domingo, 7 de junho de 2015

P662: CRÓNICAS DO JOSÉ BELO

As trocas de correspondência com o nosso “correspondente” na Lapónia – José Belo – já transformadas em postes recentemente publicados neste blogue, têm-nos proporcionado um maior conhecimento da realidade daquela região. Vem esta conversa a propósito de uma pergunta que lhe fizemos há pouco tempo sobre o consumo de leite pelos habitantes da região, nomeadamente o leite de rena, o que proporcionou uma resposta que, pela sua extensão, justifica a sua divisão em dois postes. Assim, vamos hoje saber a resposta à pergunta que tínhamos formulado sobre o consumo de leite, deixando para próxima edição a descrição pormenorizada que este nosso camarigo faz da rena,  pelos vistos um animal que é  pau para toda a obra…

FALANDO DE LATICÍNIOS NA LAPÓNIA


Na alimentação escandinava o leite, queijo, manteiga, iogurte e todos os possíveis derivados têm uma posição muito importante com base numa enorme criação de gado vacum que, tanto no caso sueco como norueguês, é efectuada nas metades sul dos respectivos países.

Até à segunda guerra mundial o isolamento da Lapónia era quase total. A alimentação dos lapões baseava-se até então exclusivamente nos recursos locais.

O leite de rena é pobre em lactose (2,4%) o que é cerca de 1/3 da lactose contida no leite humano, e metade da existente no leite de vaca. Tem no entanto 22% mais de gordura que o leite de vaca.

O problema é que cada rena produz cerca de um decilitro de leite por mugidela/dia enquanto uma cabra produz cerca de um litro de leite por mugidela/dia.

Tendo em conta estas quantidades vinha-se a entrar em conflito com as necessidades das crias das renas na Primavera e Verão.

Os lapões até 1965 utilizavam uma raça de cabras de pelo longo, que estava bem adaptada ás condições locais, para o consumo de leite e queijos. Estas cabras acompanhavam as famílias quando das deslocações das manadas de renas. 

Das cabras os lapões usavam o leite, as peles e os cornos (para guardar pólvora), mas não consumiam a sua carne, que davam aos cães. 

É claro que estas cabras, apesar de resistentes e de boa pelagem, não aguentavam os Invernos locais. Chegado esse período do ano as cabras eram colocadas em aldeias de lapões sedentários, ou em casas de suecos com quem os lapões tinham contactos durante as suas deslocações com as manadas. Isto, em troca de um pagamento efectuado pelos donos das cabras em peles e carne de rena.

O leite de rena é hoje usado localmente como tempero adicional para molhos. Tem um sabor agradável a ervas e bagas, o que o torna muito apreciado nos hotéis e restaurantes turísticos quando servido com carnes, tanto de rena, de alce ou perdiz da neve.

O governo central sueco só permitia  um número máximo de cinco (!) cabras por família, mais numa demonstração do poder "colonial" do que de preocupações ambientais, inexistentes naquelas épocas.

Hoje as realidades locais são outras. Mas até 1968 (!!!) era uma outra história, e isto com o detalhe escandaloso de então a Suécia ser quem mais activamente trabalhava nas Nações Unidas e outras instituições internacionais contra as injustiças sobre os povos do terceiro mundo.

Sei bastante - e de forma detalhada - de tudo o que com esta região está ligado, tanto historicamente, como culturalmente, e não menos nas suas ligações jurídicas com os poderes centrais em Estocolmo, Oslo, Helsínquia e Moscovo. Os paralelos com a nossa administração colonial - ou com o que se passou nos Estados Unidos ou Brasil em relação aos índios - são inúmeros.

Tive a oportunidade de olhar a situação local dos dois lados da barricada, o que nem sempre foi fácil.

Como jurista, tive nos tempos livres do meu trabalho nos States, muitas ocasiões em que pude, a meu modo, contribuir para alguns dos enquadramentos legais que acabaram por levar a uma modificação da situação escandalosa anterior.

Muito de concreto poderia escrever sobre isto, por ter vindo a acompanhar de muito perto as evoluções a níveis jurídicos e constitucionais. Mas vamos ficar por aqui agora...
  Um abraço do  
    José Belo  

2 comentários:

Joaquim Mexia Alves disse...

Continuam sempre muito interessantes estas "conversas" com o José Belo.

É pena os Lapões não saberem fazer chanfana, porque sempre dariam bom uso à tal carne de cabra!

Grande abraço
Joaquim

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.