segunda-feira, 9 de março de 2015

P621: II TERTÚLIAS "A HISTÓRIA SOMOS NÓS"

EM LEIRIA: SESSÃO SOBRE O
SERVIÇO DE SAÚDE NO ULTRAMAR

No passado dia 27 de Fevereiro iniciaram-se as sessões organizadas pela Livraria Arquivo e pelo Núcleo de Leiria da Liga de Combatentes, integradas nas II tertúlias "A História Somos Nós", a decorrer ao longo do presente ano. Estas sessões contam ainda com o apoio do "Jornal de Leiria". Para conhecerem o programa previsto para 2015, vejam aqui.

Esta primeira sessão era dedicada ao tema "O serviço de saúde no ultramar" e para ela foram convidados os Dr. José Lourenço, Dr. Américo Órfão, e os nossos camarigos José Eduardo Oliveira (JERO) e Giselda Pessoa. Presidia à mesa o TCor. Mário Ley Garcia, presidente do Núcleo de Leiria da Liga de Combatentes e nosso camarigo da Tabanca do Centro.

Com assistência ainda reduzida na hora de início da sessão, a sala acabou por compor-se razoavelmente, um pouco por obra do pessoal da Tabanca do Centro que ali se deslocou. 

Correndo o risco de falhar algum, lembramos que, para além dos três já mencionados, presentes na mesa, se deslocaram à Livraria Arquivo o régulo da Tabanca do Centro, Joaquim Mexia Alves, Agostinho Gaspar, Vitor Caseiro, António Nobre, Carlos Santos, Paulo Moreno e este vosso escriba, Miguel Pessoa.

Com a devida vénia à autora, Maria Anabela Silva, e ao Jornal de Leiria, transcrevemos o texto que sobre este evento foi publicado naquele periódico no passado dia 5 de Março:

Tertúlia debateu sistema de saúde durante a guerra colonial
Tentar salvar os outros e evitar levar um tiro

“O chefe da tabanca tinha um tiro no peito. Cada vez que respirava, parecia ver-lhe o pulmão. Estava moribundo. Sentei-o encostado a uma árvore e dei-lhe uma injecção de morfina. Nunca mais esquecerei o seu olhar. Não vi o ódio na sua expressão. Vi a resignação e um cansaço imenso. Pareceu-me preparado para morrer com dignidade. Afinal, era o chefe. O último olhar que trocámos ficou-me gravado na alma”. In Golpes de Mão's, de José Eduardo Reis de Oliveira

Foi com o excerto do seu livro Golpes de Mão's que José Eduardo Oliveira, conhecido em Alcobaça como JERO, terminou a sua intervenção na última tertúlia do ciclo A história somos nós – da Guerra Colonial à Manutenção da Paz, realizada na passada sexta--feira, e que desta vez debateu o sistema de saúde durante o conflito no Ultramar.



À mesa, estiveram os médicos José Esperança Lourenço e Américo Órfão, o enfermeiro de guerra José Oliveira e Giselda Pessoa (enfermeira pára-quedista), que recordaram as suas experiências nos vários teatros do guerra, muitas vezes preocupados em tentar salvar vidas e, ao mesmo tempo, em não serem atingidos. Umas vezes com sucesso. Outras, pelo contrário, com finais tristes, como aquele episódio recordado por José Oliveira, vivido no dia em que o seu batalhão atacou uma aldeia na Guiné. “Depois de uma troca de tiros, ficámos com 70 prisioneiros. Havia feridos. Vi-me, um miúdo de 24 anos, a ter de me armar em Deus, a decidir quais os que ficavam e os que vinham connosco. Entre os feridos, estava o chefe da tabanca, que vinha muito ferido”, recordou o antigo enfermeiro de guerra, que também não esquece a epidemia de sarampo, que vitimou 60 crianças.

Muito menos dramática foi a situação com que se debateu José Esperança Lourenço quando chegou a Marrupa, Moçambique, onde desempenhou funções de delegado de saúde e de médico no hospital militar. “Havia uma quantidade elevada de militares com doenças venéreas. Falei com o administrador para podermos tratar também as mulheres. Pensei que iria encontrar meia dúzia. Afinal, era uma fila interminável, mas consegui acabar com as venereologia”, conta o médico estomatologista, frisando que esta era uma problemática frequente entre os militares.

José Oliveira nota que, quando os havia, os preservativos eram de “muito má qualidade”, pelo que os contágios eram frequentes. E, sempre que isso acontecia, os médicos tinham a “obrigação” de participar a situação e os soldados “apanhavam dez dias de prisão”. E, como era fazer medicina num tempo e em territórios em que escasseavam recursos, em que quase não havia antibióticos - com excepção da penicilina, descoberta poucos anos antes - nem meios auxiliares de diagnósticos?

“Dava-se o máximo, com o pouco que se tinha, para ajudar feridos e doentes, fossem eles soldados ou civis”, diz Américo Órfão, para quem comparar a medicina dessa época com a actual “é comparar uma bicicleta com um Chevrolet”. “Hoje, quando se receita um medicamento temos uma grande certeza de que vai fazer algum efeito. Naquele tempo, as opções de tratamento era muito poucas”, alega o médico de Leiria.

Além da escassez de recursos, havia ainda a dificuldade acrescida quando o socorro era prestado durante os ataques e se tinha de “tentar salvar os outros” e, ao mesmo tempo, procurar “não levar um tiro”, nota José Oliveira.

Foi num cenário desses que viveu um outro episódio marcante durante a sua missão na Guiné. “Era madrugada e estávamos no mato. O nosso guia, um guineense, levou um tiro no peito e chamaram-me. Pela primeira vez, percebi que não podia fazer nada. Fiquei encharcado em sangue, com as balas a passarem-me por cima”, conta.

Numa nota menos dramática, José Oliveira recorda as dores de barriga que, habitualmente, assolavam as tropas em dias de combate. Uma maleita que tratava com “aspirina número 8”, nas suas diversas variantes - “aspirina para o medo dos oficiais, aspirina para o medo dos sargentos e aspirina para o medo dos soldados” -, que funcionava como placebo.

Apoio às populações A par do auxílio aos soldados, os serviços médicos e de enfermagem das tropas portuguesas tiveram também um papel preponderante no apoio às populações locais, como testemunharam vários dos intervenientes na tertúlia, organizada pelo Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes, em parceria com a Livraria Arquivo e com o apoio do JORNAL DE LEIRIA.

Joaquim Mexia Alves, que esteve na Guiné, considera que a população local “beneficiou muito” com os serviços de saúde portugueses. “Um elemento da população que tivesse uma doença ou ficasse ferido em cerca de duas horas era evacuado para Bissau”, referiu aquele antigo combatente.

Giselda Pessoa, que foi enfermeira pára-quedista, nota que até as populações de outros países que viviam nas fronteiras com as antigas colónias recebiam apoio. “Chegámos a evacuar pessoas do Senegal para Bissau. Mulheres grávidas, por exemplo”, conta a antiga enfermeira, que recorda a sensação de alívio com que ela e as colegas eram recebidas durante as evacuações de soldados feridos. “Sentiam-se seguros quando nos viam. Alguns deles mantinham-se conscientes até à nossa chegada, pensando que, se chegássemos, estariam safos”.

Testemunho: “Casei com a enfermeira”

Piloto da Força Aérea, o coronel Miguel Pessoa participou em muitas evacuações de feridos. Mas, houve um dia que viveu na pele a experiência de ser ele o evacuado, quando o avião em que seguia foi abatido por um míssil. A aeronave caiu no mato, mas o piloto (o então tenente Miguel Pessoa) seria resgatado pelas forças portuguesas, sendo transportado de helicóptero até Bissau, onde recebeu assistência no hospital militar. 

“O método foi expedito. Correu tudo bem. Tão bem que casei com a enfermeira que fez a evacuação”, recordou Miguel Pessoa durante a tertúlia realizada na Livraria Arquivo sobre o sistema de saúde durante a guerra colonial. Num dos dois helicópteros onde fez a viagem até Bissau seguia Giselda Pessoa, enfermeira pára-quedista, com quem viria a casar (na foto, durante o resgate a Miguel Pessoa).


Conclusões da Tertúlia do dia 27FEV15, apresentadas pelo moderador da sessão,
TCor. Ley Garcia

A Tertúlia do dia 27FEV15 foi dedicada ao apoio de saúde durante a Guerra do Ultramar, nomeadamente, o acesso aos cuidados de saúde dos colonos e das populações nativas.
Foram debatidas questões como:

·    Se a formação dos médicos em Portugal era adequada para desempenhar a função de médico no Ultramar;
·       Se a informação dos militares acerca das doenças venéreas era adequada para os problemas que eles iam lá encontrar;
·        Se havia boas estruturas de apoio à saúde;
·        Se havia muita diferença de meios de apoio à saúde de região para região;
·       Se os serviços de saúde apenas apoiavam os militares ou também os civis brancos e negros;
·      Que meios é que os Enfermeiros tinham ao seu dispor para dar apoio directo aos feridos nos locais onde os ia buscar ou apoiar;
·     Qual a autonomia que os Enfermeiros tinham no que respeita à decisão de colocar o evacuado do modo mais rápido no hospital, tendo em conta a gravidade do seu estado;
·        Como teria sido o apoio médico se já tivessem os meios de diagnóstico atuais.

No final foi possível concluir que:

·     Era necessário os médicos terem formação complementar por causa das doenças tropicais e das condições que iriam lá encontrar;
·    Apesar de alguma informação dadas aos militares, a maior parte deles não se sabia precaver de forma adequada para evitar as doenças venéreas;
·      Era complicado combater as doenças venéreas por haver “profissionais” que chegavam a deslocar-se de avião para onde os militares estavam colocados, facilitando a transmissão da doença. Mas foi possível combatê-la em várias regiões graças a um maior controlo conjunto destas “actividades”;
·        Era comum os feridos resultantes de minas fracturarem os maxilares;
·      Os médicos ganharam muita experiência com doentes e feridos traumatizados, o que foi muito útil para melhorar a medicina no Continente;
·   O apoio à saúde chegava a ser mais rápido e eficiente no Ultramar do que no Continente, mas variava de região para região, sendo claramente melhores numas regiões do que outras; Em muitos locais existiam médicos e enfermeiros suficientes;
·       O apoio de saúde era prestado também às populações nativas. Muitas vezes este apoio ajudava na “conquista” das populações;
·     Era comum os enfermeiros estarem a dar os primeiros cuidados de saúde a feridos e, ao mesmo tempo, terem de ter cuidado para não serem feridos;
·    Os enfermeiros tinham bastante autonomia e capacidade de decisão quanto ao tratamento e às evacuações a efectuar;
·     Por norma existia um bom relacionamento entre médicos e enfermeiros, complementando-se no seu trabalho;
Na altura da Guerra do Ultramar só existia disponível a Penicilina para utilizar como antibiótico e os diagnósticos tinham de ser feitos muito à base da observação, inquérito e apalpação dos doentes. Actualmente existem muito mais antibióticos que poderiam ter curado rapidamente muitas das doenças que os militares sofreram no Ultramar, sendo que os meios de diagnóstico actualmente existentes permitiriam aos médicos uma actuação muito mais eficaz por conseguirem identificar a doença ou as fracturas com precisão. No entanto, em zonas de combate tais meios nem sempre seriam possíveis de utilizar pelo que os conhecimentos e a experiência dos médicos e enfermeiros foram determinantes para curar os doentes e feridos da melhor maneira possível.

Agradecemos ao Jornal de Leiria, Maria Anabela Silva e Mário Ley Garcia, fundamentais para a preparação deste poste.

4 comentários:

Joaquim Mexia Alves disse...

Bom trabalho do Miguel, como sempre!

Obrigado.

Um abraço

Anónimo disse...

Está um excelente trabalho do Miguel Pessoa, fazendo chegar a quem não esteve presente, o conhecimento das questões abordadas e as explicações dos vários intervenientes. Parabéns ao Coronel Ley Garcia por mais esta iniciativa,ao Jornal de Leiria e à sua jornalista Mª Anabela Silva. Um abraço. Mª Arminda

Anónimo disse...

Tive pena, muita pena, de não poder estar presente mas ao ler este resumo de excelência do Miguel Pessoa foi como se lá estivesse estado.
Muito obrigado,
Vasco A. R. da Gama

Miguel disse...

Uma achega aos comentários anteriores:
O mérito do Poste residirá essencialmente no texto publicado no Jornal de Leiria, que se transcreveu por não se ter conseguido uma cópia do original com a devida qualidade. Talvez por esse motivo a reportagem da Mª Anabela Silva não tem o devido destaque.
O trabalho do editor foi essencialmente o de reunir os diversos ingredientes, misturar bem, pôr ao forno... e servir depois de pronto...
Um abraço do Miguel Pessoa