CARTAS
ANÓNIMAS
Devido
às minhas funções de Enfermeiro lidei com um caso que nunca mais esqueci. Por ter
sido um caso humano complicado mas também por estar envolvido um amigo. Amigo
que passou um mau bocado na Guiné, "mau bocado" que se veio a
reflectir na sua vida pessoal depois do regresso. Arrisco até a dizer que essa
"carta anónima" terá influenciado toda a sua vida.
Mas
vamos por partes.
Toda
a gente sabe da importância que o correio tinha para os militares. Para
a gente nova há que recordar que nesses velhos tempos não havia cabines
telefónicas nos quartéis nem telemóveis nem nada que se parecesse! Havia
aerogramas e cartas que nos chegavam uma vez por semana!
Na
minha Companhia estabeleceu-se um calendário para os dias da semana que, sendo
brincalhão, dizia tudo em relação ao assunto:
Domingo - Dia da Bandeira; Segunda-feira
- Antevéspera do Correio; Terça-feira -Véspera do Correio; Quarta-feira - Dia
do Correio; Quinta-Feira - Dia do São Comprimido*; Sexta-Feira = Sexta-Feira e Sábado - Véspera
do Dia da Bandeira e Saída do Correio.
(*Em relação ao Dia do São
Comprimido recordo que se tomava resoquina para evitar o paludismo).
O
correio chegava-nos “pelo ar” em sacos que eram atirados das avionetas para
“dentro” dos quartéis.
Sobre
o assunto encontrei um relato do Coronel Miguel Pessoa, que aqui transcrevo:
«Nas missões que levavam a efeito por todo o território da Guiné os pilotos sabiam da importância que a chegada do correio tinha para o pessoal exilado nos locais mais recônditos, por ser o principal (às vezes o único) elo que tinham com a civilização.
«Nas missões que levavam a efeito por todo o território da Guiné os pilotos sabiam da importância que a chegada do correio tinha para o pessoal exilado nos locais mais recônditos, por ser o principal (às vezes o único) elo que tinham com a civilização.
Sucedeu comigo por várias vezes quando voava no DO-27 que, sobrevoando o território no percurso para o aeródromo de destino, ao passar sobre um aquartelamento, era interpelado por um operador de rádio mais ansioso, de que geralmente resultava uma conversa encriptada, mais ou menos nestes termos:
- Águia, Águia (ó aviador), aqui XX (código do quartel), informe se tem Sierra (serviço) para este?
- OK. Confirme que não tem Charlie (correio) para este?
- XX, Águia, negativo
- OK, Águia, Óscar
Bravo (obrigado), o Charlie (Comandante) manda uma Alfa Bravo (Abraço) e deseja
um Bravo Victor (boa viagem)
- XX, Águia, um Alfa Bravo para vocês. Terminado.
Deve-se reconhecer que os SPM (Serviços Postais Militares) tinham em consideração, sempre que possível, a necessidade que o pessoal tinha de receber notícias fresquinhas - das famílias, das namoradas, dos amigos. Por isso, estava bem organizada a distribuição dos sacos do correio, de modo a embarcarem no primeiro avião disponível para o local.
Para além de embarcarem o correio de
acordo com as missões planeadas, sempre que surgiam missões inopinadas (como as
evacuações ou um transporte inesperado), as Operações do GO1201 alertavam os
SPM e estes, sempre que possível, levavam à placa onde se encontrava o AL-III
ou o DO-27 o correio para o aquartelamento em causa, por vezes também para
outros aquartelamentos próximos, a quem o correio seria enviado por terra, a
partir do primeiro.
Também por vezes os pilotos tinham a iniciativa de mandar embarcar os sacos de correio dirigidos a outros locais em que não iríamos aterrar, mas que sobrevoaríamos; claro que não se adequava levar encomendas frágeis, que se pudessem partir, pois a ideia era desembarcarmos o saco pela porta lateral quando passássemos a baixa altitude por cima da área do aquartelamento. Mas para o simples correio era uma boa solução de recurso, principalmente em locais isolados sem pista.
Enfim, foi tudo por uma boa causa, que era afinal a de mitigar as saudades dos nossos camaradas em terra por tudo aquilo que tinham deixado lá longe.»
Completado (mais ou menos) o contexto
devido para o tema que dá o título a esta crónica, recordo que a melhor maneira
de lidar com cartas anónimas era (é) ignorá-las. É tão óbvio que seria
desnecessário referi-lo.
Mas numa situação de guerra a milhares de
quilómetros da casa quem é que consegue ser tão cerebral?!
Faltavam cerca de 3 meses para o final
da comissão. Em cada dia que passava sentíamo-nos mais perto de casa! Na qualidade de enfermeiro e de amigo
fui procurado por um camarada que me confessou estar "arrasado"
devido ao correio recebido no dia anterior. Uma carta anónima dum "amigo
sem nome" dizia-lhe que a sua noiva não estava a respeitá-lo e que andava
envolvida com outro homem!
Mais do que medicamentos o que aquele
militar precisava era a de uma mão amiga no ombro. E teve-a.
Chegou o dia por que esperámos durante 2
anos e com os nossos corações entre angustiados e esperançosos atravessámos o
Oio - sempre na expectativa de uma emboscada ou de uma mina - a caminho de Bissau para embarcar no "Uige". Tudo
correu bem e… cinco dias depois desembarcámos em Lisboa onde nos esperavam as
nossas famílias, as namoradas e amigos.
Cada qual foi à sua vida. Durante o ano
seguinte corremos Portugal inteiro para estarmos presentes nos casamentos de
uns e de outros.
O meu amigo da "carta anónima"
foi o último a casar nesta revoada de matrimónios dos ex-combatentes da Guiné. E não contraiu casamento com a
"noiva da Guiné" mas com outra jovem que entretanto conheceu.
Os anos passaram e voltei a encontrá-lo
várias vezes. Já pai de vários filhos, cada vez mais careca e barrigudo. E a
partir de certa altura senti-o um homem só.
"O que se passa contigo, pá?"
Ele olhou-me um bocado antes de
responder e disse-me: - "Lembras-te da "carta anónima!? Não devia ter feito o que fiz. Ela era
a mulher da minha vida… Bem gostava de saber quem foi o sacana que escreveu a
tal carta. E sabes que ainda a guardo!"
Fiquei sem palavras. E depois de ele se
afastar apeteceu-me dizer-lhe: Porque é que não a procuras?
Espero que ele - ou ela - nunca leiam
este texto...
JERO
5 comentários:
Ai Jero, quase arriscava a dizer que o autor ou autora da carta anónima era alguém feminino interessado nele, ou alguém masculino interessado nela ou por ela afastado nos seus "avanços", enquanto o namorado estava na guerra.
Houve alguns casos desses, como ainda hoje em dia ainda há as "amigas" e os "amigos", que só querem o "nosso bem" e por isso têm que contar essas "verdades" que a maior parte das vezes são mentiras!
Esses são os verdadeiramente chamados "filhos da mãe"!
Grande abraço
Joaquim
Estou furiosa com o meu computador. Já são três vezes que quero colocar o comentário. Abraço ao Jero e Miguel. Mª Arminda
A estória aqui colocada, da carta anónima, causou sofrimento ao amigo do Jero. Foi muito má a ação de quem a escreveu. O desfecho daquele namoro, podia ter sido diferente!..
Grande era o empenhamento dos pilotos para fazerem chegar aos locais, o tão ansioso correio. Viajei com alguns sacos, a caminho de evacuações de feridos e vi com que ansiedade os militares esperavam por notícias. Um abraço para ambos Jero e Miguel. Mª Arminda
Boa noite Camarigos
Já a sonhar com o nosso Convívio de amanhã quero aqui e agora agradecer os comentários do Joaquim Mexia Alves e da Maria Arminda.
Grato por me lerem e comentarem.
JERO
Em relação ao Anónimo(a) que disse estar furiosa com o meu computador por não conseguir deixar o seu comentário agradeço a tentativa e perante o tema em questão - cartas anónimas -não deixa de ter a sua piada!
Abraço GRANDE.
JERO
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