domingo, 7 de setembro de 2014

P534: DO MANUEL "KAMBUTA" LOPES



DEPOIS DE TANTOS ANOS,
UMA RECORDAÇÃO

Estava eu num almoço convívio anual da minha Companhia CCS/ BART/6222/73, com a minha esposa e alguns colegas e familiares, quando chegou um casal próximo de nós. Começámos a ouvir uns berros - “Está ali, mulher, está ali o meu amigo que me salvou a vida” - reparámos todos, era o nosso amigo Cipriano, o “Bairro Alto”. Era a primeira vez que participava num almoço convívio - nunca antes tinha sido contactado por ter trocado de endereço quando regressou de Angola.

O homem parecia louco, todos nós ficámos a olhar uns para os outros sem palavras; eu pensei logo, era mais um que se tinha passado dos carretos… Ao aproximar-se do grupo onde eu estava, o rapaz abraça-me, levanta-me ao ar, gritando em voz alta, “Amigo, fostes tu que me salvaste a vida, foi este amigo, mulher, foi este, devo-lhe a vida”. 

Perguntei à esposa o que lhe tinha acontecido para estar naquele estado. “Ele sempre falou e continua a falar no mesmo, todos os dias, no amigo e colega enfermeiro que o salvou da morte em Angola”. E contou-me então a história que o marido lhe contara. Respondi, “Minha senhora, acontecimentos daqueles eram todos os dias a passarem pelas nossas mãos, o que aconteceu ao seu marido foi o mínimo dos mínimos,  encontrámos casos muito piores, casos de morte”.

A senhora respondeu, “Amigo Manuel, todos estes anos, ele tem procurado tudo para o encontrar, por esse motivo ele está neste estado de choque por o encontrar”.

Vou então contar-vos a história deste meu amigo. 

No principio do ano de 1974 fomos carregar pedra numa Berliet para umas obras no Quartel, às matas junto da Pedra Verde. No regresso eu Enfermeiro e o meu amigo transmissões, vínhamos no último Burrinho de Mato, com o amigo “Bairro Alto” entre nós os dois, todos em plena cavaqueira. Ao passarmos junto à Sanzala do Quesso reparei que o nosso amigo não ia bem, com uma cor baça; fiz-lhe algumas perguntas, a que não respondeu. Reparei logo o que se estava a passar com ele, um forte ataque de paludismo; apertei-o logo contra mim, o meu amigo desmaiou. Mandei parar a viatura, vi a febre, vi logo que corria perigo de vida. 

O alferes prontificou-se a pedir uma ambulância ou um heli; eu respondi de imediato que não era preciso, eu responsabilizava-me  por tudo o que viesse a acontecer. Com rapidez, apliquei-lhe uma injecção, não me lembro ao certo o nome,  mas penso que fosse “Lagartil”; com a ajuda dos colegas fiz uma maca com ramos de árvores onde deitei o doente, em cima do  Burrinho de Mato, amarrado e seguro com os nossos cinturões.

Ao chegar à localidade do Piri o meu amigo acordou, perguntando logo o que tinha acontecido. Coloquei-o ao corrente do acontecimento. A partir desse momento e até ao final da nossa comissão o meu amigo nunca mais se calou com tal coisa, para ele com muito significado e sentido, para mim um caso natural como tantos outros na minha especialidade, assim como outros casos em todas as outra especialidades… 

Este acontecimento passou-se comigo,  mas nunca mais me passou pela cabeça, foi preciso este meu amigo depois de tantos anos vir recordar-mo...

Manuel Lopes Kambuta Dos Dembos
Maqueiro Enfermeiro
BART/6222/73
Quibaxe, Dembos
Norte de Angola.


3 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Manuel Lopes

A vida de enfermeiro tem revelado constantemente episódios como os que contas.
Afinal, estava a cumprir a vossa função. Quantas vezes a atender mais 'um freguês', sem tempo para estar a fixar a quem estavam a ajudar mas é natural que quem beneficiou das vossas atenções não se possa ter esquecido.

Abraço
Hélder Sousa

Manuel Reis disse...


Uma história da guerra, onde se revela a face mais bela dum combatente, o sentido do dever e da solidariedade.

Obrigado Manel

Manuel Reis

Anónimo disse...

Amigo Manuel. Depois de nos juntarmos nos almoços da nossa Tabanca, só por este episódio fiquei a saber que também teve que tratar de alguns camaradas a quem a doença ou os tiros os deixaram mais mal tratados. Gostei do relato deste acontecimento feliz e dou-lhe os parabéns. Um abraço amigo da Mª Arminda, também para a sua esposa.