quarta-feira, 21 de maio de 2014

P493: CRÓNICAS DO JERO




Quando saímos de Binta, no norte da Guiné, tivemos direito a lágrimas de saudade dos que ficaram. Tínhamos sido importantes para eles e para nós próprios.

O último ano em Binta aconteceu noutro mundo! Quase que tínhamos esquecido o mundo para onde regressámos em Maio de 1966! Quando regressámos à Metrópole e à vida civil chocámos com um mundo onde a nossa importância anterior rapidamente se esbateu.

Já estava tudo feito - éramos apenas um pequeno parafuso de uma máquina gigantesca que girava sem cessar – e à nossa volta já não tínhamos a malta da Companhia. Todos tinham partido para as suas vidas. Para longe.

Nos primeiros meses corríamos sempre à chamada de cada camarada que se casava. Viajávamos de norte a sul do País para nos voltarmos a encontrar. Naquelas horas que estávamos juntos voltávamos lá! E o nosso Capitão normalmente estava por perto!

Depois tínhamos que voltar ao mundo dito normal , onde ninguém falava a nossa linguagem!
Que tempos amargos. Trabalho. Mais trabalho. E - falo por mim - solidão.

E os anos iam passando. Uma vez por ano a malta da Companhia reunia para um convívio, onde começámos a levar os filhos, que entretanto tinham chegado às nossas vidas. 

As estórias do nosso tempo da guerra voltavam inevitavelmente nesses dias especiais com velhas discussões em relação à emboscada de Caurbá, ou de Cansenhe, no caminho de Farim, ou perto de Guidage… E muitos anos depois havia camaradas que chegavam à conclusão que se tinham abrigado do fogo inimigo “à frente” de uma árvore e não "atrás", como conviria…

Todos esses convívios anuais começavam com uma missa onde eram recordados os camaradas que “tinham ficado” na Guiné e os que entretanto, pela lei da vida, nos tinham já deixado. Dos 170 que tinham pertencido inicialmente à CCaç. 675 já não estavam entre nós cerca de quarenta!

E quando os “cabelos brancos” chegaram, uma “comissão de camaradas de boa vontade” passou a reunir-se uma ou duas vezes por ano para visitar as campas dos camaradas que já tinham partido para honrar a sua memória e deixar na “última morada” uma lápide com o seu nome e com o emblema da Companhia.

O tempo passa depressa, muito depressa, e, felizmente, que a “idade do condor” traz também algumas coisas boas. Um camarada e sua dama chegam às "Bodas de Ouro" e convidam a malta da Companhia para estar presente. E vamos à Missa de acção de graças e ao Copo de Água para aconchegar os estômagos e a “memória do casamento”. Tudo a rigor e com uma programa festivo que nos dá a conhecer uma família numerosa que canta e dança em volta dos “noivos”, rodeados de filhos, genros, netos e netas. Um autêntico espanto.


Estávamos a saborear o prato de peixe – bacalhau com broa – quando um grito numa mesa próxima me fez quase saltar da cadeira. Porque o grito de aflição tinha o meu nome: “Oliveira”. Dirijo-me à mesa onde estava o Rodrigues, correspondendo ao apelo da mulher do Cravino, que via ainda em mim o enfermeiro que eu tinha sido na vida militar cinquenta anos atrás.

O Rodrigues - que eu sabia estar a meio de um tratamento oncológico - estava muito pálido, espumava pela boca e tinha a cabeça pendida para o peito. Não dava acordo de si e quando lhe peguei no braço para “ver” as pulsações não lhe encontrei o pulso. Olhei de novo para a cara e o seu aspecto era assustador. A fazer pensar o pior. Felizmente aproximou-se um jovem, que era enfermeiro a sério e “dentro do prazo”, que deu uma ajuda. Dois ou três minutos depois o Rodrigues voltou a si.

A côr voltou-lhe a face e falou com a mulher e comigo sem se lembrar que tinha estado alguns minutos em colapso. Na fase mais preocupante tínhamos pedido que se chamasse o INEM. O Rodrigues recusou de imediato a ideia e como parecia estar de facto melhor anulou-se a “urgência”.

Passado mais uns minutos levantou-se e dirigiu-se para fora do restaurante, pedindo para ir para o seu carro e voltar para casa. O filho estava por perto e sentou-se ao volante. Momentos antes eu tinha sabido que o Sporting do meu amigo Rodrigues estava a ganhar por 2 a zero ao Paços de Ferreira. Nunca antes que me lembre – sou benfiquista desde os bancos da escola – tive tanta satisfação em dizer a um camarada “em azar” que os "lagartos" estavam a ganhar ao intervalo. E o seu sorriso de satisfação valeu a pena e tornou mais leve o “meu sacrifício”…

Entre o grito da mulher do Cravino e a entrada do Rodrigues no seu carro para regressar a casa com a sua mulher e filho decorreu cerca de meia hora. O meu prato de bacalhau há muito que tinha arrefecido e já não o comi. Enquanto andei “armado” em enfermeiro não pude deixar de reparar que a maioria dos convidados das “bodas de ouro” não tinha perdido o apetite e tinha feito as honras ao prato de peixe do “copo de água”… sem interromper uma garfada que fosse!

Depois a festa continuou com os familiares dos “noivos” a cumprirem um animado e bem pensado programa em honra da Luísa e do Carlos, que tinham contraído matrimónio há cinquenta anos atrás em 5 de Abril de 1964 na Basílica da Estrela. Um mês e pouco depois – em 8 de Maio – o Carlos embarcava para a Guiné, integrado na Companhia de Caçadores 675.

Quando então saímos do cais da Rocha de Conde de Óbidos, em Lisboa, tivemos direito a lágrimas de saudade dos que ficavam.


Recriámos esse tempo de despedida na noite do “encontro” dos eternos namorados de há 50 anos nas Bodas de Ouro de 5 de Abril de 2014. Meio século depois de Binta numa época em que o vagomestre nos ”matava a fome” com “ciclistas”(feijão frade presente em todas as refeições). Que recordo com um sorriso. O que, sinceramente, a partir de agora não vai acontecer quando me apresentarem “bacalhau com broa”. Ao almoço ou ao jantar. Nem lhe vou tocar…

As voltas que a vida dá !
JERO




9 comentários:

Hélder Valério disse...

Estas recordações acompanham-nos sempre. É claro que 'uma vez enfermeiro, enfermeiro sempre' e foi isso que os camaradas interiorizaram.
O Jero perdeu o apetite.... não fez mal, ajudou, como pode, a 'recuperar' uma vida e depois disso teve ocasião de almoçar muitas vezes, aposto que todos (ou quase) os dias, só que sabemos agora que bacalhau com broa é que 'não entra'...
Supersticioso!

Hélder Sousa

Anónimo disse...

"Quando saímos de Binta,no norte da Guiné,tivemos direito a lágrimas dos que ficaram.
TÍNHAMOS SIDO IMPORTANTES PARA ELES E PARA NÓS PRÓPIOS".
Curtas palavras,mas todo o signficado do que foi,em verdade,a tropa do mato.
Um grande abraco Amigo Jero!

Joaquim Mexia Alves disse...

Obrigado Jero.

Só quem por lá esteve pode e sabe transmitir tudo isto que sentimos e muitas vezes não exteriorizamos.

Obrigado por o fazeres por nós.

Grande abraço

Anónimo disse...

Linda e emocionante esta descrição
do Jero, que apreciei e entendo muito bem!.. porque não volta a comer o bacalhau com broa.
Um abraço amigo. Mª Arminda

Anónimo disse...

Interessante relato de umas bodas de ouro casamenteiras. Pena é o ocorrido e que o JERO condene o bacalhau a não mais ser comido, pelo menos com broa...
Esperemos que o Joseph quando vier da terra do nunca traga umas boas postas do dito, daquele da Noruega para fazermos uma festa, sim que a broa temos nós cá e da boa. Vamos depois ver se o JERO muda e volta a comer o bacalhau com broa, o outro é passado.
Um abraço,
BS

Anónimo disse...

O bacalhau arranja-se!
Daqui de Abisko a Narvik, na costa norueguesa de onde parte o bacalhau,säo só 119 Km.
(Daqui a Estocolmo säo mais de 1.300 Km!)
O kilo do bacalhau salgado/seco de primeiríssima qualidade custa o equivalente a 1,2 euros.
(Barato porque localmente näo consumido).
O bacalhau fresco em filé custa o equivalente a 11 euros/kilo.
Quanto à broa.........
Um grande abraco do José Belo.

Anónimo disse...

Não há nada como os actuais correios sem selo, e não falo dos aerogramas que chegavam a demorar uma semana, ainda à pouco se falou do bacalhau da Noruega e aí está a resposta vinda dos confins do mundo, fresquinha como o dito.
Vamos aguardar até abrir o apetite ao JERO.
Um abraço,
BS

manuel maia disse...

Camarigos,

Mais uma história bem contada pelo Jero desta feita acontecida na comemoração do meio século pós Binta e a propósito do mau estar sentido por um indefectível sportinguista a quem ele(benfiquista dos quatro costados) foi dar a boa(má para si próprio) notícia que arrancou um sorriso ao doente lagarto...
Diz o Hélder que "uma vez enfermeiro,enfermeiro sempre"o pessoal interiorizou o facto dele ter sido o homem das mézinhas...Pura verdade. Nos convívios da minha companhia e creio que não deve ser só nela,o pobre do vaguemestre "come piada sempre pela medida grande" e quando se estabelecem comparações( fui-o também num mês de férias seu...)vem sempre à baila o "elogio" de que se comeu melhor no meu consulado".Fica gravado no subconsciente... Aquilo que o ZéBelo referiu sobre a frase empregue pelo Jero " tínhamos sido importantes para eles e eles para nós próprios" é outra nota carregada de verdade...Quem passou pelo mato criou muitos laços de amizade com a população.Como nota de rodapé o custo do bacalhau seco e salgado na Noruega que o Zé Belo nos trouxe (preço apenas...)é de tal forma convidativo que quase apetecia ir lá comê-lo...

Abraço ao Jero,aos comentadores citados mais o Belarmino com o "convite" ao Zé Belo,a Maria Arminda e a referência ao não do Jero ao bacalhau com broa,ao "soba Joaquim" e a toda a tertúlia dessa "magnífica tabanca do centro".



Anónimo disse...

Boa noite Camarigos
Aceitem pf. um abraço de gratidão pelas v/s palavras amigas.
Dessas eu não prescindo. Quanto ao "bacalhau com broa"...só abrirei uma excepção numa visita ao País onde "pernoita" o nosso distinto amigo José Belo.
Até sempre,
JERO