SEIS HORAS NA VIDA DE UM MILITAR
Na parede de adobe,
mal caiada, e onde esverdeadas manchas de humidade alastravam, o calendário do ano de 1963 marcava uma data: 24 de Dezembro.
Com a janela aberta,
por onde apenas entrava, na abafada e sufocante noite tropical, uma suspeita de
frescura, o jovem oficial miliciano, à luz de uma vela, escrevia: «… Minha Querida Mãe, são 21 horas e 40…»
À luz de uma vela,
porque a chama do petromax é alvo demasiado visível para qualquer atirador
especial terrorista, alcandorado, ao longe, no cimo de alguma árvore. Mas
ouve-se um estampido. Podia bem ser a rolha de uma garrafa de champanhe a
saltar…
Ao estampido
segue-se, porém o assobio quase imperceptível de uma bala que vai cravar-se na
húmida parede de adobe, coisa de um metro acima da cabeça do oficial. Este
apaga logo a vela. Depois, às apalpadelas, no escuro, procura o capacete e a
pistola.
Quando finalmente sai
já o duelo – a tiros de espingarda e rajadas de metralhadora - está a travar-se
entre os terroristas (ocultos na floresta) e os seus soldados abrigados por
detrás da muralha – só aparentemente frágil – de velhos bidões de gasolina
cheios de areia. Entre uns e outros ergue-se a cerca de arame farpado.
Está isolada a
pequena força do destacamento de Caçadores. O posto mais próximo
é a muitos quilómetros de distância. Antes que amanheça, nenhum auxílio podem
esperar estes homens. Mas será que os terroristas se aprestam para um ataque
frontal?
Aos soldados e ao
oficial também, o que sobretudo os irrita é que aquele inoportuno tiroteio
aconteça em noite de Natal, já com a mesa posta para a consoada. E havia broas, uma
galinha assada, algumas garrafas de bom vinho.
A noite, entretanto,
povoa-se de clarões – as armas de fogo que disparam incessantemente,
assinalando cada segundo com um tiro. E as horas passam.
Mas o jovem oficial
nem tempo tem para ver as horas no pequeno mostrador luminoso do seu relógio de
pulso. E nem sequer pensa no perigo – ali entrincheirado e tendo pela frente um
inimigo bem armado, que conhece a palmos o terreno e vê de noite, como o
jaguar.
Agora só pensa
naquela carta que teve de interromper:
«…são 21 horas e 40…».
«…são 21 horas e 40…».
Mas quando é que isso
foi?
Era noite de Natal.
E agora? Sim. A
meia-noite deve estar próxima. Talvez o padre, algures, já esteja a
encaminhar-se para o altar. Mas o jovem oficial não o sabe de certeza – e não
pode ter um olhar para o mostrador luminoso do seu relógio de pulso. A
pistola-metralhadora palpita-lhe nas mãos como se fosse dotada de vida própria
e chispas de fogo, desdobradas em leque, correm, segundo a segundo, em direcção
à negra cortina de arvoredo.
No mundo em que não
há guerra já decerto agora o sacerdote acabou de celebrar a Missa do Galo.
Aqui, o fogo começa,
enfim, a esmorecer.
Naturalmente, os
terroristas principiam a retirar, para que os aviões ao amanhecer, se viessem
bombardear a floresta, já não os encontrem…
Uma a uma, calam-se
as armas automáticas do inimigo. Uma a uma, a intervalos certos, como se
houvesse, algures no mato, a batuta de um maestro.
Mas será de facto a
retirada? Não será antes o silêncio de mau agoiro que sempre antecede a
gritaria de um assalto frontal? Não. É efectivamente
a retirada.
E devagar, como se lhe custasse a acordar de
um pesadelo, o jovem oficial recolhe ao seu quarto, risca um fósforo, acende a
vela, atira para um canto o capacete, que está a queimar-lhe a testa, e suado,
exausto, com os nervos num feixe, senta-se, de novo, à mesa para escrever: «… pois agora, minha querida mãe, são 3 horas
e 20. Eu e os meus soldados tivemos uma noite de Natal muito divertida. Nem
imagina… As broas que nos mandou souberam a pouco. E das garrafas mandadas pelo
pai, diga-lhe que não ficou nem uma gota».
21 horas e 40. 3 horas e 20.
Menos de seis horas na vida de um homem. Mas
deitado numa padiola, com uma bala na cabeça, o Manuel, o seu impedido, é um
corpo que rapidamente arrefece, como no verso de Fernando Pessoa.
Artigo não assinado. Publicado em «O ALCOA» em 8 de
Fevereiro de 1964 (Ano XVII-Nº.876), quinzenário da região de Alcobaça onde
colaborei durante muitos anos.
NOTA FINAL-Fiz
muitas pesquisas para descobrir dois mistérios que resultam deste artigo de O
ALCOA”:
1) Quem é o
Alferes Miliciano?
Só pode ser da
região de Alcobaça. Terá regressado à Metrópole num navio que deixou Bissau em
Janeiro de 1964.Há um navio que saiu de Bissau em 17 de Janeiro de 1964.
Já localizei as
Companhias e Pelotão de Morteiros que regressaram nessa altura. Esses militares
estiveram cerca de dois anos na Guiné onde a guerrilha começa a ter importância
no terreno a partir dos primeiros meses de 1963.
(C.Caç. 600,
C.Caç. 512, C.Caç. 506, C.Caç. 513, C.Ca. 356, C.Caç. 599.)
Para se ser
Alferes Miliciano nesse tempo era preciso ter habilitações literárias no mínimo
equivalentes ao 3º. Ciclo dos Liceus (antigo 7º. Ano).
Pesquisei no
arquivo da C. M. de Alcobaça os registos de mancebos respeitantes aos anos de
1958, 1959, 1960 e 1961.
Encontrei vários
nomes, consegui alguns contactos pessoais mas... nada.
2)
Quem é o militar que morreu na véspera de Natal de 1963?
Nos registos
oficiais do E.M.E. só há um militar das milícias locais que morreu por acidente
em 24 de Dezembro de 1963 – JARGA SEIDI, soldado-atirador da CCS/Bat. Baç. 508,
em Contubel.
Com nome de Manuel
há um registo em 28 de Dezembro de 1963:
MANUEL RAMALHO CAPELAS,1º.CABO-ATIRADOR,
CCAV 567, BINAR.DATA DE FALECIMENTO – 28 DE DEZEMBRO DE 1963.FERIDO EM COMBATE
(Mortos em Campanha – Guiné – livro 1,
pgs.42).
Não é impossível um engano nos registos mas não é nada vulgar…
Há outras “incoerências” que não encaixam na história: Binar não é um
posto fronteiriço e um primeiro-cabo não era habitual ser “impedido” de um
Alferes. Por outro lado a CCav 567 só acabou a sua comissão em meados de 1965!
Resumindo e concluindo: Passo a minha angústia e o meu mistério à nossa
Tabanca do Centro. Alguém alguma vez ouviu alguma coisa deste ataque a uma
pequena força de um destacamento de Caçadores na noite de Natal de 1963?
«…Menos de seis horas na vida de um homem. Mas deitado numa padiola,
com uma bala na cabeça, o Manuel, o seu impedido, é um corpo que rapidamente
arrefece, como no verso de Fernando Pessoa.»
«…Malhas que o Império tece
(O Manuel) Jaz morto e apodrece…».
___________
A minha intenção ao
evocar o “Soldado Desconhecido” desta história – o Manuel – é acima tudo de
homenagem e de respeito. Se não houver respeito - melhor ainda, se não houver
grandeza de alma e memória - Portugal não
merece os que morreram em seu nome.
José
Eduardo Reis de Oliveira (JERO)
Fur
Mil Enf da CCAÇ 675
1 comentário:
Amigo Jero.
Li com um sentimento de tristeza, o seu relato acerca deste "Manuel,militar desconhecido", da nossa conhecida guerra na Guiné.
Em 1962/63 1963, foi a minha primeira permanência em Bissau, mas não tenho memória desse facto, para ajudar na grande pesquisa que já fez e que é bem demonstrativa do seu grande empenho em trazer ao nosso conhecimento factos de uma história recente, que diz bastante, a muitos camarigos!..
Era hábito nas nossas datas festivas, de Natal e Páscoa, haver tiroteios, como descreve. Recolheram-se feridos e terão por certo, havido mortos.
Hoje, ante véspera de Natal, a sua narrativa fez-me pensar nas várias cartas que terão sido, escritas às mães e sobretudo naquelas que receberam notícias, mas não os seus filhos vivos, no final das comissões!.. Por certo muitas já não estarão entre nós, mas durante as suas vidas, os seus "Natais",não terão sido alegres!..
O Manuel estará em paz e o amigo Jero, presta-lhe deste modo, uma sentida Homenagem.
Um abraço e Bom Natal.
Mª Arminda
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