A CAMINHO DE BURUNTUMA
Juvenal Amado |
Após a morte de Amílcar Cabral a guerra tornou-se
tecnicamente e estrategicamente mais definida. O ataque constante aos
destacamentos, com o objectivo de ocupar posições, tornou-se mais que evidente.
O tempo da guerrilha que emboscava, flagelava e retirava, embora não fosse
menos perigosa, fazia já parte de um passado recente. Muito bem armada e
enquadrada militarmente, a tropa do PAIGC estava a levar-nos para um beco sem
saída e a nossa derrota, já não era uma miragem.
Na cantina tinham sido afixados cartazes com imagens de
aviões MIG 17. O tempo de total domínio do ar pela nossa Força Aérea tinha terminado
há já algum tempo. Os guerrilheiros, equipados com mísseis, tinham abatido já
alguns dos nossos meios aéreos.
Assim os cartazes seriam para que nós identificássemos os
aparelhos de fabrico soviético, caso fossemos atacados. Por outras palavras,
serviam para que fugíssemos mais depressa, pois meios de defesa contra este
tipo de ataque, não me consta que o Exército Português os tivesse, para
disponibilizar aos combatentes.
As ordens para cavar uma vala em cruz no meio da parada,
que por sua vez foi cheia com garrafas de gasóleo com torcidas, veio confirmar
que ataques em grande escala, por parte do IN, eram já uma certeza - só não
sabíamos quando.
Incendiávamos as garrafas do lado que vinha o ataque, para
que a nossa Força Aérea pudesse fazer bombardeamentos nocturnos. À noite víamos os clarões e os rebentamentos sentiam-se no
peito e no chão. A intenção que eles tinham de desalojar as NT das posições
era tal, que os ataques eram repetidos noites a fio.
Notícias de forte movimento de viaturas e até blindados na
fronteira entre a Guiné e a Guiné-Conakri, vinham agravar o já o nosso fraco
ânimo.
Mais para Leste, Copá estava já cercado há dias. Grupos de
Combate saíram para o mato para assim tentar aliviar a pressão. Esses valentes
ficaram isolados e dispersos, complicando tudo ainda mais, pois bombardeamentos
massivos, que eventualmente fossem decretados por Bissau, poderiam atingir os
nossos soldados no mato.
Os Operadores chegavam já a falar na rádio sem cifra, tal
era a aflição daqueles nossos combatentes. Em resposta aos pedidos de ajuda
destes nossos camaradas, os Altos Comandos dos seus gabinetes respondiam: -
Tenham confiança nos vossos comandantes.
“Venham para cá vocês, filhos da p...”, era a resposta dos
nossos camaradas em desespero.
Já passava da meia-noite quando o Furriel Claudino se
aproximou do posto de sentinela e perguntou por mim. Eu estava a dormir, pois
ia entrar de serviço às duas horas da manhã. Com ele vinha um Sapador que me ia
substituir. Os condutores que fossem em coluna na manhã seguinte tinham que
sair de serviço imediatamente.
Não gostei de o ver àquela hora, pois não augurava nada de
bom. Disse-me: - “Vai dormir que às seis da manhã tens que ter o teu carro
preparado. Levanta ração de combate para três dias”.
Perguntei-lhe o que se passava, mas ele disse-me que não
sabia.
Às cinco e meia levantei-me, vim cá fora e bebi longamente
água do cantil que tinha deixado a refrescar na rua. Vesti o camuflado, calcei
as botas de couro, agarrei na arma, nas cartucheiras, no poncho e, dirigi-me ao
depósito de géneros, onde levantei as caixas de ração. Era três, uma por cada
dia, que ia ficar fora. Continuava sem saber para onde ia, mas na verdade
também não interessava muito saber.
A coluna arrancou direito a Bambadinca, comigo iam com as
suas Berliet, o Caetano e o Borges.
Chegados lá, ficámos à disposição do Comando de Bambadinca. Se a coisa não tinha cheirado bem até ali, cheirava cada vez pior.
Chegados lá, ficámos à disposição do Comando de Bambadinca. Se a coisa não tinha cheirado bem até ali, cheirava cada vez pior.
Já era noite quando recebi ordem para carregar a viatura O resto da noite foi passada junto da mesma, com ordens expressas para que
ninguém saísse do seu posto. Ia transportar minas e granadas várias para
Buruntuma.
Esse destacamento - em que o arame farpado fazia fronteira
com a outra Guiné - era um alvo preferencial, por isso íamos tentar reforçar as
suas defesas.
Arrancámos de madrugada, ainda noite. A segurança era feita
com tropas do Batalhão de Bambadinca e blindados de Bafatá. O Grupo do Marcelino também ia na coluna. Era pois uma Operação de reabastecimento de alto risco. Íamos
rodar em zonas altamente perigosas, em que o IN dominava.
A coluna tinha sido rodeada de todo o secretismo, mas com o
andar das horas os guerrilheiros poderiam já ter sido avisados. Eram
Berliet de vários destacamentos, não me lembro quantas. Lembro-me sim da ordem
que proibia que levássemos qualquer passageiro junto de nós, condutores.
As viaturas tinham a carga tapada.
Ultrapassámos Nova Lamego direito a Piche. Nós não víamos, mas deveriam estar muitas centenas de
camaradas nossos a fazer segurança durante todo o percurso. A partir de Piche o
grau de perigo aumentava consideravelmente.
O caminho passou a ser feito mais lentamente. As Chaimites
viravam as armas para a mata, mantendo as escotilhas fechadas.
Os outros condutores devem sentir-se como eu, num extremo
isolamento. Se houvesse algum ataque à coluna, só nos restava fugir do pé
da viatura e da sua perigosa carga.
Estava um sol escaldante não se podia fumar. Por fim Buruntuma estava à
vista. Parámos e ficámos bastante afastados uns dos outros. Só
entrava um carro de cada vez para descarregar, saindo logo de seguida. Tínhamos
de ser rápidos, se não queríamos passar a noite na picada. Aproveitei para
comer, pois só tinha até essa altura bebido o leite da ração e água.
Acabou por correr tudo bem.
Os camaradas daquele destacamento estavam numa situação que
ninguém no seu perfeito juízo invejava, qualquer deles trocaria comigo sem
olhar para trás. Nessa noite ficámos a dormir em Nova Lamego, no dia
seguinte fomos para Bafatá, onde encontrámos a coluna da CCS que nos levaria
até Galomaro.
Os meus receios em relação a esta viagem, felizmente acabaram
por não se concretizar. O PAIGC não atacou Buruntuma, mas descarregou a
sua fúria em Canquelifá passados poucos
dias...
Aos camaradas, que estiveram directamente envolvidos nestes
acontecimentos, peço desculpa por alguma incorrecção, motivada pelos anos e por
alguns deles não terem sido por mim vividos pessoalmente.
Juvenal
Amado
4 comentários:
Caro Juvenal
Estas recordações, ainda que aqui e ali possam ter algumas lacunas, acompanham sempre quem as viveu.
Concluis que afinal tudo correu bem, o que quererá dizer que os teus receios iniciais não se concretizaram.
E ainda bem que assim foi pois o que descrevias na parte inicial do teu relato era bastante contrariador das teses dos defensores da "guerra danoninho", daquela que "estava quase", que só "faltava um bocadinho assim"!
Esse percurso de Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego até Piche também o fiz, no todo ou em parte (na primeira vez foi até ao Xime) mas não me recordo se três ou quatro vezes.
Fico com a ideia que a operação logística foi melhor preparada do que aquela que testemunhei no Carnaval de 71 com os tais obus 14 (ou peças) para Piche para uma operação de bombardeamento. Uma coluna (a tua) com tantos e tais meios sempre daria nas vistas pelo inusitado mas parece-me que os tempos e os meios de protecção foram adequados.
Hélder Sousa
“Sangue,Suor,e Lágrimas”
Frase muito usada e abusada.
Mas no respeitante a colunas e destacamentos,e ambos vivi (ou será antes...sobrevivi?),esta frase diz TUDO.
E,cada vez me pergunto mais:
As novas gerações compreenderão?
E com isto estou-me a referir às novas gerações....militares.
Um grande abraço do J.Belo
Até me faltou o ar. Se o estado de espírito era conforme a descrição que parece a sujeição quotidiana à alegadamente bem preparada tropa IN, eu teria ficado no terreno vítima de chilique. Vá lá, a viagem foi pacífica, ou o IN estaria em merecido repouso depois de tantas «ameaças» que provocou. Copá era um cu de Judas, meio esquecido na fronteira com o Senegal, onde me desloquei várias vezes e até permaneci durante duas semanas. Na picada até Bajocunda levantei algumas minas sempre com a precaução adequada. A fronteira paralela e perto fi-la a penates em segmentos durante alguns patrulhamentos. O que ali se passou e ditou o abandono não teve nada a ver com a tua viagem heróica a Buruntuma. Quando é que isso foi? No meu tempo nunca me dei conta de que alguém estivesse tão tolhido quanto descreves. Abraço
José Dinis mas como eu me posso comparar a ti. Tu nasceste herói, destinado, clarividente eu sei lá, talvez vindo de kriponite como o Superboy. Eu pelo o contrário era o pobre rapaz com a comissão acabada e que já tinha visto mortos as mais (todos foram demais). Assim peço-te desculpa pela minha falta de coragem e por nunca ali ter querido estar. Tu nasceste para grandes feitos eu não só me limites a nascer. mas quem pensa como tu não me diminuem só me confirma que estou no lugar que devo estar. Um abraco
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