segunda-feira, 23 de novembro de 2015

P728: DO AMIGO... DA ONÇA

CARTAS ANÓNIMAS

JERO
Nunca vi este tema ser tratado em "blogs" de ex-militares.

Devido às minhas funções de Enfermeiro lidei com um caso que nunca mais esqueci. Por ter sido um caso humano complicado mas também por estar envolvido um amigo. Amigo que passou um mau bocado na Guiné, "mau bocado" que se veio a reflectir na sua vida pessoal depois do regresso. Arrisco até a dizer que essa "carta anónima" terá influenciado toda a sua vida.
Mas vamos por partes.

Toda a gente sabe da importância que o correio tinha para os militares. Para a gente nova há que recordar que nesses velhos tempos não havia cabines telefónicas nos quartéis nem telemóveis nem nada que se parecesse! Havia aerogramas e cartas que nos chegavam uma vez por semana!

Na minha Companhia estabeleceu-se um calendário para os dias da semana que, sendo brincalhão, dizia tudo em relação ao assunto:

Domingo - Dia da Bandeira; Segunda-feira - Antevéspera do Correio; Terça-feira -Véspera do Correio; Quarta-feira - Dia do Correio; Quinta-Feira - Dia do São Comprimido*;  Sexta-Feira = Sexta-Feira e Sábado - Véspera do Dia da Bandeira e Saída do Correio.

(*Em relação ao Dia do São Comprimido recordo que se tomava resoquina para evitar o paludismo).

O correio chegava-nos “pelo ar” em sacos que eram atirados das avionetas para “dentro” dos quartéis.

Sobre o assunto encontrei um relato do Coronel Miguel Pessoa, que aqui transcrevo:

«Nas missões que levavam a efeito por todo o território da Guiné os pilotos sabiam da importância que a chegada do correio tinha para o pessoal exilado nos locais mais recônditos, por ser o principal (às vezes o único) elo que tinham com a civilização.

Sucedeu comigo por várias vezes quando voava no DO-27 que, sobrevoando o território no percurso para o aeródromo de destino, ao passar sobre um aquartelamento, era interpelado por um operador de rádio mais ansioso, de que geralmente resultava uma conversa
 encriptada, mais ou menos nestes termos:

- Águia, Águia (ó aviador), aqui 
XX (código do quartel), informe se tem Sierra (serviço) para este?

- XX, Águia, negativo

- OK. Confirme que não tem Charlie (correio) para este?
                                   
- XX, Águia, negativo

- OK, Águia, Óscar Bravo (obrigado), o Charlie (Comandante) manda uma Alfa Bravo (Abraço) e deseja um Bravo Victor (boa viagem)

- XX, Águia, um Alfa Bravo para vocês. Terminado.

E lá continuava eu para o meu destino deixando para trás um interlocutor desiludido.

Deve-se reconhecer que os SPM (Serviços Postais Militares) tinham em consideração, sempre que possível, a necessidade que o pessoal tinha de receber notícias fresquinhas - das famílias, das namoradas, dos amigos. Por isso, estava bem organizada a distribuição dos sacos do correio, de modo a embarcarem no primeiro avião disponível para o local.

Para além de embarcarem o correio de acordo com as missões planeadas, sempre que surgiam missões inopinadas (como as evacuações ou um transporte inesperado), as Operações do GO1201 alertavam os SPM e estes, sempre que possível, levavam à placa onde se encontrava o AL-III ou o DO-27 o correio para o aquartelamento em causa, por vezes também para outros aquartelamentos próximos, a quem o correio seria enviado por terra, a partir do primeiro.

Também por vezes os pilotos tinham a iniciativa de mandar embarcar os sacos de correio dirigidos a outros locais em que não iríamos aterrar, mas que sobrevoaríamos; claro que não se adequava levar encomendas frágeis, que se pudessem partir, pois a ideia era
 desembarcarmos o saco pela porta lateral quando passássemos a baixa altitude por cima da área do aquartelamento. Mas para o simples correio era uma boa solução de recurso, principalmente em locais isolados sem pista.

Enfim, foi tudo por uma boa causa, que era afinal a de mitigar as saudades dos nossos camaradas em terra por tudo aquilo que tinham deixado lá longe.»

Completado (mais ou menos) o contexto devido para o tema que dá o título a esta crónica, recordo que a melhor maneira de lidar com cartas anónimas era (é) ignorá-las. É tão óbvio que seria desnecessário referi-lo.

Mas numa situação de guerra a milhares de quilómetros da casa quem é que consegue ser tão cerebral?!

Não refiro pormenores pois não seriam exactos dado o muito tempo que entretanto se passou.

Faltavam cerca de 3 meses para o final da comissão. Em cada dia que passava sentíamo-nos mais perto de casa! Na qualidade de enfermeiro e de amigo fui procurado por um camarada que me confessou estar "arrasado" devido ao correio recebido no dia anterior. Uma carta anónima dum "amigo sem nome" dizia-lhe que a sua noiva não estava a respeitá-lo e que andava envolvida com outro homem!

Mais do que medicamentos o que aquele militar precisava era a de uma mão amiga no ombro. E teve-a.

Chegou o dia por que esperámos durante 2 anos e com os nossos corações entre angustiados e esperançosos atravessámos o Oio - sempre na expectativa de uma emboscada ou de uma mina - a caminho de  Bissau para embarcar no "Uige". Tudo correu bem e… cinco dias depois desembarcámos em Lisboa onde nos esperavam as nossas famílias, as namoradas e amigos.

Cada qual foi à sua vida. Durante o ano seguinte corremos Portugal inteiro para estarmos presentes nos casamentos de uns e de outros.

O meu amigo da "carta anónima" foi o último a casar nesta revoada de matrimónios dos ex-combatentes da Guiné. E não contraiu casamento com a "noiva da Guiné" mas com outra jovem que entretanto conheceu.

Os anos passaram e voltei a encontrá-lo várias vezes. Já pai de vários filhos, cada vez mais careca e barrigudo. E a partir de certa altura senti-o um homem só.

Ganhei coragem e pus-lhe uma mão no ombro.
"O que se passa contigo, pá?"

Ele olhou-me um bocado antes de responder e disse-me: - "Lembras-te da "carta anónima!? Não devia ter feito o que fiz. Ela era a mulher da minha vida… Bem gostava de saber quem foi o sacana que escreveu a tal carta. E sabes que ainda a guardo!"

Fiquei sem palavras. E depois de ele se afastar apeteceu-me dizer-lhe: Porque é que não a procuras?

Espero que ele - ou ela - nunca leiam este texto...

JERO

5 comentários:

joaquim disse...

Ai Jero, quase arriscava a dizer que o autor ou autora da carta anónima era alguém feminino interessado nele, ou alguém masculino interessado nela ou por ela afastado nos seus "avanços", enquanto o namorado estava na guerra.

Houve alguns casos desses, como ainda hoje em dia ainda há as "amigas" e os "amigos", que só querem o "nosso bem" e por isso têm que contar essas "verdades" que a maior parte das vezes são mentiras!

Esses são os verdadeiramente chamados "filhos da mãe"!

Grande abraço
Joaquim

Anónimo disse...

Estou furiosa com o meu computador. Já são três vezes que quero colocar o comentário. Abraço ao Jero e Miguel. Mª Arminda

Anónimo disse...

A estória aqui colocada, da carta anónima, causou sofrimento ao amigo do Jero. Foi muito má a ação de quem a escreveu. O desfecho daquele namoro, podia ter sido diferente!..
Grande era o empenhamento dos pilotos para fazerem chegar aos locais, o tão ansioso correio. Viajei com alguns sacos, a caminho de evacuações de feridos e vi com que ansiedade os militares esperavam por notícias. Um abraço para ambos Jero e Miguel. Mª Arminda

Anónimo disse...

Boa noite Camarigos
Já a sonhar com o nosso Convívio de amanhã quero aqui e agora agradecer os comentários do Joaquim Mexia Alves e da Maria Arminda.
Grato por me lerem e comentarem.
JERO

Anónimo disse...

Em relação ao Anónimo(a) que disse estar furiosa com o meu computador por não conseguir deixar o seu comentário agradeço a tentativa e perante o tema em questão - cartas anónimas -não deixa de ter a sua piada!
Abraço GRANDE.
JERO