quarta-feira, 15 de abril de 2020

P1223: ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO


O FALÉ E O “BURRO DO MATO”

Juvenal Amado
A explosão ouviu-se no quartel. Uma pequena coluna havia saído de Galomaro havia pouco mais de meia hora, na direcção de Cansamba.

Cansamba era um pequeno destacamento que albergava um pelotão do Saltinho e que servia de posto avançado entre Dulombi, Cancolim e Galomaro. Distava nove quilómetros da Sede do Batalhão.

Os soldados destes postos de guarda avançada viviam em condições muito precárias. Não tinham luz eléctrica, os abrigos eram toscos de terra batida, pouco arejados e nada cómodos.

Em matéria de capacidade de defesa também era muito fraca. Para além de um morteiro 60 mm, tinham uns dilagramas (*), granadas de mão, uma bazuca que dificilmente funcionava, uma metralhadora pesada HK (**) e por último as G3.

Era um armamento de defesa que, como é bom de ver, dificilmente resistiria a um ataque, mesmo de média escala. Como não tinham luz eléctrica, penduravam-se garrafas de cerveja duas a duas, para que se alguém tocasse no arame farpado, elas tilintavam, denunciando assim os intrusos.

A primeira vez que flagelaram Cansamba, estávamos há poucos dias em Galomaro. Nessa noite eu estava num posto avançado do lado da bolanha. O fogachal começou cerca das 19 horas. Nessa altura ainda estavam os velhinhos connosco e aquilo foi mais uma operação de boas vindas do que um ataque.

Os guerrilheiros também tinham a consciência de que era fácil para eles entrarem na zona, mas depois para saírem todos os destacamentos do perímetro lhes tentariam cortar a retirada. Em todo o caso aqueles 9km eram uma distância bastante significativa para que nós fôssemos em seu auxílio com rapidez, caso se tratasse de um grande ataque.

Por vezes o PAIGC usava como estratégia fazer ataques ao mesmo tempo que emboscava e punha minas às colunas de ajuda. Era pois uma operação muito perigosa e de progressão muito lenta no terreno.

A CCS fazia os reabastecimentos de géneros todas as semanas. À frente seguia uma Berliet carregada de sacos de areia. Não me recordo de quem a conduzia, mas logo de seguida vinha o Falé no seu burro do mato.

O pelotão de sapadores fazia a picagem, tomando por referência as marcas dos rodados das viaturas que ainda eram visíveis desde o último abastecimento. Os rodados das Berliet que lá passavam regularmente marcavam o terreno que os sapadores picavam à frente dos pés.

O Falé conduzia o seu Unimog com o acelerador de mão, sentado nas costas do banco e os pés no assento onde normalmente se sentava.

O Unimog do Falé
De repente o Unimog pisa uma mina, vai pelos ares e fica literalmente em cima de uma árvore. O nosso camarada é encontrado dentro do mato, a alguns metros de distância, inanimado. Tem a farda camuflada em farrapos, está todo preto, sujo e com algumas escoriações. Felizmente está vivo e é levado para Galomaro, onde lhe são prestados os primeiros socorros.

Foi pedida a evacuação. O heli leva o nosso camarada para o Hospital Militar de Bissau, de seguida, após algumas semanas, já livre de perigo, é enviado para a Metrópole, onde acaba a sua comissão.

A explicação para que a mina não tenha rebentado no rodado da Berliet é que o rodado desta é mais largo que o do pequeno Unimog. Tinha sido posta para apanhar um carro mais pequeno e assim foi plantada por dentro dos rodados bem marcados que já lá estavam.

Podia ter sido mais uma tragédia irreparável, mas felizmente não era a hora do nosso camarada Falé, que voltei a abraçar no nosso convívio em Beja, passados 23 ou 24 anos. Vivo e de boa saúde.
Juvenal Amado
Notas do autor do texto:

(*) Dilagrama. É uma granada de mão defensiva que mercê de um dispositivo é disparada pela G3. A munição é especial e a sua troca inadvertidamente por outra, provocou acidentes gravíssimos.

(**) HK. É uma metralhadora pesada calibre 7,62 mm. Parecida com a G3, é muito maior, pode-se troca os canos e usam-se as munições em fita ou carregadores vulgares. Estas armas equipavam também as Chaimites. A qualidade das nossas fitas de munições deixavam muito a desejar, uma vez que encravavam constantemente. Quando passavam pára-quedistas nas nossas unidades, já de regresso das suas operações, nós pedíamos-lhes as fitas deles. As ditas eram formadas por elos que se desmanchavam à medida que a arma fazia fogo. As que eram fornecidas às unidades de tropas regulares eram em lona ou em metal nas quais não nos podíamos fiar.

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