domingo, 25 de dezembro de 2016

P860: UM POEMA DO LÚCIO VIEIRA

INVENÇÃO DA LUZ
  


então eu disse aos véus da noite que rompessem
e nasceu o dia
calaram-se os gemidos e os canhões
silenciaram-se gritos e sirenes
depois do mais profundo da terra
brotou um cântico de vida

silêncio      ouçam
são ao longe os sinos que repicam
e depois o vento a murmurar
na seara que aloira

o vento
o mesmo que leva no dorso o milagre da esperança
e os sonhos das mães que nunca pariram

ouçam mais além o murmúrio do mar
que se amaina em delírios de bonança

e então eu digo
que venham poetas, que venham operários
que venham também os santos e os reis
que um cinzel de artista esculpa um novo hino

e que todos os homens da Terra
o façam ouvir no longe das estrelas

silêncio      escutai

já surgem ao longe os pastores
já se renderam os soldados
as flores irrompem nos pântanos
e nos penhascos todos de todas as serras
acendem-se já os arco-íris
enquanto na suave espuma do mar
purificam sábios e anjos e leprosos
                                                                                          
e os astros abriram-se
e eu disse aos lábios mudos que cantassem
e disse aos olhos de água que sorrissem
                                                    
escutai e vede que tudo foi assim
e que o mel se derramou no regaço das papoilas
                                                          

vinde
vinde e trazei o olhar puro
e as mãos transparentes
e o linho e o trigo e a água e o sol
e as veias abertas ao clamor da vida

vinde
libertos de algemas
de armas depostas
de feridas saradas
com palavras puras                         
e cânticos de amor

vamos      vinde
trazei na viagem o vosso inimigo
falai aos regatos e dizei aos ventos
que as palavras perderam o sentido



que se cantem d’ora avante
só canções de amor e salmos de luz
que a hora sublime é chegada

vinde
despidos e puros
sem rumos nem ódios
sem medos nem trevas
sem prazeres nem ouros

vinde     todos
rendei-vos à vida
párias e monges
loucos e poetas
operários e reis
soldados e virgens
e vós

vós também

vinde     apenas
vinde e enchei os olhos de milagre
porque agora mesmo
nas benditas mãos de uma mulher
acaba de nascer uma criança




                                                          António Lúcio Vieira
1980
1980

1 comentário:

Anónimo disse...

Lindo poema. Não tenho palavras para o descrever.
Apenas que é belo, este hino ao surgimento da vida.
O nascimento de uma criança, que pode bem ser, a do Deus Menino!..
Obrigado amigo por esta partilha.
Bom ano de 2017 para si e todos os nossos camarigos e suas famílias.
M. Arminda