NO FIM DO MUNDO
Na preparação de uma conversa sobre as enfermeiras paraquedistas em que
fui convidada a participar, lembrei-me de imediato de um episódio que vivi na
Guiné, que ficou inesquecível na minha memória.
A camaradagem e a solidariedade sempre orientaram a minha vida e, sendo
algo característico da vida militar, parecem ter tido ainda mais relevo no
território da Guiné. Se é habitual haver um grande companheirismo entre os
paraquedistas, tive a oportunidade de ver exemplos desse companheirismo junto
de outros grupos na Força Aérea, fossem pilotos ou mecânicos da BA12.
Também
nas minhas deambulações pela Guiné (em 26 meses de comissão(*) tive a
possibilidade de chegar aos sítios mais invulgares, em que afinal muitos
tiveram que viver) pude testemunhar as manifestações de camaradagem e
solidariedade que sempre mostraram ter para com os tripulantes dos DO-27 e
AL-III que por ali passavam e particularmente para com a enfermeira que os
acompanhava.
Este episódio que acima referi, sendo algo que me tocou profundamente, narro-o
aqui.
No decorrer de uma evacuação que tinha como objectivo um aquartelamento
no nordeste da Guiné, o helicóptero aterrou na placa, onde embarcou o evacuado.
No decorrer dessa operação, aproximou-se do AL-III um Furriel daquela unidade,
o qual se me dirigiu com um pedido fora do vulgar.
Explicou-me que com ele
estava naquele quartel a sua mulher, sendo ela a única branca que ali vivia; e
que, não vendo nenhuma branca há já muitos meses, certamente apreciaria falar
comigo por uns momentos. Avisei-o do facto de transportarmos um ferido
e do pouco combustível de que dispúnhamos não permitir prolongar a nossa estadia
ali. Mesmo assim, ele montou a sua motoreta e foi buscar a mulher, para a levar
junto de nós.
A espera prolongou-se por mais tempo do que aquele de que dispúnhamos, o
que levou o piloto a decidir-se por descolar, com grande pena minha. Já no ar,
tive a possibilidade de ver aproximar-se da placa a motoreta com o Furriel,
trazendo a mulher à boleia. Ali chegados, apenas teve ela tempo para nos acenar
enquanto o AL-III rodava em direcção a Bissau.
Senti naquele momento um
desgosto enorme por não ter podido proporcionar àquela mulher um momento de
carinho e de solidariedade, de que ela tanto necessitaria; e imagino a sua frustação
quando não lhe foi possível partilhar de uns momentos de proximidade com alguém
que lhe recordaria outras companhias e outros ambientes deixados há muito para
trás.
Giselda Pessoa
(*) As comissões das enfermeiras paraquedistas variavam entre seis meses
e um ano, o que provocava uma constante rotação do nosso pessoal. Vá-se lá
saber porquê, fui optando por prolongar a minha estadia na Guiné, muito
provavelmente devido ao óptimo ambiente que ali se vivia e também por me sentir
realizada no trabalho que ali desenvolvia, numa atmosfera que não deixava
esconder a guerra que nos rodeava.
Foto do AL-III: Humberto Reis (Com a devida vénia)
4 comentários:
Nós sabemos o valor do que nos faltava lá. Uma "Imperial" um bitoque, umas sardinhas, uma bica etc.
As coisas mais banais aqui na Metrópole, eram valorizadas e falta delas provocavam um desconforto difícil de explicar hoje.
Assim aqueles dois dedos de conversa ansiados pela esposa do militar, nunca poderemos pôr num prato de balança e aferir o real valor do encontro que não se chegou a realizar.
Pequenas coisas que fazem grandes momentos.
Um abraço
Colocando no contexto do nosso querido Portugal dos anos sessenta/setenta,continuo a verificar que as nossas Camaradas Enfermeiras Paraquedistas continuam a demonstrar (sempre) grande humildade relativa ao facto de terem sido um exemplo,e dado o primeiro passo abrindo as portas para a normalidade que é hoje a existência de mulheres nas Forcas Armadas,Forcas Policiais,altos cargos políticos,e na sociedade em geral.
Para as geracöes actuais a coragem social necessária que levou um grupo de mulheres a "atrever-se" passará quase despercebida.
Os tempos säo outros.A sociedade é outra.Ainda bem que assim é.
Mas nunca será demais lembrá-lo.
Creio que para aquela jovem mulher,isolada algures no interior da Guiné,sem compreender muito bem o porquê do seu destino (como entäo muitos de nós!)o encontro com a nossa Camarada Giselda teria um significado muito maior que simples troca de palavras.
Encontrar ali outra mulher,para mais desempenhando tais funcöes,teria certamente aumentado a sua auto-confianca e auto-estima.
Numa sociedade machista e conservadora como a de entäo,todos os bons exemplos-pioneiros nunca seriam de mais.
Um grande abraco do José Belo.
A história da Giselda mostra bem, não só, a pessoa boa que é a própria Giselda, mas também as suas camaradas de armas que eram e são um lenitivo em muitos sentidos, para aqueles que estiveram por aquelas paragens.
Quanto à permanência das mulheres de militares em quartéis de zonas operacionais, tenho uma opinião bastante negativa, não só por tudo aquilo que envolvia, mas também e muito pela diferença que acabava por acontecer entre oficiais e sargentos/furriéis , e os soldados, impossibilitados por muitas e variadas razões de poder aceder a tais "benefícios".
Este meu último comentário não interfere de modo nenhum com a beleza da história da Giselda, a quem envio o meu abraço camarigo de muita amizade.
Joaquim
A história que a Giselda descreve já a tinha ouvido, mas nunca é demais recordar, como este simples acontecimento, foi muito grande para ela e quanto o mesmo a impressionou e a tocou sentimentalmente, por não poder também ter cumprido, o que considerou ser um dever e missão de uma enfermeira.(A palavra amiga e um apoio psicológico, no momento certo)!.. "São recordações da tua e da nossa guerra, que nos acompanharão sempre. Um abraço, . Mª Arminda
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