quinta-feira, 7 de maio de 2020

P1227: O "BAPTISMO DE FOGO"


LENQUETÓ

JERO
Passaram mais de cinquenta anos e esta palavra – Lenquetó - funciona como um código (ou password) que, depois de a “introduzirmos” nos arquivos da memória, nos sobe à cabeça e nos faz voar no tempo e no espaço até voltarmos mais uma vez à Guiné e à guerra.

Tem a ver com a nossa primeira operação – o chamado “baptismo de fogo” – e com algumas “cenas” de um longo filme que começou à noite e acabou na tarde do dia seguinte.

Não “passo” o filme todo. Fixo-me só na parte final que teve a ver com dois aviões de guerra que “nos tiraram” do chão e fizeram correr para “casa”. Mas já lá vamos.

Só um pormenor. O nosso grupo de combate, com cerca de 60 militares, estava cercado e com dificuldade de se libertar dum inimigo que não se deixava ver e que já nos tinha provocado diversos feridos, sendo um deles bastante grave: o Marques.


O apoio aéreo pedido pela nossa tropa não se fez demorar muito, localizando-nos com relativa facilidade depois das indicações dadas pela rádio pelo nosso capitão. 

Ainda antes da chegada dos aviões (dois T-6) o inimigo tinha tentado fazer uma autêntica carga sobre o nosso dispositivo, sendo abatidos uns dois ou três indivíduos a uns cinco ou seis metros da árvore onde se abrigavam o nosso capitão, o Furriel Enf.º, o cabo radiotelegrafista e os feridos já mencionados anteriormente.

Também ainda antes da chegada dos aviões soubemos pela rádio que a coluna-auto que se dirigia ao nosso encontro, com duas secções comandadas pelo Alf. Santos, tinha tido também contacto com o inimigo, que se encontrava emboscado junto do entroncamento de Caurbá, tendo nós sofrido um ferido grave por estilhaço de granada.

Com a chegada do apoio aéreo o inimigo mostrou-se menos ativo, fazendo no entanto ainda por duas ou três vezes fogo de pistola metralhadora para os aviões. 

Os pilotos, habilmente conduzidos pelas informações de terra, fizeram fogo por várias vezes para os locais donde o inimigo nos tinha flagelado, lançando ainda uns «roquetes» para umas casas de mato nas proximidades da tabanca, que se avistava ao fundo, à esquerda.

Cerca das 11 horas chegou então o helicóptero para evacuação do ferido grave, sendo a sua descida comandada pelo nosso capitão que, a peito descoberto, conseguiu evitar a sua descida num local onde poderia estar o inimigo.

Em manobra impecável o helicóptero desceu apenas a uns 20 metros da árvore junto da qual se encontravam os feridos. 

Alferes Belmiro Tavares
Rapidamente o Marques foi transportado até ao helicóptero pelo Enfermeiro, auxiliado pelo nosso Capitão e pelo AIf. Tavares, revelando o pessoal do helicóptero grande experiência e calma. Sempre com a hélice em movimento o helicóptero elevou-se rapidamente, dirigindo-se para Binta onde o esperava um condutor gravemente ferido no ataque à coluna-auto.

Esta coluna já não estava debaixo de fogo, não se podendo no entanto aproximar do local da “nossa” emboscada por se encontrar danificada e avariada uma das suas viaturas. Os T-6 continuavam a evolucionar sobre a área, dando-nos o ruído dos seus motores uma sensação de agradável protecção.

Do ar sabiam onde estava a nossa tropa, que fazia um “quadrado” em relação a uns sessenta prisioneiros de Lenquetó, bem visíveis devido às cores das suas vestes africanas. 


A pedido do Capitão Tomé Pinto os pilotos metralharam a zona por onde, electrizados pelo exemplo do nosso capitão, seguimos o mais rapidamente possível, respondendo ao fogo inimigo que, de cima das árvores, nos continuou a flagelar durante algum tempo.

Os dois T-6 “picaram” duas vezes e metralharam as proximidades do local onde estávamos instalados. Dali “saímos” logo após a segunda passagem  dos aviões que metralharam cirurgicamente a zona por onde viemos a "furar" o cerco inimigo.

Lembro-me, melhor dizendo, nunca me esqueci da sensação de caminhar num terreno que tinha sido metralhado, com a terra “em fogo” e inúmeros torrões a saltar. O fumo que saía da terra… parecia estar em “brasa”.

Capitão Tomé Pinto
Com um dispositivo em «cunha» conseguimos iludir o inimigo, que não esperava a nossa saída pelo local por onde se verificou. A experiência e o arrojo do nosso Comandante de Companhia conseguiu que dois grupos de «maçaricos», que se agarravam ao terreno logo que se ouvia um tiro, «voassem» por uma zona batida pelo fogo do inimigo que nos viu afastar com rapidez e segurança.

A registar a tentativa de fuga de três prisioneiros quando da retirada da zona da emboscada; aqueles foram no entanto abatidos, sendo de louvar a calma e serenidade das duas secções que tinham a seu cargo a guarda ao numeroso grupo de prisioneiros, que acabaram por trazer sem mais uma baixa até ao estacionamento.

Os quilómetros que nos separavam ainda de Binta foram percorridos debaixo de um calor sufocante que exigiu de cada um um esforço e um sacrifício assinaláveis, pois vínhamos a caminhar desde as 2 horas da madrugada. 

Logo que nos afastámos do local da emboscada (Caurbá) o dispositivo voltou à formação de “quadrado”, sempre superiormente comandado pelo nosso capitão. Este, extenuado por um esforço extraordinário na condução dos grupos de combate, teve de se aproveitar do vozeirão do Furriel Juca (um homem pequeno mas com voz de gigante...) para continuar a transmitir as suas ordens…

 Cada metro de mato exigia já um esforço penoso para o percorrer. Ansiávamos pelos barracões de Binta mais do que em qualquer outra altura, um super-hotel de luxo. Foi para muitos o dia «D», o dia mais longo das suas vidas...

Já próximo do estacionamento o nosso capitão ainda foi com um grupo de combate ao encontro da coluna-auto, para proteger o seu regresso. Eram 12H30 quando chegámos a Binta, onde também se tinham vivido horas de grande ansiedade.

Tínhamos acabado de viver o nosso primeiro dia operacional em terras da Guiné, combatendo duramente o inimigo e alcançado uma vitória esmagadora. Do Cacheu até à fronteira do Senegal os que tivessem «escapado» fariam a nossa melhor «publicidade». Tinha chegado a Binta uma companhia de homens «duros», chefiados por um «leão» que andava de pé debaixo das balas inimigas.

Passaram mais de cinquenta anos. Mas lembro-me como se fosse ontem e nunca mais esqueci os pilotos dos T-6 que nos abriram caminho “a ferro e fogo” e com uma pontaria extraordinária !
JERO

6 comentários:

Anónimo disse...

As recordacöes apresentadas säo mais uma das muitas "histórias de amor" entre os Infantes e os saudosos T-6 que tanto nos ajudaram (também) nas fatídigas colunas de abastecimentos Buba-Aldeia Formosa-Gandembel.
Ainda hoje ecoa nos meus ouvidos a simples frase de um dos pilotos em momento bem difícil na picada...."Cobra,aqui Aguia!Temos contacto visual!".

Depois,quanto aos T-6.....
Mas isso foi depois.

Um abraco do J.Belo

Juvenal Amado disse...

Jero o teu relato é límpido e faz-nos ver as cenas como assistimos às imagens.
Por brincadeira vou só acrescentar que foi um dia bem "passado" e espero que os feridos tenham recuperado bem e ainda cá estejam para contar .

Da Reboleira "esta bela localidade" um abraço para Alcobaça e TC


Anónimo disse...

Cobra,aqui Águia!Temos contacto visual!".
Grato pelo comentário Camarigo J.Belo.

Quando ao meu patrício Juvenal Amado confirmo que foi um dia bem passado. Dormi muito bem.O pior foi quando acordei no dia seguinte.Afinal só tinha sido o começo das "operações"...
O tempo passou e ainda por cá andamos.
Abraços.
JERO

Anónimo disse...

O Piloto de um dos T-6 que comigo comunicou pela rádio era o Alferes Mil.Belarmino,amigo de infäncia.
Näo tive oportunidade de o contactar pessoalmente nem na Guiné,nem posteriormente.
Alguém entre os Camaradas saberá notícias dele?

Um abraco do J.Belo

Hélder Sousa disse...

Meu caro Jero

Tendo em conta aquele "pequeno pormenor" que revelaste de ainda antes da chegada dos T-6 os guerrilheiros terem tentado um assalto à posição onde se encontrava o "miolo" do agrupamento de homens da operação (o Capitão, o Enfermeiro, o "Transmissões", os feridos) tendo sido "detidos" aí a uns escassos 5 ou 6 metros, estive quase tentado a escrever que "escaparam por uma unha negra" mas tendo em consideração possível incorrecções linguísticas, prefiro deixar registado que "escaparam por uma coisa de nada".

Foi, certamente, um bom baptismo de fogo. Para recordar, claro!

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Obrigado Hélder.
Há sustos (ou "cagaços") de que só temos noção terem acontecido depois de terem acontecido. Mas que foi um mau bocado foi. "Jogar" for e casa é sempre complicado...
Abraço GRANDE.
JERO