quarta-feira, 22 de abril de 2020

P1224: RECORDAR AOS POUCOS


UMA INTERVENÇÃO QUE NÃO SE ESQUECE…

Helder Valério Sousa
Esta coisa da memória de cada um, tem que se lhe diga.

Vou relatar um episódio que se passou comigo, que agora recordei, e desde já peço desculpa, principalmente ao Alberto Branquinho, por ir falar de mim e do meu umbigo…. ou quase!

Durante anos praticamente esqueci a Guiné mas através do nosso Blogue, pelas leituras dos relatos, das histórias dos vários intervenientes, pelas conversas que entretanto se vai tendo com os novos amigos ou com os antigos reencontrados, lá se vai fazendo cada vez mais luz.

Por exemplo, tenho dito que passei cerca de 6 meses (não chegou bem) em Piche, junto da sede do BCAV 2922. Sei que cheguei lá no início de Dezembro de 1970, dia 4 ou 5, não me lembro bem, e regressei a Bissau no final de Maio de 1971, salvo erro a 25, pelo menos é neste momento a ideia que tenho. Pelo meio, aí pelo dia 15 de Abril de 1971 (desta data tenho a certeza) fui a Bissau onde passei lá alguns dias, voltando a Piche talvez uma semana depois.

É absolutamente certo que me lembro como foi a primeira viagem de ida. Fui num avião grande, cheio de gente, militares e nativos que tinham estado em Bissau num acontecimento promovido pelo General Spínola e que se chamou Congresso dos Povos ou coisa assim parecida, que levava também várias caixas com material e alimentos e voei até Nova Lamego. Aí fiquei um ou dois dias (não me lembro exactamente) e depois integrei a coluna para Piche.

Quando vim a Bissau, em 15 de Abril de 1971, para recolher o material com vista a reequipar o novo Posto de Transmissões de Piche, fiz a coluna de Piche a Nova Lamego, segui depois até Bafatá integrado num conjunto de viaturas que também para lá se dirigiam. Aí segui para Bambadinca num comboio de apenas 2 Unimogs.

Em Bambadinca estive com um Fur Mil de Transmissões do curso anterior ao meu, chamado Vítor Caniços, que me contou ter havido na véspera (14 de Abril de 1971) um forte ataque a Catió onde o meu amigo e colega de curso Nélson Batalha (de quem já falei), conterrâneo de Setúbal do Vítor, tinha ficado ferido, tendo sido alvo de evacuação para Bissau. Fui depois até ao Xime e aí embarquei na Bor até Bissau.

Não consigo recordar-me como fui até ao Xime. Se foi ainda no mesmo dia, se fiquei dum dia para o outro em Bambadinca, nem que transporte tomei. Do Xime recordo-me da rampa que me pareceu íngreme (coisa rara na Guiné) até ao cais. A viagem que fiz na Bor não foi muito distinta do que já li no Blogue. A emoção da descida rápida do Geba estreito, a carga absolutamente indescritível daquele ferry, com material e equipamentos militares, elementos da população, animais soltos e em gaiolas, tudo numa absoluta molhada, a atenção sempre ao máximo à espreita do que se podia passar nas margens, que se revelavam misteriosas e perigosas.

Mais à frente, quando o Geba se alarga a perder de vista, depois de receber o Corubal, com o barco bem afastado das margens, começa a levar com ondulação forte, de frente, que fazia refrescar toda aquela parafernália de pessoas e coisas que se amontoavam a descoberto. Aí a molhada ficou toda molhada!

Chegado a Bissau apresentei-me junto do meu comando das Transmissões, visitei o meu amigo ferido no Hospital (eu tinha jogado às moedas com ele para ver quem ia para Piche e quem ia para Catió), inteirei-me do que tinha que fazer quando regressasse ao mato, identifiquei o material e, passados uns dias lá fui de volta a Piche. Ainda hoje não me consigo lembrar o que fiz e como foi.

Quando em Piche a missão ficou cumprida lá regressei finalmente e Bissau, em princípio para ir (pensava eu, como me tinham prometido) para Teixeira Pinto ou Bolama, como recompensa por ter sido destacado para zona considerada problemática (aqui para nós, qual é que não era?), mas acabou por me ser imposto o Centro de Escuta. Mas isso é outra história.

O que importa é que essa viagem final, aquela que me levou de vez de Piche a Bissau, também está obliterada. Não me consigo lembrar o que fiz. Tenho uma vaga ideia de ter ido de coluna até Nova Lamego mas depois suspeito que tomei um avião.
Portanto, como disse, isto da memória vem aos poucos, à medida que se vai lendo e relacionando as coisas. Sendo assim, ao ler um post com o relato de passagens do livro “Diário de Guerra” de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins), lá aparece o registo que no dia 10 de Maio de 1965 o autor desse livro esteve no HM 241.

Reza assim o tal registo:

“Hospital Militar de Bissau, para uma pequena intervenção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.
Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século.”

Esta anotação fez-me recordar que uma situação semelhante se passou comigo e que afinal, não havendo naquele tempo Serviço Nacional de Saúde nem tendo a esmagadora maioria dos pais dinheiro para gastar com médicos, onde só se ia (os que iam) quando alguma doença mais visível aparecia, muitos jovens daquela época tinham problemas parecidos e cuja resolução só seria ultrapassada pelo tempo.

À data, antes da entrada no serviço militar, havia em Vila Franca de Xira, onde vivia, um médico, carinhosamente conhecido como médico dos pobres, o Dr. Rodrigues Pereira, pai de um homem muitas vezes citado no nosso Blogue, principalmente através dos escritos do Beja Santos e da Cristina Allen, o Dr. David Payne, que ajudava em muita coisa mas não era possível atender a tudo e a todos.

Por isso, quando estava em Piche, alguns camaradas relataram os seus problemas e como eles tinham sido resolvidos graças à intervenção dos médicos do Batalhão que se disponibilizavam para o efeito.

Comecei também a ganhar coragem para me submeter à necessária intervenção cirúrgica e fiquei esperando pela oportunidade. O BCAV 2922 tinha no seu quadro três Alferes Médicos, Hermano Gouveia, Fausto Gomes e Roando Álvares, e havia um, pelo menos, sempre em permanência na sede do Batalhão. Comecei a tentar convencer o Dr. Hermano mas acho que foi com o Dr. Fausto que fui à faca.

Quando finalmente ficou acordado o dia, o que acham que aconteceu? Uma coisa simples, como a relatada no livro do Cristóvão? “”, nada disso!

O médico resolveu transformar aquela pequena intervenção cirúrgica numa aula pública e de ensino colectivo.

Quando me encontrava deitado de costas em cima da marquesa, em situação, digamos assim, indefesa, calças em baixo, com o médico e o Furriel Enfermeiro Santana (já nos conhecíamos de Santarém) a começar os preparativos para desinfecção e outros procedimentos, a sala de operações foi literalmente invadida por todo o pessoal afecto ao serviço de saúde e também por mais meia dúzia de outros amigos que se divertiram desinfectando tudo o que podiam. Aquilo é que foi uma alegria! Tintura de iodo e outros desinfectantes pintando desenhos vários no peito, barriga, umbigo (cá está o umbigo), pernas, enfim….

Nessa altura o Dr. disse que tinha boas e más notícias para mim. É que não tinha agulhas finas para dar a injecção com o anestésico no local a cortar, o que queria dizer que iria doer mais mas, por outro lado, sendo a agulha mais grossa também corria menos riscos de se partir… Além disso, para compensar, iria providenciar uma espécie de anestesia apropriada à circunstância, que me faria não sentir a dor da própria injecção, coisa que na altura não percebi o que podia significar.

Então, no meio daquela feira, daquela alegre confusão (alegre para eles, que eu transpirava como se pode calcular e estava muito apreensivo) o nosso Dr. faz um sinal com a cabeça ao Furriel Santana que se encontrava ao meu lado direito e que me afinfa uma valente cotovelada na zona do fígado, abaixo das flutuantes, que me tirou literalmente o ar, provocou uma dor e uma contracção muscular por toda essa zona que me fizeram ficar imóvel e, enquanto isso, o maquiavélico Dr. aplicava a tal injecção com a agulha grossa.

Feito isso, que eu nem senti, passou a fazer o que tinha de ser feito, cortando e cozendo e tudo correu depois como previsto.

Medicado e entrapado lá recebi a recomendação de agora, durante uns dias, nada de esforços…”. Isso é que era bom… nessa mesma noite, o IN, como que para entrar também na festa, lá resolveu fazer uma flagelação, com alguma intensidade, e vá de ir para a vala de protecção, tentando rastejar o menos possível. Resultado, um ponto rebentado e novos cuidados

E pronto, este relato já está!
Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Valério Sousa

Por motivos óbvios não apresentamos fotos da intervenção a que foi sujeito o nosso camarigo Helder....

5 comentários:

Anónimo disse...


É indiscernível o porquê da näo apresentacäo dos documentos fotográficos de tal acontecimento.
Para mais tendo em conta as raízes bíblicas do mesmo.
Teräo todos os direitos a estas fotos sido (de modo voluptuoso !)garantidos à conhecida revista cultural "PlayBoy"?

Espero que a reconhecida limpidez de espírito e íntegra obediência à Lei,verdadeiras características de raíz do Camarada em referência,o levem a ter sempre muito cuidado mesmo com os pequenos pecadilhos,sejam eles excessos de velocidade,parqueamentos em locais proíbidos,ou (T'a renego!) leituras políticas menos curiais.

Atrêvo-me a citar:

*Romanos 2:25-29"...A circuncisäo tem valor quando se obedece à Lei;ao desobedecer-se à Lei a circuncisäo torna-se em incircuncisäo *

*Jeremias 9:17-26...Virá o tempo em que castigarei todos aqueles que säo circuncisados no corpo mas näo no espírito*

Daí,Caro Camarada,em simples linguagem militar :FIRME!

Um abraco do J.Belo

Juvenal Amado disse...

Helder

No 3872 o dr António Pereira Coelho médico e cientista como mais tarde viemos a saber após o sucesso do primeiro bebé proveta em Portugal também teve o cuidado de transformar um quarto da enfermaria numa sala de pequenas cirurgias . Ora aí começou por fazer todo o tipos de intervenções desde unhas encravadas ,circuncisão , retirar pequenos estilhaços e por fim o corte do tal freio ( também conhecido por bico da almotolia por causa do bico que curvava) que tanto incomodava.

Teve freguesia .

Quanto às viagens em que não te lembras como foste ou como vieste, só te pergunto qual era a merda que andavas a tomar. Coca-Cola com aspirina não era .... risos deculpa a brincadeira

Um abraço

Alberto Branquinho disse...

Olá HELDER!

Podias ter chamado a esta crónica:
"Venho falar de mim e de... um palmo abaixo do umbigo".

Podes crer: eu não berraria "Plágio"!

Abraço
Alberto Branquinho

Hélder Sousa disse...

Caros amigos e camaradas

Penalizo-me por não ter vindo aqui anteriormente e comentar algumas das "postagens", principalmente o do incontornável Jero (que até lamentou "nem um único comentário"!).
Na realidade acho que é importante, nem que seja um comentário, até para se poder perceber (ou não) se o que se escreve tem algum eco.

Ora bem, restringindo-me a este "post" e a estes comentários devo dizer que:

Agradeço, penhoradamente, as indicações e referências bíblicas que o JB (José Belo para os desconhecedores) me presenteou. Deste modo posso melhor perceber porque motivo fiz o que fiz (tinha que fazer!) e sem qualquer "sombra de pecado".
Quanto a fotos do evento confesso que desconheço a sua eventual existência.
Como penso ser possível de aceitar, nessa época não era tempo de "selfies" e eu próprio estava muito mais apreensivo sobre o que e como seria feito e desse modo nada atento a fotógrafos. Não posso garantir que algum malvado não o tenha feito mas admito que, caso isso tivesse acontecido, já poderia ter sido alvo de "chantagem" ou outra coisa qualquer.
Posto isto, cá acatarei a ordem de FIRME!

Para o "Juve" (leo?) aproveito para lhe pedir desculpa também pela falha (ou falta) do comentário ao episódio "da mina do Falé" mas nestes tempos de confinamento o tempo é pouco para tentar digerir sem grandes problemas de estômago as várias teses de "culpabilidade da China" e da "incapacidade/irresponsabilidade do Governo" na condução do combate ao COVID-19, que diariamente nos inundam.
Relativamente às falhas de memória quanto às viagens pois também me interrogo o porquê disso acontecer. Mas não encontrei resposta ainda. Deste modo, e o texto "recuperado" até já tem uns aninhos, continuo sem recordar.
Por essa época, em Piche, só me lembro de ter experimentado duas bananas em jejum com cerveja (diziam que dava 3 cruzes no fígado e evacuação, mas foi só para experimentar), café "com bolinha" no Tufico, coca-cola com whisky, fanta com rum e outras misturadas que se iam fazendo para "quebrar as rotinas". Com comprimidos, não me lembro, mas não terá nada a ver com esse tipo de práticas. Há coisas que me lembro com inusitada nitidez e outras que nem sei como foram.
Olha, dois exemplos de lá da Guiné. Há dois camaradas nossos, um deles já falecido, o Furriel Bento de Jesus, duma Companhia de Cavalaria do Olossato do Cap. Mário Tomé que depois vieram para Nhacra, e o várias vezes referido Armando Carvalhêda, dum Pelotão de Artilharia em Guileje e que depois veio para o PIFAS em Bissau, os quais me relembraram as minhas "boas acções" de lhes disponibilizar a cama para descansarem aquando das suas passagens. Não tinha nenhuma recordação disso e no entanto mostraram-se muito agradecidos.

Para o Branquinho só posso dizer que a tua sugestão é bem aceite e "geográfica e anatomicamente" correcta mas, na época em que o original foi escrito a frase mais marcante, para mim, era aquela que referi.
E quanto a não gritares "plágio" pois claro que acredito.

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Furriek Milº Melo da 2741 de Contubuel - BART2920 Bafatá

Olha a tua sorte não teres sido recolhido pelos que faziam a cerimónia do fanados. Tudo muito mais simples...Um pedaço de tronco cortado, o "artista" colocado a jeito e a pele bem esticadinha...
Zás trás pás e lá ia a catana certeira cortar o que estava a mais. Uma semanita de reclusão e voltavas ao activo.
Mas tive um cabo do meu pelotão que foi faz-lo no Hospital em Bissau e depois foi aconselhado a não "almoçar" ,as o raio do homem deu-lhe a "fome" e estragou a obra prima toda. Lá teve de voltar a Bissau para na oficina colocar um remendo em condições. Voltou são e salvo mas foi considerado prisioneiro até recuperação de capacidades de "ataque"