UMA
INTERVENÇÃO QUE NÃO SE ESQUECE…
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Helder Valério Sousa |
Esta coisa da memória de cada um, tem que se lhe diga.
Vou relatar um episódio que se passou comigo, que agora
recordei, e desde já peço desculpa, principalmente ao Alberto Branquinho, por
ir falar de mim e do
meu umbigo…. ou quase!
Durante anos praticamente esqueci a Guiné mas através do nosso
Blogue, pelas leituras dos relatos, das histórias dos vários intervenientes,
pelas conversas que entretanto se vai tendo com os novos amigos ou com os
antigos reencontrados, lá se vai fazendo cada vez mais luz.
Por exemplo, tenho dito que passei cerca de 6 meses (não
chegou bem) em Piche, junto da sede do BCAV 2922. Sei que cheguei lá no início
de Dezembro de 1970, dia 4 ou 5, não me lembro bem, e regressei a Bissau no
final de Maio de 1971, salvo erro a 25, pelo menos é neste momento a ideia que
tenho. Pelo meio, aí pelo dia 15 de Abril de 1971 (desta data tenho a certeza)
fui a Bissau onde passei lá alguns dias, voltando a Piche talvez uma semana
depois.
É absolutamente certo que me lembro como foi a primeira
viagem de ida. Fui num avião grande, cheio de gente, militares e nativos que
tinham estado em Bissau num acontecimento promovido pelo General Spínola e que
se chamou Congresso dos
Povos ou coisa assim parecida, que levava também várias caixas
com material e alimentos e voei até Nova Lamego. Aí fiquei um ou
dois dias (não me lembro exactamente) e depois integrei a coluna para Piche.
Quando vim a Bissau, em 15 de Abril de 1971, para recolher
o material com vista a reequipar o novo Posto de Transmissões de Piche, fiz a
coluna de Piche a Nova Lamego, segui depois até Bafatá integrado num
conjunto de viaturas que também para lá se dirigiam. Aí segui para Bambadinca num comboio de apenas 2
Unimogs.
Em Bambadinca estive com um Fur Mil de Transmissões do
curso anterior ao meu, chamado Vítor Caniços,
que me contou ter havido na véspera (14 de Abril de 1971) um forte ataque
a Catió onde o meu amigo e
colega de curso Nélson Batalha (de quem já falei), conterrâneo de Setúbal do
Vítor, tinha ficado ferido, tendo sido alvo de evacuação para Bissau. Fui
depois até ao Xime e aí embarquei
na Bor até
Bissau.
Não consigo recordar-me como fui até ao Xime. Se foi ainda
no mesmo dia, se fiquei dum dia para o outro em Bambadinca, nem que transporte
tomei. Do Xime recordo-me da rampa que me pareceu íngreme (coisa rara na Guiné)
até ao cais. A viagem que fiz na Bor não
foi muito distinta do que já li no Blogue. A emoção da descida rápida do Geba estreito, a carga
absolutamente indescritível daquele ferry,
com material e equipamentos militares, elementos da população, animais soltos e
em gaiolas, tudo numa absoluta molhada,
a atenção sempre ao máximo à espreita do que se podia passar nas margens, que
se revelavam misteriosas e perigosas.
Mais à frente, quando o Geba se alarga a perder de vista,
depois de receber o Corubal, com o barco bem afastado das margens, começa
a levar com
ondulação forte, de frente, que fazia refrescar toda aquela parafernália de
pessoas e coisas que se amontoavam a descoberto. Aí a molhada ficou toda
molhada!
Chegado a Bissau apresentei-me junto do meu comando das
Transmissões, visitei o meu amigo ferido no Hospital (eu tinha jogado às moedas
com ele para ver quem ia para Piche e quem ia para Catió), inteirei-me do que
tinha que fazer quando regressasse ao mato,
identifiquei o material e, passados uns dias lá fui de volta a Piche. Ainda
hoje não me consigo lembrar o que fiz e como foi.
Quando em Piche a missão ficou cumprida lá regressei finalmente e
Bissau, em princípio para ir (pensava eu, como me tinham prometido) para
Teixeira Pinto ou Bolama, como recompensa por ter sido destacado para zona
considerada problemática (aqui para nós, qual é que não era?), mas acabou por
me ser imposto o Centro
de Escuta. Mas isso é outra história.
O que importa é que essa viagem final, aquela
que me levou de vez de Piche a Bissau, também está obliterada. Não me consigo
lembrar o que fiz. Tenho uma vaga ideia de ter ido de coluna até Nova Lamego
mas depois suspeito que tomei um avião.
Portanto, como disse, isto da memória vem aos poucos, à
medida que se vai lendo e relacionando as coisas. Sendo assim, ao ler um post com
o relato de passagens do livro “Diário
de Guerra” de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins), lá aparece o
registo que no dia 10 de Maio de 1965 o autor desse livro esteve no HM 241.
Reza assim o tal registo:
“Hospital Militar de Bissau, para uma pequena intervenção
cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em
arregaçar.
Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo
nesta idade de quase um quarto de século.”
Esta anotação fez-me recordar que uma situação semelhante
se passou comigo e que afinal, não havendo naquele tempo Serviço Nacional de
Saúde nem tendo a esmagadora maioria dos pais dinheiro para gastar com médicos,
onde só se ia (os que iam) quando alguma doença mais visível aparecia, muitos
jovens daquela época tinham problemas parecidos e cuja resolução só seria
ultrapassada pelo tempo.
À data, antes da entrada no serviço militar, havia em
Vila Franca de Xira, onde vivia, um médico, carinhosamente conhecido como médico dos pobres, o Dr.
Rodrigues Pereira, pai de um homem muitas vezes citado no nosso Blogue,
principalmente através dos escritos do Beja Santos e da Cristina Allen, o Dr.
David Payne, que ajudava em muita coisa mas não era possível atender a tudo e a
todos.
Por isso, quando estava em Piche, alguns camaradas
relataram os seus problemas e como eles tinham sido resolvidos graças à
intervenção dos médicos do Batalhão que se disponibilizavam para o efeito.
Comecei também a ganhar coragem para me submeter à
necessária intervenção cirúrgica e fiquei esperando pela oportunidade. O BCAV
2922 tinha no seu quadro três Alferes Médicos, Hermano Gouveia, Fausto Gomes e
Roando Álvares, e havia um, pelo menos, sempre em permanência na sede do
Batalhão. Comecei a tentar convencer o Dr. Hermano mas acho que foi com o Dr.
Fausto que fui à faca.
Quando finalmente ficou acordado o dia, o que acham que
aconteceu? Uma coisa simples, como a relatada no livro do Cristóvão? “Ná”, nada disso!
O médico resolveu transformar aquela pequena intervenção
cirúrgica numa aula pública e de ensino colectivo.
Quando me encontrava deitado de costas em cima da marquesa,
em situação, digamos assim, indefesa, calças em baixo, com o médico e o Furriel
Enfermeiro Santana (já nos conhecíamos de Santarém) a começar os preparativos
para desinfecção e outros procedimentos, a sala de operações foi literalmente
invadida por todo o pessoal afecto ao serviço de saúde e também por mais meia
dúzia de outros amigos que se divertiram desinfectando tudo o que podiam. Aquilo
é que foi uma alegria! Tintura de iodo e outros desinfectantes pintando
desenhos vários no peito, barriga, umbigo (cá está o umbigo), pernas, enfim….
Nessa altura o Dr. disse que tinha boas e más notícias para
mim. É que não tinha agulhas finas para dar a injecção com o anestésico no local a cortar, o que
queria dizer que iria doer mais mas, por outro lado, sendo a agulha mais grossa
também corria menos riscos de se partir… Além disso, para compensar, iria
providenciar uma espécie de anestesia apropriada à circunstância, que me faria
não sentir a dor da própria injecção, coisa que na altura não percebi o que
podia significar.
Então, no meio daquela feira, daquela alegre confusão
(alegre para eles, que eu transpirava como se pode calcular e estava muito
apreensivo) o nosso Dr. faz um sinal com a cabeça ao Furriel Santana que se
encontrava ao meu lado direito e que me afinfa uma
valente cotovelada na zona do fígado, abaixo das flutuantes, que me tirou
literalmente o ar, provocou uma dor e uma contracção muscular por toda essa
zona que me fizeram ficar imóvel e, enquanto isso, o maquiavélico Dr. aplicava
a tal injecção com a agulha grossa.
Feito isso, que eu nem senti, passou a fazer o que tinha de
ser feito, cortando e cozendo e tudo correu depois como previsto.
Medicado e entrapado lá recebi a recomendação de agora, durante uns dias, nada de
esforços…”. Isso é que era bom… nessa mesma noite, o IN, como que
para entrar também na festa, lá resolveu fazer uma flagelação, com alguma
intensidade, e vá de ir para a vala de protecção, tentando rastejar o menos
possível. Resultado, um ponto rebentado e novos cuidados…
E pronto, este relato já está!
Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Valério Sousa
Por motivos óbvios não apresentamos fotos da intervenção a que foi sujeito o nosso camarigo Helder....