terça-feira, 3 de setembro de 2019

P1161: "FORÇA, CARLOS!"


ALCUNHAS DO TEMPO DA VIDA MILITAR 
QUE NÃO ESQUECEM / 4

O “MASSA BRUTA”

JERO
Como é normal na vida militar procurei nos primeiros tempos depois do regresso da Guiné, “filhos da terra”…

De Alcobaça não havia ninguém mas havia um “vizinho” a cerca de 20 kms. O Carlos Agostinho Vieira, da Batalha, que tinha sido “ Cabo Quarteleiro”.

As suas funções tinham a ver com o stock de munições, com o bom funcionamento das armas (conservadas com “massa consistente) e, eventualmente, com mais algumas coisas de que já não me lembro.

O Carlos Vieira era um indivíduo muito alto, pouco falador, que caminhava um tanto curvado e com quem não era fácil manter uma relação cordial. Era “fechado” e vivia fechado no “buraco” onde se guardavam as armas e munições da Companhia.

Cada um é como cada qual e o Carlos desempenhava as suas funções a contento. Era um bom Cabo Quarteleiro, que só dava nas vistas por ser um grande calmeirão. E caminhar curvado. E ser calado “como o caraças”…

Até que um dia, melhor dizendo numa noite, deu nas vistas. E não foi pela melhor das razões…

Numa operação que envolvia dois pelotões que saíam do quartel de Binta por volta da meia-noite, no máximo silêncio e com ocultação de luzes, apareceu na altura da saída para o mato com um “petromax” aceso para perguntar ao Capitão Tomé Pinto se era preciso mais alguma coisa.

Foi de imediato repreendido e mandado desaparecer, e quando começou a responder que ”tinha pensado”… o comandante de Companhia disse-lhe logo que ele não estava ali para pensar mas… para cumprir ordens.

A malta da tropa é cruel e a partir daquela madrugada passou a ser conhecido como o “Massa Bruta”. Está-se mesmo a ver porquê…

Também é verdade que, à distância no tempo, me parece que o Carlos Vieira não se importava por aí além com a alcunha “sacana” que lhe calhou…

Regressámos da Guiné em Maio de 1966 e estive alguns anos sem o ver.

Melhor dizendo, em vinte e muitos anos encontrei-o 3 ou 4 vezes nas reuniões anuais da malta da Companhia, que fazíamos todos os anos no primeiro domingo de Maio, em Lisboa, com concentração frente à Estátua dos Restauradores.

Fixei-me na zona de Alcobaça onde exerci a minha actividade profissional na SPAL durante trinta e muitos anos.

Depois de casar não houve mais tempo para corridas e o trabalho, a vida sedentária e os dotes da minha mulher para a cozinha levaram-me num curto espaço de tempo a um “ganhar um peso”, que esteve a 3 quilos dos 3 dígitos.

Com pequenas oscilações mantive-me com 97 kgs, por alguns anos, mas por volta dos 35 anos voltei ao desporto por duas razões: para emagrecer e… para não passar o resto da vida a comer cozidos e grelhados.

Dos 35 até cerca dos 50 anos fui praticante diário de “jogging”, também conhecido entre os “malucos das corridas” como “alta manutenção”.

Foram os tempos das meias maratonas da Nazaré. Corri umas dez - nunca desisti - e fiquei sempre entre os primeiros 3 mil concorrentes…

Fazia os 21 quilómetros do percurso entre 1H45 e 2H00, obviamente com muito sacrifício, pois correr durante 21.097 metros “não é pera doce”…

A última meia-maratona que corri foi “tão comprida” que, depois dos 17 kms, não me lembrava de nada. Corri essa parte final do percurso em “autêntico transe”…

Mais tarde falei nisso ao meu médico que me disse para ter juízo: «Faça caminhadas e deixe-se de corridas».  Foi o veredicto que terminou com a minha carreira de meio-maratonista…

Chegou a altura de passar a espectador e há uns dez anos atrás fui (involuntário) protagonista de um facto invulgar, que resolvo agora partilhar .

No entanto há ainda que esclarecer os que nunca andaram por este “mundo” das “meias-maratonas” que há corredores e… “corredores”.

 Os que lutam para os primeiros lugares correm cada Km. em cerca de 3 minutos e os outros – os corredores do pelotão – percorrem cada km. em 5 ou 6 minutos.

Quer isto dizer que com meia hora de corrida há corredores que vão nos 10 kms de percurso e outros – como era o meu caso – que apenas tinham percorrido cerca de 5 kms.

Está claro que, à medida que aumentam os quilómetros, aumentam as distâncias entre os mais rápidos e os outros – os lentos ou, também conhecidos na gíria das corridas, como “os coxos”.

Na Meia-Maratona da Nazaré – que foi a corrida onde se registou o tal “facto invulgar” ,que irei descrever em pormenor - era normal os atletas da frente cruzarem-se com os mais atrasados, dado que o percurso da prova era de ida e volta.

Explicando melhor, a partida fazia-se da Nazaré (então com uma volta dentro da vila de cerca de 5 kms) para se ir até Famalicão (onde estava um bidão que assinalava o “retorno”) e voltava-se em direção à Nazaré, onde estava instalada a meta.

Um dos melhores lugares para apreciar a corrida e o esforço dos corredores era (e é) na Quinta Nova. Nesse local os da frente passavam (e passam) com cerca de 16,5 kms percorridos e cruzavam (cruzam) com a rapaziada da cauda do pelotão que levava (e leva) então cerca de 9,5 kms de prova ainda a caminho do bidão (de Famalicão).

Nesse ano de 1994 ou 1995 “plantei-me” no cruzamento da Quinta Nova para ver a corrida e para incitar especialmente o Carlos Pereira (que trabalhava comigo na SPAL). É que nesse ano o Carlos Pereira corria para ficar entre os 10 primeiros, pois “valia” então uma hora e sete minutos na distância.

Avistei o grupo da frente – que englobava uns 10 ou 12 corredores – e lá vinha ele.
Tentei ganhar maior visibilidade no local onde me encontrava, levantei os braços e gritei: - “Força, Carlos! Força, Carlos!”

Julgo que nem me viu nem me ouviu. O esforço é grande e a concentração de quem corre àquele ritmo é enorme.

Mas na altura dos meus gritos de incitamento ouvi uma voz do outro lado da estrada a gritar para mim: - “Eh, Oliveira!”

Olhei de imediato e reconheci a voz e a pessoa. Era o Carlos Vieira, da Guiné. O “Massa Bruta”...

O meu de grito de “Força, Carlos!”, tinha encontrado eco (noutro Carlos), que corria no outro lado da estrada, no pelotão dos “coxos”, ainda a caminho do bidão de retorno de Famalicão.


Fiquei de boca aberta e tão surpreendido como ele. Ou ainda mais... Vim depois a caminho da meta. Para cumprimentar o Carlos Pereira (o colega da SPAL), que já tinha chegado e obtido a sua melhor classificação de sempre: - o 3º lugar da classificação geral (com 1h06m59s).

Esperei mais um bom bocado mas não consegui localizar o Carlos Vieira, da Batalha, o meu camarada dos tempos da Guiné. São 3.000 atletas na zona de chegada e muita confusão à mistura...

Voltei para casa. Não podia deixar de pensar naquela coincidência levada da breca. Três mil indivíduos a correr, sei lá com quantos “Carlos” lá pelo meio e tinha acontecido aquele coincidência extraordinária numa fração de segundo.

Gritar por um “Carlos”, que via todos os dias e que nem para mim olhou, e responder-me outro “Carlos”, que já não via há uma série de anos. Qual o cálculo de probabilidades de isto acontecer!? Não faço a mínima ideia.

Continuo a pensar que este incitamento para “forças” desencontradas acontecerá uma vez na vida. Mas que aconteceu… aconteceu!

E a fotografia não é montagem. Foi tirada por mim umas frações de segundo depois do meu grito de incitamento.

Tempos depois encontrei o meu camarada da Guerra da Guiné. A quem contei a história.

E o Carlos da SPAL que me desculpe mas o meu grito de incitamento - o “Força, Carlos!”- passou a ser mesmo só para o meu ex-camarada da Guiné.
JERO


1 comentário:

Hélder Valério disse...

Quem disse que "não há coincidências"?

Há pois, sim senhor. Só que umas vezes não ligamos e outras ganham a sua verdadeira dimensão.

Gostei de ler. E de ficar a saber que em 1994 ou 1995 já eras "corredor de bancada".... Com que então com quase 100 kg... e não foste para o rugby porquê?

Estou com curiosidade para ver qual a próxima alcunha...

Abraço, Jero!

Hélder Sousa