitualmente ornamenta o pescoço e o ego dos nossos
mais distintos eleitos. Depois, como corolário, talvez o nome numa rua da sua
vila natal, quiçá de vilas e cidades de norte a sul do país, e a inevitável
promoção por distinção que, unanimemente, as altas chefias forenses não deixariam
de lhe proporcionar.
Que
subida honra, que glória, que página, nos anais onde se canta a imortalidade
dos heróis. Caramba! Não é todos os dias – nem, porventura, em todas as
guerras – que se abate, sem remissão, ou se aprisiona, um submarino inimigo,
recheado de uma tripulação amedrontada e rendida à heroicidade de meia dúzia de
bravos militares portugueses. De Engenharia. Ainda por cima, homens da
Engenharia!
Toda
a pequena guarnição estava, pois, prestes a protagonizar um feito único nos
anais da história militar lusíada. Uma epopeia que contariam aos filhos e
netos, os quais, orgulhosos do apelido e do sangue herdados, haveriam de se
rever nela por incontáveis gerações. “Atirem, não o deixem escapar!”, e os
rapazes, mais para evitar reprimendas do que para confrontar a ameaça
navegante, lá iam despejando carregadores, para aquele intruso flutuante que,
oriundo por ventura dos confins soviéticos, ali lhes calhou em sorte, por certo
numa missão de solidária “mãozinha” ao inimigo. Uma, duas rajadas. O arrojado
alferes não descansava. Depois, granada na mão, cavilha arrancada com um gesto
largo e decidido e o lançamento do engenho para bem longe, nas águas do rio.
À
boca pequena comentava-se: “O nosso alferes não ‘tá bom da cabeça”. Então
“aquilo” estava a ir ali a mais de cem metros de distância… quem é que o
alferes pensava que era: “campeão do lançamento do martelo, ou quê?”
Entretanto, mesmo ali frente ao cais, com um repentino remoinhar das águas, o
“vaso de guerra inimigo” inverteu o “leme” a estibordo e parecia querer rumar a
montante, de onde havia pouco surgira.
“Está
com medo, rapazes: ele está com medo. Vai voltar para trás! Fogo, não o deixem
fugir!” E as armas voltaram a troar, rasgando de novo a quietude da manhã. E
que manhã! Ciente agora que o matreiro submersível tentava escapar, o homem
lembrou-se que, no reduzido espaço que servia de paiol, repousava a um canto
uma metralhadora ligeira. Lá estava, havia muito, para o que desse e viesse. “A
Dreyse, tragam a Dreyse!”.
Lesto,
o cabo e um soldado ergueram-se, entreolharam-se por momentos e partiram numa
corrida, desaparecendo no interior das instalações. Quando voltaram, de
metralhadora em punho e uma braçada de carregadores a caírem dos braços,
deixaram a arma nas mãos decididas do alferes e aprestaram-se para o municiar.
Da
ponta da jangada, já sobre as águas, a Dreyse iniciou então o ritmado e
mortífero concerto. As balas sulcavam as águas e atingiam certeiramente a
misteriosa “embarcação”, ante o eufórico frenesim que agitava o bravo oficial.
Fosse por acção das balas, ou por capricho da corrente do rio, o manhoso
“submarino” inverteu de novo a rota e voltou a navegar para jusante, rumando,
tranquila e suavemente, para a foz. Ficava já fora do alcance do fogo lançado
da margem e parecia ir perder-se para lá da curva frente ao bosque de
palmeiras, na viagem que o levaria ao oceano.
As
armas calaram-se. Uma densa e negra nuvem formava-se agora, nos olhos e na
mente do ofegante comandante do destacamento de Engenharia, aquartelado naquela
perdida margem de rio. As honrarias, as comendas, os 5 jantares e discursos e
as ruas com o seu nome esfumavam-se assim, mais depressa do que o fumo que se
evadira dos canos das armas. Oh, glória tão efémera e vã! Oh, história tão
ingrata, que assim lhe iria olvidar o nome. Que dia aquele, de tanto fervor
patriótico e de tanta alma guerreira, transformados, ingloriamente, na mais
redundante e decepcionante manobra militar, alguma vez encetada em terras da
Guiné.
Os
deuses, os tais do Olimpo, deviam mesmo estar loucos. Oh, como os reveses
enchem, tanta vez, as guerras de infortúnio. Ia assim o homem cismando,
tentando refazer-se dos amargos de boca, resultantes da frustrante acometida.
Acalmara-se um pouco. Acendeu um cigarro e encaminhou-se, cabisbaixo e de cenho
franzido, para o recato das instalações. Necessitava de um revigorante whisky,
para encarrilar as ideias.
No
exterior, ainda aturdidos, os homens olhavam-se, acendiam igualmente cigarros
e, entre o encarrilar de ideias e a sequente procura do revigorante whisky,
quedaram-se, por momentos, a matutar, que raio de mosca teria mordido ao
alferes, para desatar a ver submarinos e a despejar quilos de munições, num
pobre e inofensivo tronco de bissilão que, inadvertidamente, entendeu
entregar-se aos prazeres da navegação no dia errado, no rio errado e na hora
errada.
O
perturbado alferes, esse entretanto e enquanto via esvaírem-se os sonhos de
glória e imortalidade, de olhar lançado ao alto e pensamento embargado pela
emoção, justificava a si próprio o desaire, citando – como, de resto fica bem
em situações tão dramaticamente solenes, como aquela – as palavras do poeta:
“malhas que o Império tece…” Perdão; tecia.
Em
rodapé, aqui - como preito de homenagem ao avisado bom senso - se regista o
alívio da restante guarnição, pelo facto de, na balburdia gerada pelo fragor da
insólita “peleja”, o inefável e confuso alferes nunca se ter lembrado de, via
rádio, pedir o apoio dos T-6 da Força Aérea, ou dos patrulheiros da Marinha.
Valeu esse lapso porque, para ridículo, já tinham de sobra para contar…
Lúcio Vieira
Ex-Furriel
Miliciano do
BCAV 790 /
CCAV 788
Guiné
1965/1967.
1 comentário:
O Lucio Vieira, mesmo na geurra sabia brincar com as palavras...
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