DEPOIS DE TANTOS ANOS,
UMA RECORDAÇÃO
Estava eu
num almoço convívio anual da minha Companhia CCS/ BART/6222/73, com a minha
esposa e alguns colegas e familiares, quando chegou um casal próximo de nós. Começámos
a ouvir uns berros - “Está ali, mulher, está ali o meu amigo que me salvou a
vida” - reparámos todos, era o nosso amigo Cipriano, o “Bairro Alto”. Era a
primeira vez que participava num almoço convívio - nunca antes tinha sido
contactado por ter trocado de endereço quando regressou de Angola.
O homem
parecia louco, todos nós ficámos a olhar uns para os outros sem palavras; eu
pensei logo, era mais um que se tinha passado dos carretos… Ao aproximar-se do
grupo onde eu estava, o rapaz abraça-me, levanta-me ao ar, gritando em voz
alta, “Amigo, fostes tu que me salvaste a vida, foi este amigo, mulher, foi
este, devo-lhe a vida”.
Perguntei à
esposa o que lhe tinha acontecido para estar naquele estado. “Ele sempre falou
e continua a falar no mesmo, todos os dias, no amigo e colega enfermeiro que o
salvou da morte em Angola”. E contou-me então a história que o marido lhe
contara. Respondi, “Minha senhora, acontecimentos daqueles eram todos os dias a
passarem pelas nossas mãos, o que aconteceu ao seu marido foi o mínimo dos
mínimos, encontrámos casos muito piores, casos de morte”.
A senhora
respondeu, “Amigo Manuel, todos estes anos, ele tem procurado tudo para o
encontrar, por esse motivo ele está neste estado de choque por o encontrar”.
Vou então
contar-vos a história deste meu amigo.
No principio
do ano de 1974 fomos carregar pedra numa Berliet para umas obras no Quartel, às
matas junto da Pedra Verde. No regresso eu Enfermeiro e o meu amigo transmissões,
vínhamos no último Burrinho de Mato, com o amigo “Bairro Alto” entre nós os
dois, todos em plena cavaqueira. Ao passarmos junto à Sanzala do Quesso reparei
que o nosso amigo não ia bem, com uma cor baça; fiz-lhe algumas perguntas, a
que não respondeu. Reparei logo o que se estava a passar com ele, um forte
ataque de paludismo; apertei-o logo contra mim, o meu amigo desmaiou. Mandei
parar a viatura, vi a febre, vi logo que corria perigo de vida.
O alferes
prontificou-se a pedir uma ambulância ou um heli; eu respondi de imediato que
não era preciso, eu responsabilizava-me por tudo o que viesse a
acontecer. Com rapidez, apliquei-lhe uma injecção, não me lembro ao certo o
nome, mas penso que fosse “Lagartil”; com a ajuda dos colegas fiz uma maca
com ramos de árvores onde deitei o doente, em cima do Burrinho de Mato,
amarrado e seguro com os nossos cinturões.
Ao chegar à
localidade do Piri o meu amigo acordou, perguntando logo o que tinha acontecido.
Coloquei-o ao corrente do acontecimento. A partir desse momento e até ao final
da nossa comissão o meu amigo nunca mais se calou com tal coisa, para ele com
muito significado e sentido, para mim um caso natural como tantos outros na
minha especialidade, assim como outros casos em todas as outra especialidades…
Este acontecimento passou-se comigo, mas nunca mais me passou pela
cabeça, foi preciso este meu amigo depois de tantos anos vir recordar-mo...
Manuel Lopes Kambuta Dos Dembos
Maqueiro Enfermeiro
BART/6222/73
Quibaxe, Dembos
Norte de Angola.
Norte de Angola.
3 comentários:
Caro Manuel Lopes
A vida de enfermeiro tem revelado constantemente episódios como os que contas.
Afinal, estava a cumprir a vossa função. Quantas vezes a atender mais 'um freguês', sem tempo para estar a fixar a quem estavam a ajudar mas é natural que quem beneficiou das vossas atenções não se possa ter esquecido.
Abraço
Hélder Sousa
Uma história da guerra, onde se revela a face mais bela dum combatente, o sentido do dever e da solidariedade.
Obrigado Manel
Manuel Reis
Amigo Manuel. Depois de nos juntarmos nos almoços da nossa Tabanca, só por este episódio fiquei a saber que também teve que tratar de alguns camaradas a quem a doença ou os tiros os deixaram mais mal tratados. Gostei do relato deste acontecimento feliz e dou-lhe os parabéns. Um abraço amigo da Mª Arminda, também para a sua esposa.
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